A derrota dos povos indígenas na demarcação das terras é a derrota do Brasil. Entrevista especial com Leonardo Barros Soares

Indígenas protestam na Praça dos Três Poderes, em Brasília | Foto: Valter Campanato - Agência Brasil

Por: Ricardo Machado | 30 Junho 2021

 

A questão da terra no Brasil é o nervo central que produz toda a sorte de desigualdades, seus dispositivos de reprodução e multiplicação. “A história do Brasil é a história da extrema concentração fundiária nas mãos de uma elite colonial escravista que se perpetua até nossos dias. Em meu modo de ver, é a conformação fundiária colonial consolidada juridicamente no império e protegida com unhas e dentes desde então pelos proprietários de terras que está no cerne do inacreditável fosso da desigualdade social no país”, pondera o pesquisador e doutor Leonardo Barros Soares, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Nesta quarta-feira, 30 de junho, o STF vota o Recurso Extraordinário 1.017.365, que trata das demarcações de terras indígenas e com repercussão geral, em que, caso a ofensiva não seja freada, as consequências tendem a ser, como classifica o entrevistado, catastróficas. “A tese do marco temporal ganhará um fôlego renovado para tentar se impor como a tese majoritária; a vedação da ampliação de terras indígenas já homologadas dará respaldo legal a muitas situações de injustiça histórica; os militares aumentarão a ingerência sobre terras indígenas em áreas de fronteira ou no caminho de projetos desenvolvimentistas; os ecossistemas e as sociedades indígenas sofrerão severos impactos da liberação da exploração econômica desenfreada em terras indígenas”, explica Soares.

 

Estamos diante, nada mais, nada menos, da decisão mais importante no âmbito da garantia dos direitos dos povos indígenas desde a Constituição Federal de 1988. “O processo demarcatório, hoje, no Brasil, respira por aparelhos. A aprovação do PL 490 seria desligar de vez esses aparelhos. A mensagem para o mundo será clara: ‘O Brasil não vai mais reconhecer novas terras indígenas’”, pontua.

 

É preciso, inclusive, que a própria esquerda esteja, de fato, comprometida com a causa indígena. “Os povos indígenas e suas organizações são aceitos nas mobilizações políticas desses partidos, mas isso não se reflete na implementação concreta de sua pauta. A derrota dos povos indígenas será a nossa derrota também, podem estar certos disso”, complementa.

 

Leonardo Barros Soares (Foto: Arquivo Pessoal)

Leonardo Barros Soares é psicólogo formado pela Universidade Federal do Ceará - UFC, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Realizou estágio doutoral em 2017 na Université de Montréal junto ao Centre de recherche sur les politiques et le développement social - CPDS. É membro do Réseau d'études latino-américaines de Montréal - Rélam e desenvolve pesquisas na área de democracia participativa, instituições participativas, teoria deliberacionista, política urbana, etnopolítica, política indigenista comparada, povos indígenas americanos, movimentos sociais e associativismo étnico e políticas de reconhecimento territorial indígena.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como a questão do acesso à terra se constitui em um dos principais problemas do Brasil e até que ponto ele é a fonte das desigualdades brasileiras?

Leonardo Barros Soares – A questão do acesso à terra é central para o entendimento da constituição do estado brasileiro e suas mazelas. A história do Brasil é a história da extrema concentração fundiária nas mãos de uma elite colonial escravista que se perpetua até nossos dias. Em meu modo de ver, é a conformação fundiária colonial consolidada juridicamente no império e protegida com unhas e dentes desde então pelos proprietários de terras que está no cerne do inacreditável fosso da desigualdade social no país. O livro de Caio Prado Jr, A questão agrária no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2014), mostra muito bem todo esse processo e quem são os atores envolvidos, tanto os beneficiados quanto os prejudicados. Quem tem terra, quer mais. Quem não tem, defronta-se com todo tipo de dificuldade para tê-la. Além disso, Prado Jr demonstra com clareza que não há uma separação entre elite agrária e burguesia industrial. No Brasil, quem tem terra em grande quantidade acumula muito poder e o estende para setores da indústria, comércio, serviços, empresas de mídia, dentre outras. A composição do Senado brasileiro é uma forte evidência que corrobora esse argumento.

Ressalte-se que estamos falando não apenas das terras para pequenos agricultores, mas também da terra urbana – que segue o mesmo padrão concentracionário – e de terras de ocupação tradicional. O interessante nesse último caso é que essas terras – notadamente as terras indígenas – “saem” do mercado de compra e venda de terras e das possibilidades de exploração econômica, algo intolerável para a dinâmica capitalista de acumulação de terras cultiváveis, atualmente em uma fase de agressiva expansão sobre terras na América Latina, África e Leste Asiático.

Note-se que a existência de terras indígenas é uma espécie de paradoxo brasileiro. Num país tão desigual em termos fundiários, não deixa de ser notável que ainda tenhamos conseguido reconhecer quase 13% do território nacional como de ocupação tradicional indígena.

 

 

IHU On-Line – Qual é o objetivo do PL 490/2007?

Leonardo Barros Soares – O PL 490/2007 é a mais nova “variante” de uma proposta que tramita no Congresso Nacional desde os anos 2000, a Proposta de Emenda Constitucional 215. O projeto apresenta como proposta principal algo aparentemente singelo: a mudança do ciclo da demarcação de terras indígenas, consignando sua aprovação por meio de lei do Congresso Nacional e não por meio de decreto presidencial, como está estabelecido no Decreto 1775/1996. Os apensos ao projeto trouxeram todas as outras questões de interesse dos ruralistas já em tramitação, tais como a questão do marco temporal e da vedação de ampliação de terras indígenas já homologadas. É uma boiada e tanto. Parlamentares anti-indígenas farejaram a oportunidade de terem aliados na presidência da Comissão de Constituição e Justiça e na presidência da Câmara e estão tentando aproveitá-la.

 

 

IHU On-Line – Quais devem ser as consequências para os povos indígenas caso este projeto de lei seja aprovado?

Leonardo Barros Soares – As consequências serão nada menos que catastróficas. A tese do marco temporal ganhará um fôlego renovado para tentar se impor como a tese majoritária; a vedação da ampliação de terras indígenas já homologadas dará respaldo legal a muitas situações de injustiça histórica; os militares aumentarão a ingerência sobre terras indígenas em áreas de fronteira ou no caminho de projetos desenvolvimentistas; os ecossistemas e as sociedades indígenas sofrerão severos impactos da liberação da exploração econômica desenfreada em terras indígenas.

A consequência mais imediata, no entanto, é sobre a demarcação de terras indígenas propriamente dita. Mesmo sendo um processo realizado inteiramente no âmbito do Executivo, o tempo médio de demarcação é de dez anos, podendo, em alguns casos, chegar a vinte ou mesmo trinta anos, algo francamente inaceitável. Imaginem, então, que esses processos devam ser tramitados na forma de lei ordinária, num congresso com mil e uma outras pautas, e nenhum interesse em votá-los. O processo demarcatório, hoje, no Brasil, respira por aparelhos. A aprovação do PL 490 seria desligar de vez esses aparelhos. A mensagem para o mundo será clara: “O Brasil não vai mais reconhecer novas terras indígenas”.

 

 

IHU On-Line – O projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça - CCJ da Câmara na última semana e agora deve ir a plenário. Como deve ser a votação tanto na Câmara quanto no Senado?

Leonardo Barros Soares – É difícil cravar um resultado. A tendência, evidentemente, é que seja aprovada na Câmara, devido à grande coalizão de interesses anti-indígenas na casa e ao alinhamento entre o presidente da Câmara, a presidenta da Comissão de Constituição de Justiça e o governo de Jair Bolsonaro. Já no Senado é um pouco mais difícil, mesmo sendo uma casa com intensa presença de proprietários de terras que, em última instância, se beneficiariam do projeto.

A questão decisiva, a meu ver, é a mobilização que os povos indígenas estão fazendo para barrar o projeto. Recordemos que as organizações indígenas têm conseguido barrar a PEC 215 há 21 anos, mesmo em legislaturas com maior número de parlamentares ruralistas do que a atual, o que não é nada trivial. Além disso, os movimentos indígenas têm se articulado fortemente em nível internacional, o que aumenta a pressão sobre o governo brasileiro. Em resumo, o jogo ainda está em aberto, mas a ameaça de retrocesso é grave e iminente.

 

 

IHU On-Line – O cardápio de ameaças recentes inclui o PL 191/2020, que regulamenta a mineração em terras indígenas. Quais as implicações destas ofensivas?

Leonardo Barros Soares – Mais uma vez, as implicações são severas e potencialmente genocidas. Costumo dizer que quem se diz a favor de um tal projeto ou está se beneficiando diretamente dele ou nunca passou perto de um sítio de mineração. Ninguém, em sã consciência, pode achar agradável ter no seu quintal maquinário pesado, explosões, poeira, barulho, escavações, pilhas monstruosas de rejeitos, barragens inseguras, poluição por metais pesados. Por que os povos indígenas tolerariam isso? Em nome de quê? De uma indenização? Participação nos lucros? Promessas de emprego? Claro, essas propostas podem ter seu apelo num contexto de extrema fragilização das condições de vida de muitos povos indígenas, mas não vejo sua aceitação por parte das lideranças e das organizações indígenas.

O projeto de lei está na ordem do dia do governo Bolsonaro desde seu início. As mineradoras têm um apetite incontido pelas jazidas minerais, reforçado pelo novo boom de commodities que se avizinha. É um pleito antigo e tem força, mas depois dos desastres de Mariana, Barcarena e Brumadinho e da renovada praga dos garimpos em terras indígenas, creio que o argumento contra o projeto tem boa chance de prosperar também devido à sua repercussão na opinião pública.

 

 

IHU On-Line – O que a experiência canadense nos ensina sobre mineração em territórios dos povos nativos?

Leonardo Barros Soares – A mineração em terras indígenas canadenses e australianas é sempre mencionada nas argumentações dos defensores do PL 191/2020 como exemplos a serem seguidos. É fato que alguns povos indígenas canadenses se beneficiam financeiramente de empreendimentos minerários em seus territórios. É preciso notar, todavia, que as condições jurídicas, econômicas e políticas envolvidas são completamente diferentes e muito específicas. Em outras palavras, funciona somente para alguns povos indígenas do Canadá e, ainda assim, esse “funciona” é muito questionável.

Já tive uma visão mais aberta sobre isso, talvez pensando que pudessem existir formas de coexistência entre a atividade minerária e as terras indígenas. Depois de estudar mais e sobretudo após conhecer de perto algumas minas e seus impactos, além de conhecer algumas terras indígenas, fiquei bem mais cético. Ainda não é uma questão fechada para mim. Preciso investigar mais. No entanto, parece-me que não é apenas que o modelo canadense não seja transponível para o caso brasileiro – e, evidentemente, não é –, mas trata-se sobretudo de refletir sobre o caráter eminentemente destrutivo da atividade mineradora. A destruição pode ser compensada financeiramente? Sim, claro... mas tudo realmente tem um preço? É intolerável para o capitalismo que existam pessoas e coletividades que ainda resistam à financeirização da existência. A simples existência das terras indígenas nos relembra que ainda é possível pensar fora da lógica do capital. Mas a pressão é avassaladora, sem dúvida.

 

 

IHU On-Line – De onde vem a narrativa de que os povos indígenas são “incivilizados”?

Leonardo Barros Soares – Essa narrativa é tão antiga quanto a conquista do continente americano. Ganhou os contornos atuais no século XIX, sobretudo com as teses do racismo científico, que buscava dar um amparo “científico” para as atrocidades cometidas em nome do “progresso” e da “civilização”. O binômio “selvagem-civilizado” parece ainda estar no cerne do pensamento de muitas sociedades sobre povos indígenas, não apenas no Brasil, como atesta a malfadada recente declaração do presidente argentino. Aqui, no entanto, ela se atualizou com a retórica anti-indígena do governo Bolsonaro, com a reedição do integracionismo militarista da ditadura militar de 1964. Para muitos brasileiros, só é “índio de verdade” aquele que “anda nu na selva”. O “índio de Hilux”, que fala português e acessa a internet, já estaria “civilizado” e não teria motivos para ter direitos específicos. É apenas uma das manifestações do racismo contra indígenas, que creio ser o mais tolerado no Brasil.

 

 

IHU On-Line – O Supremo Tribunal Federal marcou o julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, que trata das demarcações de terras indígenas e com repercussão geral, para o dia 30 de junho de 2021. O que podemos esperar deste julgamento?

Leonardo Barros Soares – O julgamento em tela é decisivo para o futuro dos povos indígenas, pois diz respeito ao embate entre as teses do indigenato e do marco temporal como as balizas constitucionais para o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação de terras indígenas. O Recurso Extraordinário faz parte de um contexto mais amplo de intensa judicialização dos processos demarcatórios no país. Na minha tese de doutorado, apresentei alguns dados preliminares relativos ao número de Ações Cíveis Originárias - ACOs que contestam demarcações de terras indígenas no país e cheguei à conclusão de que há uma verdadeira guerra federativa contra os povos indígenas. Grande parte dos estados brasileiros – com destaque para Roraima e Mato Grosso do Sul – habituaram-se a contestar, nas cortes, os processos demarcatórios. No caso em questão, o debate gira em torno de uma ação de reintegração de posse movida pelo estado de Santa Catarina contra a Fundação Nacional do Índio - Funai e indígenas do povo Xokleng.

 

 

Esses dados serão aprofundados no meu próximo ciclo bienal de pesquisas, a começar no próximo ano, mas já é possível afirmar que o resultado do Recurso Extraordinário terá profundas implicações sobre esses processos. Se a tese do indigenato vencer, pacifica-se de uma vez por todas uma longa tradição jurídica consubstanciada na Constituição de 1988. Caso contrário, estarão abertas as comportas para a explosão de ACOs contestando demarcações concluídas há décadas, aumentando ainda mais a insegurança jurídica no campo. Não creio que o STF queira ir por esse caminho.

Por tudo o que está em jogo e pela quantidade de atores envolvidos no processo, não é exagero dizer que esse é, sem dúvida, o julgamento mais importante para os povos indígenas desde a promulgação da Constituição de 1988.

 

 

IHU On-Line – Até que ponto é possível, futuramente, recuperarmos os prejuízos decorrentes do atual desmonte da política indigenista brasileira?

Leonardo Barros Soares – É difícil saber. O desmonte é profundo, grave e potencialmente irreversível. Note que essa resposta poderia ser estendida para qualquer outra política pública do estado brasileiro em tempos bolsonaristas. O presidente Jair Bolsonaro sempre foi muito claro com relação ao que pretendia para com o incipiente estado de bem-estar social estabelecido pela Constituição de 1988 e ainda mais para com a política indigenista: o objetivo, desde sempre, foi o de destruir, não o de construir algo. Felizmente, os movimentos indígenas, suas organizações e lideranças são combativos e são sempre o sul a ser seguido na busca de uma nova política indigenista que reorganize as relações entre o estado brasileiro e seus povos originários. Mas se não sabemos nem o que acontecerá até o fim da próxima semana, fica difícil fazer qualquer análise prospectiva mais clara.

 

 

IHU On-Line – A esquerda desenvolvimentista compreende a causa indígena?

Leonardo Barros Soares – Penso que os partidos de todos projetos ideológicos, de um modo geral, compreendem de forma muito limitada a questão indígena. Uma análise simples dos programas partidários e as plataformas dos candidatos/das candidatas revela facilmente que a temática indígena entra quase sempre de forma muito instrumental, quando entra. Ainda falta uma investigação mais rigorosa, no campo da ciência política, sobre como os partidos políticos brasileiros lidaram com questões indígenas ao longo das décadas, mas, preliminarmente, penso que isso tem muito a ver com a origem dessas agremiações.

Os partidos de esquerda têm uma forte base nas camadas médias urbanas, sindicatos, movimentos sociais com pautas afetas ao cotidiano das cidades, e as questões indígenas certamente parecem muito distantes ou simplesmente menores frente a questões “realmente importantes”, tais como política energética, valorização salarial, geração de empregos etc. Os povos indígenas e suas organizações são aceitos nas mobilizações políticas desses partidos, mas isso não se reflete na implementação concreta de sua pauta.

 

 

O projeto neodesenvolvimentista retomado no governo Lula e reforçado no governo Dilma proporcionou, em larga medida, um conjunto amplo de graves violações de direitos dos povos indígenas. Isso não pode, de forma alguma, ser escamoteado. Infelizmente, até onde posso ver, não penso que essa tendência tenha mudado de forma significativa. Espero, sinceramente, estar errado.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Leonardo Barros Soares – É importante que os leitores e leitoras se interessem pela tramitação do PL 490/2007 e, mais amplamente, sobre a questão indígena brasileira como um todo. Qualquer ataque ao esteio fundamental da existência dos povos indígenas – as terras tradicionais em que habitam – é um ataque a nós todos como sociedade. É um erro fatal achar que não temos nada a ver com os territórios indígenas. Hoje, mais do que nunca, sua existência e sua integridade são fundamentais para a manutenção da vida no globo e, consequentemente, têm impacto na nossa vida cotidiana. Está faltando água e a energia vai aumentar? As cidades estão ficando mais quentes a cada ano que passa? Você come comida envenenada? Há novas doenças emergindo? Tudo isso está em conexão direta com a destruição do meio ambiente, e, portanto, com o fim anunciado das demarcações de novas terras indígenas. A derrota dos povos indígenas será a nossa derrota também, podem estar certos disso. Pressione seu/sua representante no Congresso para que se posicione contra o projeto. A demarcação de terras indígenas precisa ser aperfeiçoada, tornada mais célere, e não o contrário.

 

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