Caetano Veloso - Abrir horizontes ricos e diversos em meio ao conservadorismo grotesco da direita brasileira. Entrevista especial com Adalberto Müller

Adalberto Müller analisa a obra de Caetano Veloso e de como sua construção se constitui em um exercício constante e ininterrupto de busca de saídas para um Brasil além da barbárie conservadora

Foto: Reprodução

Por: Ricardo Machado | 07 Agosto 2021

 

Caetano Veloso é um fazedor de mundos, é um artista cuja obra aponta para saídas. “Existem pessoas que apontam para problemas do Brasil, como, por exemplo, em termos de arte, é o caso de Machado de Assis, de Graciliano Ramos, mas outras apontam para saídas, como é o caso de Guimarães Rosa, de Clarice Lispector e de Caetano Veloso”, propõe o professor e pesquisador Adalberto Müller, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Esta vocação cultural do Brasil, de pensar saídas para a miséria material resultante da desigualdade brasileira, que está expressa na obra do artista, tem sua contraposição no desejo conservador da direita brasileira, que sempre que se sente acuada recorre aos cães de guarda verde-oliva. “Se olharmos para nossa história, veremos que toda vez que o Brasil está se encaminhando para uma refundação, de questionar as bases que dão vazão à desigualdade, a direita brasileira chama os seus cachorros, seus cães de guarda, que são os militares. As Forças Armadas do Brasil não têm uma tradição de guerra; militar no Brasil é praticamente um inútil dentro do cenário global”, avalia.

 

Por outro lado, quando, em meio à quarentena da Covid-19, propõe uma live, ele retoma esse espírito utópico. “Na live que Caetano fez com os filhos, do disco Ofertório, ele aponta para um caminho de repensar a família a partir do tempo que a gente vive. É uma família ao inverso da família do Bolsonaro. A família que Caetano Veloso apresenta no Ofertório é uma família que faz brilhar, pensando que gente é feita para brilhar. Do outro lado o que existe é uma quadrilha-família, uma ‘fadrilha’, uma família de destruição, ligada às milícias e a figuras muito sombrias”, pondera Müller.

 

Adalberto Müller (Foto: Arquivo pessoal)

 

Adalberto Müller é escritor e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal Fluminense - UFF. Foi professor-pesquisador visitante nas Universidades de Münster, Lyon2, Yale e Buffalo (SUNY). Dentre suas diversas publicações destacamos Transplantações: do jardim da minha mãe (Para.Texto, 2019); O traço do calígrafo: contos (Medusa, 2020); Walter Benjamin: Sobre o Conceito de História (com Márcio Seligmann-Silva, Ed. Alameda, 2020); Emily Dickinson: Poesia Completa (Editora da UnB/Editora da Unicamp, 2020).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como arte e vida social são dimensões dialéticas (ou dialógicas) que se coproduzem reciprocamente?

Adalberto Müller – Essa pergunta é muito complexa. A melhor maneira de resolver isso é de forma dialética, ou seja, a arte está inserida na vida social, tanto quanto a vida social está inserida na arte. A questão é saber a proporção em que isso ocorre, porque tem artistas que evitam a todo custo e fazem um esforço para se isolar, destacar-se do conjunto da vida social e observar a partir de fora; e há artistas que decidem participar, fazer com que suas obras sejam participantes. A arte engajada, como dizemos dentro da teoria marxiana, é aquela que quer participar da vida social diretamente. Mas há os que não fazem isso, e, como Emily Dickinson, preferem escrever para si mesmo ou para um grupo seleto de correspondentes. É, também o caso de Kafka ou Robert Walser e muitos outros autores que se isolaram. Porém, em se tratando da canção popular a questão é mais complexa, porque a relação entre a arte e a vida social é mediada pela indústria cultural e aí temos um outro fator importante de mediação.

A literatura também é mediada por editoras, por críticos, jornais. Assim, a mediação com a sociedade se dá pela indústria cultural, essa coisa monstruosa, sobretudo no Brasil, que é um país que conseguiu consolidar uma relação forte com a indústria cultural. Isso é muito mais forte do que em muitos países que se submetem de maneira muito dócil à indústria cultural. A canção brasileira tem uma relação muito intensa com a indústria cultural a ponto de ser um dos principais mercados fonográficos do mundo. Isso é incomum em muitos países europeus, por exemplo, em que a música popular não tem essa presença tão forte como tem no Brasil.

IHU On-Line – Neste sentido, como a obra artística de Caetano Veloso se mistura à história política do Brasil da segunda metade do século XX até os dias atuais?

Adalberto Müller – Caetano Veloso se insere em um momento cultural muito importante da cultura brasileira. Do ponto de vista da arte brasileira, o tropicalismo é um desdobramento do modernismo de 1922 e talvez seja o último grande movimento de vanguarda do modernismo. Em termos de impacto, o tropicalismo é o último filho da Semana de Arte de 1922. O tropicalismo e Caetano Veloso estão inseridos dentro do contexto da ditadura militar, em um momento de retrocesso político, de tortura, de lágrimas, separações, de exílio, um momento de violência estatal. Trata-se de um momento de exceção, de um Estado de Exceção, como diria Benjamin .

No caso do Caetano Veloso vale a pena destacar que ele faz parte, na canção popular brasileira, de uma tradição de compositores e intérpretes de grande talento, como Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Dorival Caymmi, Chico Buarque e Gilberto Gil, entre outros. Trata-se de uma tradição de compositores que trabalharam com a indústria cultural, mas não somente com a indústria fonográfica, mas também com todos os segmentos da indústria cultural, com o rádio no momento do surgimento do samba, com as gravadoras e a televisão. Com a televisão houve um momento muito forte de intensificação da relação entre a canção popular e esse novo meio. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram os que melhor souberam tensionar essa relação com a televisão. O próprio Caetano tem várias canções sobre a TV, como Santa Clara padroeira da televisão, e Os meninos dançam (de Cinema transcendental), por exemplo. Ele e Gil têm a consciência de que o “novo” meio e as aparições deles em festivais era importante e, com isso, estabelecem um novo paradigma de relação com a indústria. Caetano Veloso ao atualizar essa relação da canção popular com os meios massivos foi muito criticado. Havia uma geração que criticava a televisão, uma geração de intelectuais de formação francesa, sobretudo, que não tinha televisão em casa e que eram absolutamente contra a televisão. Até hoje Caetano Veloso e Gilberto Gil sabem dialogar com os novos meios, as chamadas novas mídias.

 

 

 

Do ponto de vista da relação com o mundo político, da vida política na ditadura militar, Caetano Veloso soube elaborar uma forma nova de resistência, e não uma resistência que se engaja com os movimentos sociais. Ele sempre evitou o engajamento com movimentos sociais e seguiu um pouco a vertente do Bob Dylan, participando de modo eventual em alguns movimentos. Nunca foi adepto de uma arte engajada e participante, mas, antes, de uma arte que se engaja nela mesma e procura produzir engajamento dentro dela mesma. Hoje, quando as pessoas cantam em manifestações – e eu estive nas últimas manifestações –, elas cantam “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte” (Divino Maravilhoso), e outras canções das décadas de 1960 e 1970. É preciso entender que essas músicas não eram entendidas, tal como Alegria, alegria, como expressões de resistência à ditadura, mas como formas alienadas de arte e, até mesmo, como entreguismo ao capital internacional.

 

 

 

Caetano foi acusado de ser um alienado político, mas quando a gente examina hoje as canções do Tropicalismo percebemos que, em Baby, por exemplo, não se trata de incentivar a beber Coca-Cola, mas de mostrar o que é o mundo da publicidade, o mundo da televisão, o mundo da sociedade de consumo. Depois Os Mutantes vão gravar e tudo então se transforma em uma arte engajada não só enquanto sociedade civil, mas também engajada com a transformação da indústria cultural e que se faz por dentro. Esse tipo de coisa é o que os marxistas mais ortodoxos não concordam e alegam que todo o produto da indústria cultural é produto do capital e, portanto, não é humanizador. Então o que Caetano faz a partir de 1960 é elaborar uma nova forma de resistência.

 

 

IHU On-Line – Como a conjuntura política do Brasil, especialmente do final dos anos 1960 – com o AI-5 – e dos anos 1970, impactaram a obra de Caetano Veloso?

Adalberto Müller – Essa relação do Caetano com o AI-5 e a ditadura militar foi tema de grandes controvérsias, que depois foram retomadas com a publicação do Verdade tropical (São Paulo: Companhia da Letras, 1997), sobretudo com aquele debate com Roberto Schwarz sobre cultura e política de 1964 a 1968, em que Schwarz fazia uma crítica dura ao movimento tropicalista por um certo alinhamento do movimento a algumas ideias ou tendências do capitalismo. Isso tinha a ver com o fato de que a ditadura era o braço de ferro do capitalismo brasileiro. Essa é uma controvérsia longa e não podemos resolver agora, o que me interessa é pensar como Caetano respondeu a isso.

 

 

No episódio da prisão de Caetano, mas antes também no modo como o artista vinha respondendo individualmente e coletivamente ao regime, com o tropicalismo, a forma como ele reage à truculência dos militares tem a ver com o modo como o artista se relaciona com a vida social e com a vida política. Existem modos mais engajados, mais explícitos, mas não é o caso de Caetano; embora ele sempre tenha se manifestado explicitamente contra o fascismo. É o caso do Caetano Veloso e de um “certo” Chico Buarque, pois não é toda a obra de Chico que é engajada, uma vez que nesse período ele tem canções sentimentais e canções que falam de relacionamentos afetivos que nada têm a ver com a ditadura militar.

Muitas das canções do Caetano não são engajadas porque estão preocupadas com um diálogo com a tradição do Noel Rosa, do Lupicínio etc. Enquanto você pensa, por exemplo, no engajamento do Geraldo Vandré, um dos compositores que escreveu explicitamente sobre a ditadura e cuja canção se transformou em um hino, há outros que se colocaram explicitamente contra a ditadura, mas nem sempre as canções são diretamente sobre a ditadura militar.

Caetano, nesse sentido, deve ser visto em dois momentos: um que antecede o AI-5, e outro logo depois da prisão dele. Trata-se de dois momentos-chave para se entender Caetano Veloso e cada um deles tem uma especificidade, uma característica própria. Então, quando se fala do modo como ele se relaciona e se posiciona em relação aos anos de chumbo é preciso separar esses dois momentos.

 

Antes e depois do AI-5

 

No momento que antecede o AI-5, é preciso considerar o Caetano do primeiro álbum, Domingo, e depois com Tropicália ou panis et circenses, que na essência é o Caetano dos festivais, um Caetano que está extremamente preocupado com questões que dizem respeito primordialmente ao que se pode chamar de uma trajetória ligada à história da canção no Brasil. Ele é um artista extremamente consciente da sua arte, e é preciso sempre lembrar disso. Nesse sentido é similar a João Cabral de Melo Neto, Augusto de Campos ou Clarice Lispector. A crítica que ele faz tem a ver com o posicionamento dele com a evolução histórica da música popular brasileira. Para ele, a contribuição da bossa nova para a música brasileira era inquestionável e não havia como voltar atrás, pois a considerava o “modernismo” do samba, constituindo como vanguarda. Tratava-se de um movimento que reestruturou as formas melódicas e rítmicas do samba – o samba dentro de um projeto estético, e o João Gilberto tinha um projeto estético para sua música, equivalente ao projeto estético arquitetônico e urbanístico de Brasília. É um projeto de reformulação de padrões rítmicos, de relação entre voz e instrumento, de impostação da voz.

João Gilberto representa uma ruptura em relação àquela tradição do samba, mas, ao mesmo tempo, é uma tradição que nunca deixou de existir em função da bossa nova. Caetano entendeu isso e ao mesmo tempo entendeu que o projeto da bossa nova não acompanhava mais as mudanças do rock'n roll, as grandes mudanças da contracultura dos anos 1960, que reformulou todas as tradições nacionais, inclusive com a introdução da guitarra elétrica e do iê iê iê, com uma música cada vez mais eletrônica, e cada vez mais de amplificação sonora. Ele tinha consciência de que a bossa nova representava uma revolução estética nos anos 1950; no entanto, não dava mais conta daquilo que o ouvinte exigia em termos de modificação de estruturas sonoras na canção brasileira. Ele via Os Mutantes como uma possibilidade de revolução e, até mesmo, o próprio Roberto Carlos como o nascimento do rock brasileiro e de transformação histórica.

 

 

 

Os nacionalistas da canção não aceitavam o iê iê iê, não aceitavam a guitarra elétrica, não aceitavam essa transformação da canção popular porque acreditavam que ela era fruto da intromissão da indústria cultural. Hoje é impensável considerar isso, mas havia movimentos contra a guitarra elétrica, até entre os intelectuais brasileiros, que, paradoxalmente, ouviam e gostavam dos Beatles ou dos Stones; gostavam dos Stones, mas não admitiam que a canção brasileira pudesse usar guitarra elétrica. Caetano vai ser atacado por gente que vai ver nele uma espécie de representante do capitalismo americano e vai identificá-lo com a direita, jogando-o para uma posição de conservador.

 

 

Caetano desde cedo tem uma certa relação com algumas ideias do liberalismo e sempre se aproximou muito mais de certas tendências liberais no pensamento político. Era mais inclinado a pensadores que eram livres, como Nietzsche, e, por exemplo, não estava diretamente alinhado a uma leitura do Capital que a esquerda fazia na década de 1960. Caetano sempre foi mais um livre pensador intelectual, que flutuava um pouco na leitura de vários filósofos que não eram os do programa Universidade de São Paulo - USP, não era, digamos assim, um leitor de Adorno, não era um leitor de Marx. Eu acredito que Caetano Veloso sempre teve uma postura contestatória, tanto que há pouco tempo ele passou a fazer uma releitura do estalinismo e de certas ideias do comunismo, embora nada disso impeça que ele mude de opinião de uma hora para outra.

 

 

O Caetano artista mantém uma linha de investigação da evolução histórica da canção popular brasileira, ele é alguém que experimenta e não à toa vai se aproximar, por exemplo, de Augusto de Campos. Está muito mais na linha da experimentação e por isso foi visto como um alienado, como alguém que não se engajava nos atos políticos e tudo isso vai se expressar no que ele faz no disco Tropicália, no modo como ele reutiliza certos episódios da canção brasileira, como Coração materno, de Vicente Celestino. Há um rearranjo completo por trás daquela canção dramatizada por Caetano, que pega uma canção brega e de repente se transforma um pouco numa alegoria de alguém que arranca o coração da mãe e entrega para a namorada. É mais ou menos como a história do Brasil, em que arrancaram o coração da pátria e entregaram para o capital internacional. Essa é uma forma de ler essa canção, como também se podem ler muitas músicas da Tropicália, em uma clave alegórica presente em muitas canções.

 

 

IHU On-Line – Em linhas gerais, como podemos descrever a relação artística, mas sobretudo desde sua perspectiva política, de Caetano com os anos de chumbo no Brasil?

Adalberto Müller – É importante lermos esse tema a partir de dois momentos, que é o fato de sua prisão e a releitura em Verdade tropical. Caetano foi preso e sofreu uma tortura psicológica terrível, pois além de encarcerado foi segregado e tratado de forma diferente dos intelectuais brancos que tinham curso superior. Caetano não tinha graduação e foi colocado nas piores condições possíveis, nas piores celas, nos piores espaços e ao mesmo tempo foi objeto de uma desconfiança e tortura psicológica terrível. Depois dos meses em que ficou preso, e isso tudo ele relata muito bem, ele vai ressurgir como um Caetano quebrado psicologicamente, sai da prisão praticamente tímido e mais voltado para a canção de consumo. Em Londres é outra fase e, quando retorna, retorna muito pouco preocupado com engajamento político e vai seguir uma carreira que vai cada vez mais em direção à experimentação e também a uma tentativa de dialogar com um público mais amplo. Nos anos 1980 Caetano experimenta dialogar com o rock que estava sendo feito.

Nesta época ele faz dois discos sublimes, Uns (1983) e Estrangeiro (1989). Ele traz um projeto de música bem experimental, ligado a uma espécie de rock universal, mas agregando a experiência musical brasileira, a música afro-brasileira, a música do candomblé, e esses elementos se tornam cada vez mais fundamentais. Trata-se de uma espécie de fusão rock-jazz, fusão com essa música de raiz, ultrapassando uma preocupação exclusivamente ligada à relação rock-samba e migrando para uma música muito marcada pela presença desses elementos brasileiros com experimentações percussivas importantes.

Tudo isso surge depois da prisão, de modo que ele vai estar muito menos preocupado com um posicionamento antiditadura e vai mergulhar mesmo na experimentação que ele produz desde o disco Araçá azul (1973). O disco é um fracasso de vendas, mas é um disco em que ele vai se posicionar pela primeira vez claramente como artista e vai dizer que a música brasileira precisa abrir espaço para experimentação, sem que fique restrito nem ao samba, nem à bossa nova, incorporando elementos do rock e da música afro. Este é um aspecto fundamental desse Caetano que surge depois da experiência da prisão. Eu acho que ele entende e fica muito claro para ele o que significa a liberdade do artista, que o caminho da liberdade é, sim, o mais importante para um artista. Essa liberdade pode não ser o mais importante para um político e vemos que muitos dos artistas políticos de sua geração desapareceram ou ficaram presos àquela época. Evidentemente que cumpriram o seu papel como cidadãos, mas deixaram de cumprir o seu papel enquanto artistas, que é essa busca pela liberdade de expressão absoluta, da criação absoluta.

 

 

IHU On-Line – Em 1991, dois anos depois da queda do Muro de Berlim, Caetano lança a música Fora da ordem. Em um trecho ele canta “Aqui tudo parece/ Que era ainda construção / E já é ruína”. O que o excerto fala sobre o Brasil do final dos anos 1980 e início dos anos 1990?

Adalberto Müller – É preciso pensar o cotexto e o contexto desta canção. Em primeiro lugar vou falar do cotexto. No disco Circuladô (1991) ele recupera essa vertente mais investigativa e mais vanguardista, tal como fez no Araçá azul, e dialoga não somente com as vanguardas do concretismo e com Haroldo de Campos, mas também com Oswald de Andrade. No Araçá azul tem aquela canção linda, Gilberto misterioso – “Gil engendra em Gil rouxinol” –, em que há a presença desse caráter inventivo. No Circuladô há uma tentativa de recriar e refazer o mundo pela arte, uma ideia romântica, mas aquela do romantismo alemão, do romantismo inglês, própria do surgimento da modernidade em que a dor se torna uma fazedora de mundos. As “soluções” propostas por Caetano vão em outro sentido, naquilo que está além da bossa nova e também além da questão da eletrificação do samba. É uma música pop com rock’n’roll e com a incorporação de elementos da música de vanguarda, entendida como a continuação do que a gente chama de música clássica, aquela que entra em crise depois de Wagner, depois de Mahler e que vai dar origem à música dodecafônica e serial.

 

 

As canções Fora da ordem e Cu do mundo deixam muito claro um posicionamento. Cu do mundo em relação ao ressentimento e ódio no Brasil, que a gente está vendo novamente, que está de certo modo arraigado na classe média brasileira. O modo como o compositor fala do linchamento hoje se manifesta no desejo da classe média de matar todos os pretos, favelados, fazendo aquilo que Witzel transformou em prática no Rio de Janeiro. Essa mentalidade tem gerado o extermínio, o genocídio, e isso é o “cu do mundo”.

 

 

 

A canção Fora da ordem pensa o Brasil em sentido geral, político, no contexto da queda do muro de Berlim, que para a direita simbolizou o triunfo do capitalismo e que gerou uma utopia de que o capitalismo seria a única ordem econômica possível. Mas Caetano é crítico em relação a isso, o que também significa duas coisas:

1) a nova ordem enquanto uma tendência reacionária surgida nos Estados Unidos, a “new order”. Isto é, a recusa da globalização, que acaba ressurgindo com Trump e os movimentos antiglobalização; e

2) a nova ordem imposta pelo consenso de Washington, que significava a imposição aos países em desenvolvimento, sobretudo ao Brasil, de políticas de corte de investimento em políticas públicas, da diminuição do papel do Estado, sobretudo em saúde e educação, que é a galinha dos ovos de ouro cobiçada pelo capitalismo. O capital internacional quer se apropriar de sistemas de saúde e educação, que são extremamente rentáveis do ponto de vista econômico para as grandes multinacionais, e as universidades brasileiras resistem a esse ataque que vem sendo feito desde os anos 1990.

O governo militar termina com uma grande derrota das ideias liberais de Delfim Netto, com uma máxi desvalorização cambial, uma terrível inflação em que as pessoas usavam malas de dinheiro para ir ao supermercado. Isso significa que o governo militar deu errado, fez uma política econômica liberal totalmente fracassada. Então, no começo dos anos 1990, quando Caetano lança Circuladô e a canção Fora da ordem, isso tem a ver com todo esse contexto. Quando ele fala que essa nova ordem está mostrando o menino pobre com o cano do revólver na boca, o Pixote, está mostrando a miséria nas ruas, a continuação de um regime de exploração, a continuação de um regime de segregação social, a falta de distribuição de renda e que leva fatalmente a um fracasso econômico, fala da situação de dependência externa, que é similar à situação em que nos encontramos hoje, de dependência eterna do capital financeiro internacional. É por isso que qualquer coisa sobe os preços das coisas, a gente nunca consegue se livrar da influência do capital externo sobre as nossas vidas.

O que a canção do Caetano propõe é uma “contraordem”, o yanomami na floresta, o samba, o afro, numa ideia síntese que vem a partir da música e a partir de movimentos minoritários, apontando para uma questão ambiental, ecológica, biopolítica, discutidas também por Foucault e Deleuze. Caetano está propondo novas formas de pensar esses dilemas, novos caminhos, afirmando (na canção Nu Com a Minha Música) “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor”.

 

 

Caetano vai aumentando incrivelmente o repertório de possibilidades da canção brasileira. Quando ele faz Circuladô cria novos caminhos para a música brasileira. É por isso que temos que ver Caetano não só como um grande compositor, mas como um grande intérprete e crítico da canção brasileira, alguém que pensa profundamente o Brasil na sua relação com a história e, ao mesmo tempo, na projeção de um futuro. É isso que ele pode fazer enquanto cidadão, ao passo que outras pessoas vão pegar em armas ou entrar mais diretamente na luta política, nas eleições. Caetano se dedica a pensar nossa imaginação política a partir da música, daquilo que a gente pode ser enquanto nação, enquanto pessoas capazes de criar coisas. Ele projeta um futuro para o Brasil.

IHU On-Line – Que questões políticas passam a aparecer na produção artística de Caetano a partir dos anos 2000?

Adalberto Müller – Caetano dos anos 2000 é o da conjuntura dos governos Lula e Dilma, mas para entendê-lo é preciso levar em conta a fase de internacionalização dos anos 1990. O artista caminha pari passu com a internacionalização do governo Fernando Henrique Cardoso, com o modo de inserção do Brasil no contexto global cada vez mais forte. Uma série de diplomatas com atuação forte do Itamaraty nos anos 1990 e 2000, especialmente Celso Amorim, colocam o Brasil com um papel único no cenário mundial, o que ocorreu poucas vezes com o país sendo protagonista.

Caetano está se internacionalizando com seus dois discos latinos – Noites do Norte (2000) e Livro (1997) –, com os quais ganhou o Grammy. Ele havia gravado Fina estampa (1994), só com músicas latinas, e dez anos depois A Foreign Sound (2004), com músicas em inglês e com colaboração do Jaques Morelenbaum. Caetano se dedica ao mundo latino, com que ele tinha conexões desde o início lá no tropicalismo, quando gravou Soy loco por ti América, de modo que ao mesmo tempo que se internacionaliza abraça a América Latina, que é um universo no qual estamos tão distanciados, afinal o Brasil é quase uma ilha no continente.

 

 

Repercussão Internacional

 

A obra de Caetano ganha uma repercussão internacional também por meio do cinema. Vale mencionar, por exemplo, que ele aparece no filme Happy together (1997), de Wong Kar-Wai, com uma cena belíssima nas Cataratas do Iguaçu ao som de Cucurrucucu Paloma. Depois ele aparece cantando no filme Hable con ella (2002), de Pedro Almodóvar, quando explode internacionalmente, projetando-o para a esfera global. Todas essas nuances requereriam mais tempo de análise, mas é importante assinalar que Caetano já tinha essa conexão com a América Latina desde o tropicalismo, mas ele revive isso em uma amplitude maior.

Noites do norte é um álbum que também faz dele um artista surpreendente, pois está sempre fazendo viradas na própria trajetória. Neste caso, trata-se de uma grande virada em relação às questões do Brasil, como a herança da escravidão e a virada para a discussão racial que estava surgindo no Brasil, sem contar todos os critérios de experimentação que ele nunca abandona. Todas essas dimensões da desigualdade social, que está ligada ao fator racial, a violência policial, nas periferias e favelas, estão postas neste disco; de modo que, em certo sentido, Caetano antecede alguns debates dos anos 2000. Não por acaso, essa vai ser a grande tônica da questão das cotas, questões minoritárias da biopolítica fortes nos governos Lula e Dilma, como, por exemplo, a inclusão desses públicos às políticas públicas. Tudo isso converge para o aspecto da globalização que comentei antes, de o Brasil no âmbito externo passar a fazer frente no cenário internacional e no interno discutir questões raciais, sobre o papel da mulher dentro da sociedade, a desigualdade de sexo e de gênero, a questão indígena.

 

Banda Cê

 

Em 2006 Caetano começa a gravar com a Banda , álbum que inaugura outra virada na obra do artista, que começa nesse ano e segue praticamente até 2016. No show Abraçaço (2012) ele dá uma guinada não só em direção ao rock, mas, mais uma vez, abandonando a discussão da época do tropicalismo com a guitarra já totalmente assumida. Depois que o Brasil passou pelo rock dos anos 1980, com Titãs, Cazuza etc, o gênero musical é parte inquestionável da música brasileira, da canção brasileira. Quando Caetano se associa a esses jovens penso que se trata de um fator de rejuvenescimento do próprio artista, que abandona o lado dos 50 anos dele, que era o lado Latino, e vem para esse diálogo com a “galera”. Os álbuns com a Banda Cê vão reconfigurar Caetano, impondo à sua obra uma nova sonoridade, com uma estética que traz toda uma questão de figurativização. A figurativização quer dizer essa capacidade de criar imagens com uma linguagem, criar metáforas, criar associações entre palavras, a paronomásia . Isso remete à relação dele com os poetas concretos da década de 1960/1970.

 

Refundação do Brasil

 

O Caetano dos anos 2000 é um Caetano que também expressa a reformulação do Brasil durante o governo Lula, um movimento de recriação do país. Trata-se de um momento importantíssimo, dos mais importantes aliás, da nossa história e que, portanto, era possível se recriar, experimentar, jogar com o mercado. Não à toa esses shows da Banda Cê trouxeram Caetano novamente para o grande mercado, sobretudo para o público mais jovem que passa a ir aos shows dele. Nesse momento Caetano se distancia da própria geração dele e da minha geração.

 

 

Acredito que isso só foi possível porque a gente estava vivendo um bom momento no país, que infelizmente acabou com o golpe de 2016. Se olharmos para nossa história, veremos que toda vez que o Brasil está se encaminhando para uma refundação, de questionar as bases que dão vazão à desigualdade, a direita brasileira chama os seus cachorros, seus cães de guarda, que são os militares. As Forças Armadas do Brasil não têm uma tradição de guerra; militar no Brasil é praticamente um inútil dentro do cenário global. Destruiu o Haiti e ainda hoje testemunhamos as consequências da intervenção brasileira no país caribenho. No fundo, o militar brasileiro está sempre à espreita, em casa, esperando para dar um golpe. A direita brasileira percebeu o “perigo” que era Dilma Rousseff, que pretendia aprofundar mais a regeneração do país, e deu um golpe, chamando os militares. O que vemos hoje é o desastre ao qual Bolsonaro dá continuidade. Os militares vieram novamente estragar a nossa festa. Não podemos dar mais anistia aos militares, depois desse momento é preciso dar um basta, encerrar a participação deles na história e enterrá-los de vez no caixão da história para que possamos nos refundar. Penso que olhando para as canções de Caetano temos pistas para uma saída.

IHU On-Line – Qual a atualidade do pensamento crítico e da postura artística de Caetano Veloso no Brasil atual, de crescimento do conservadorismo e da ascensão política da extrema direita?

Adalberto Müller – Eu tenho um amigo venezuelano, que foi meu professor de música em Brasília, que fala uma coisa: é uma honra ter nascido no século do Caetano Veloso. Eu nunca me esqueci disso, e penso que Caetano deixa para nós, nesse último disco Ofertório (2018), uma nova saída. Existem pessoas que apontam para problemas do Brasil, como, por exemplo, em termos de arte, é o caso de Machado de Assis, de Graciliano Ramos, mas outras apontam para saídas, como é o caso de Guimarães Rosa, de Clarice Lispector e de Caetano Veloso, por exemplo. Há os que estão no meio do caminho, como Drummond, e os que constroem caminhos, como João Cabral de Melo Neto, que propõe uma refundação, com Educação pela pedra (livro de 1966).

Na live que Caetano fez com os filhos, do disco Ofertório, ele aponta para um caminho de repensar a família a partir do tempo que a gente vive. É uma família ao inverso da família do Bolsonaro. A família que Caetano Veloso apresenta no ofertório é uma família que faz brilhar, pensando que gente é feita para brilhar. Do outro lado o que existe é uma quadrilha-família, uma “fadrilha”, uma família de destruição, ligada às milícias e a figuras muito sombrias. Por outro lado, a família de Caetano é uma “fabrilha”, também no sentido fabril, de que todo mundo produz mundos, fala fabricando. No meio de toda esta crise ele procura mostrar a família, um gesto muito bonito de trazer a família para o palco, então no repertório tem a canção Leãozinho e no palco com ele está tocando e cantando o filho Moreno. As mães dos filhos estão lá também, nas canções. Ele cria uma família muito grande, com muitos contatos e muitas conexões em muitas redes e quando a gente vê isso na live, no meio da pandemia, temos uma sensação boa, de saber onde se ancorar.

Quando ele diz que “gente é pra brilhar”, não para morrer de fome, sua mensagem política é clara. Caetano reinaugura a esperança utópica, de que o que vem será melhor. Nesse sentido eu me sinto como parte de uma geração que acredita que as coisas podem mudar. Caetano Veloso me dá uma alegria imensa de fazer parte, ainda que na periferia de tudo o que acontece, de tudo isso que ele propõe como saída.

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

 

De 12 de agosto a 09 de setembro de 2021, ocorre o Curso Livre: TransCaetanos - Tempo, tempo, tempo, tempo, a ser ministrado pelo Prof. Dr. Pedro Bustamante Teixeira – UFJF. O objetivo do curso é propor uma retrospectiva na carreira de Caetano Veloso como modo de apreensão do fim de um caminho e do início de uma nova perspectiva para a música brasileira no século XXI. 

 

Curso Livre: TransCaetanos - Tempo, tempo, tempo, tempo

 

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