Acumulação social da violência no Brasil. Entrevista especial com Daniel Hirata

É fundamental debater o controle democrático da atividade policial, diz o sociólogo

Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil

Por: Edição: Patricia Fachin | 29 Julho 2021


“O que vai sobrar como elemento de construção política para as eleições de 2022? O velho discurso que funciona há anos no Brasil: a oposição entre o chamado cidadão de bem e o criminoso”, lamenta o sociólogo Daniel Hirata, ao comentar as perspectivas para o futuro tendo em vista a realidade presente do país mais violento da América Latina.

 

Segundo ele, apesar de a região concentrar somente 8% da população mundial, “cerca de 40% do total dos homicídios no mundo”, quase 150 mil por ano, ocorrem na América Latina. Desse total, informa, “o Brasil concentra em média 50 a 60 mil homicídios por ano. Isso significa 45% dos homicídios da América Latina. Portanto, numa conta rápida, o Brasil, que tem 3,6% da população mundial, responde, sozinho, por 18% dos homicídios no mundo”. Os dados foram apresentados na conferência “Regulações pela violência: impacto das operações policiais e as ações das milícias”, ministrada virtualmente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 15 de julho deste ano.

 

Uma parte significativa desses homicídios é praticada por agentes do Estado. “Em 2013, as forças policiais do Rio de Janeiro respondiam por cerca de 13% do total de mortes no estado. Em 2018, ano da intervenção federal no Rio de Janeiro, esse número passou para 28%. Em 2019, ano de virada dos governos de extrema direita, a polícia respondeu por quase 40% dos homicídios”, menciona. Na avaliação dele, as operações policiais são parte desse problema porque nas três últimas décadas elas são “o principal instrumento da ação pública na área de segurança pública”.

 

A seguir, reproduzimos a conferência de Hirata no formato de entrevista. Além dos dados mencionados acima, ele também comenta a atuação das forças policiais no Rio de Janeiro durante a pandemia, as relações entre as milícias e os poderes instituídos e defende a criação de protocolos para que o “uso da força seja compatível com as formas democráticas”.

 

Daniel Hirata (Foto: Reprodução | Youtube)

 

Daniel Hirata é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Atualmente, leciona no Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense - GSO-UFF, no Programa de Pós Graduação em Sociologia - PPGS/UFF e no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito - PPGSD-UFF. É pesquisador do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana - NECVU-UFRJ e do Núcleo de Pesquisas em Economia e Cultura - NUCEC-UFRJ. Coordena o Núcleo de Estudos dos Novos Ilegalismos - GENI-UFF.  



Confira a entrevista.

 

IHU – Quais são as principais constatações das pesquisas realizadas no Núcleo de Estudos dos Novos Ilegalismos?

Daniel Hirata - Temos nos dedicado a atender a questão do uso da força em geral e das operações policiais em particular, no Rio de Janeiro. Para iniciar, queria lançar alguns dados para que vocês tenham uma dimensão do problema do uso estatal da força no Brasil. Na América Latina, região que concentra em torno de 8% da população mundial, ocorrem cerca de 40% do total de homicídios no mundo: quase 150 mil por ano, em média. Desse total, o Brasil concentra cerca de 50 a 60 mil homicídios por ano, o que representa 45% dos homicídios da América Latina. Portanto, numa conta rápida, o Brasil, que tem 3,6% da população mundial, responde, sozinho, por 18% dos homicídios no mundo. Significa que a América Latina é a região mais violenta do planeta e que o Brasil concentra o maior volume desses homicídios.

A questão central é: quantos desses homicídios são cometidos pelo Estado? Para termos comparativos, usando os dados do Uniform Crime Reporting, do FBI, percebemos que, ao longo dos últimos cinco anos, todas as polícias dos EUA, conhecidas por serem violentas, racistas, brutais, mataram em média 450 pessoas por ano. No Brasil, que é campeão mundial das mortes praticadas por policiais, foram mortas cerca de seis mil pessoas nos últimos anos. Desse total, cerca de 25% se concentram no Rio de Janeiro. Isso significa que, nos últimos anos, mais de mil pessoas foram mortas pelas polícias do estado do Rio de Janeiro. Ou seja, um estado com 17 milhões de pessoas mata quatro vezes mais do que todas as polícias dos EUA juntas, sendo esse um país de quase 330 milhões de habitantes.

Cumpre dizer que desde 2014 estamos assistindo no Rio de Janeiro – com exceção do ano de 2020 – a um crescimento muito grande das mortes praticadas por agentes de Estado. Em 2013, as forças policiais do Rio de Janeiro respondiam por cerca de 13% do total de mortes no estado. Em 2018, ano da intervenção federal no Rio de Janeiro, esse número passou para 28%. Em 2019, ano de virada dos governos de extrema direita, a polícia respondeu por quase 40% dos homicídios. Em resumo, os dados indicam que a América Latina é violenta, o Brasil é violento e o Rio de Janeiro, além de ser muito violento, se caracteriza por uma violência impulsionada pelas forças policiais do Estado.

 

 

IHU – Em quais situações e circunstâncias acontecem as mortes praticadas pelos agentes do Estado?

Daniel Hirata - Aqui entra uma questão importante porque há uma característica das ações policiais no Rio de Janeiro: são operações que por vezes mobilizam centenas de homens armados com fuzis, há a presença de veículos blindados e helicóptero blindado, e as operações acontecem rotineiramente.

Se a letalidade policial é um dos maiores problemas públicos do estado do Rio de Janeiro, as operações policiais são parte desse problema. Elas vêm se constituindo historicamente, ao menos nos últimos 30 anos, como o principal instrumento da ação pública na área de segurança pública, onde se concentram os recursos humanos, tecnológicos e financeiros do Estado. Mas essas operações acontecem completamente ao revés da lógica das políticas públicas. Ou seja, as operações policiais não acontecem baseadas num diagnóstico que precede a ação, num diagnóstico baseado em dados e evidências, não são transparentes na sua execução e não prestam contas sobre os seus resultados no momento posterior à sua realização. Esses são três pilares que caracterizam qualquer tipo de política pública na área de segurança, de saúde, educação etc., mas nada disso acontece com relação às operações policiais.

 

 

Brutalidade, corrupção policial e impunidade

O que nos resta? Ações de uso da força indiscriminada, sobretudo entre as populações pobres, negras e residentes nas favelas ou, por outro lado, ações mobilizadas em razão de interesses pessoais, quando não criminais, como é o caso das milícias. Ou seja, por um lado, temos um problema do uso indiscriminado da força e, por outro, temos um problema da corrupção policial, que tem a ver com a questão das milícias. Não há responsabilização legal nem com relação ao uso indiscriminado da força nem com relação à corrupção. Evidências e pesquisas feitas pelos professores Ignacio Cano e Michel Misse mostram que em mais de 99% dos casos envolvendo mortes perpetradas por agentes do Estado, o Ministério Público, que é o órgão responsável pelo controle externo das polícias, procede ao arquivamento. Portanto, trata-se de um cenário de brutalidade, corrupção policial e impunidade. É essa estruturação sistêmica que permite que o problema continue, se desdobre e se agrave ano após ano.

Esse é um problema que tem feito das forças policiais do Rio de Janeiro instituições quase autônomas ao poder eleito. Portanto, chego à constatação de que essa é uma das maiores linhas de força da construção do autoritarismo no Brasil; ou seja, quando a ordem social e a construção da ordem se descolam da lei, o que temos são verdadeiramente ações de cunho autoritário.

Nunca é demais lembrar que nos limites do Estado de Direito a autoridade pública reivindica, sim, o monopólio legítimo da violência, mas não o de exposição ilimitada sobre a vida, que é o que caracteriza os regimes autoritários. Por isso, para que o uso da força seja compatível com as formas democráticas, é fundamental – e essa é a questão que gostaria de discutir – que coloquemos em debate a questão do controle democrático da atividade policial. Só o controle democrático da atividade policial pode ser uma saída e uma solução para a estruturação sistêmica que expus rapidamente aqui.

 

 

IHU – Na prática, como se daria o controle democrático da atividade policial?

Daniel Hirata – Para tratar disso, vou puxar dois pontos que organizam o raciocínio sobre o problema da letalidade e da violência policial no Rio de Janeiro: a brutalidade policial, de um lado, e a corrupção, de outro. Do ponto de vista da brutalidade policial, é muito importante dizer que essas operações não tinham, até bem pouco tempo, nem mesmo uma formalização normativa sobre o que seria uma operação policial. Somente depois de 2017 foi elaborada uma instrução normativa pelas forças policiais, na antiga e extinta Secretaria de Segurança Pública, sobre o que era uma operação policial. Portanto não temos nenhum registro acerca de quais circunstâncias, por que e quais os efeitos de uma operação policial.

 

Produção de dados sobre operações policiais

Não temos dados oficiais sobre operações policiais. Foi em função dessa preocupação que o grupo que coordeno e uma série de organizações da sociedade civil, como a plataforma Fogo Cruzado, a Redes da Maré, a Secretaria Municipal de Segurança Cidadã - Sesec, a Universidade Cândido Mendes, vêm se mobilizando para que se tenham dados passíveis de serem analisados para caracterizar as operações policiais tal qual acontecem no Brasil.

 

 

Isso [falta de dados] não é casual, porque a maior parte dos dados que utilizamos para discutir as questões de segurança pública vem do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, que tem como fonte os registros de ocorrência lavrados nas delegacias da Polícia Civil. As operações policiais não aparecem nos registros de ocorrência: há um vício de fonte, que não trata dessa questão e, portanto, não é trabalhada na conversão estatística feita pelo Instituto de Segurança Pública. É importante colocar essa questão da produção dos números sobre as operações policiais porque, do ponto de vista mais geral sobre a questão da letalidade policial, me parece que o enfrentamento dessa questão vem avançando antes como uma resposta à mobilização da sociedade civil do que pelas mobilizações governamentais do governo do Rio de Janeiro. Então, a produção de dados é uma ação da sociedade civil para que se possa dar visibilidade e objetividade a um fenômeno tão importante que ceifa a vida de tantas pessoas todos os dias no Rio de Janeiro.

O segundo conjunto de ações que também veio da sociedade civil são as ações judiciais, que têm sido importantes nos últimos anos no Rio de Janeiro. Na mesma medida que a letalidade, a brutalidade policial e o autoritarismo foram avançando no estado, e os canais de comunicação política foram sendo paulatinamente esvaziados. É importante lembrar que em 2016 houve uma primeira iniciativa de ação judicial, que foi a ação civil pública da Maré, a qual começava a tratar da questão das operações policiais pela primeira vez. No âmbito dessa ação civil pública, algumas conquistas foram logradas. No bojo dessas ações judiciais também foi e vem sendo importante a ação de descumprimento do preceito fundamental 635 – ADPF das favelas –, que restringiu as operações policiais durante o período da pandemia.

 

 

Operações policiais durante a pandemia

Com o início da pandemia em 2020, num momento sanitário e humanitário dramático, operações policiais estavam atrapalhando os serviços de saúde e ajuda humanitária: operações estavam ocorrendo no período de doações de cestas básicas, por exemplo, e tudo isso culminou no caso João Pedro, o menino que morreu durante uma operação policial. Nos EUA nesse mesmo momento estava acontecendo o caso George Floyd, que também colocou em pauta a questão da letalidade policial.

No dia 04 de junho de 2020, o ministro Edson Fachin, que era o relator da ADPF das favelas, decidiu, de forma monocrática – depois isso foi aprovado no plenário do Supremo Tribunal Federal - STF –, pela suspensão das operações policiais durante o período da pandemia, salvo em casos absolutamente excepcionais. Essa decisão interrompeu, no ano de 2020, o crescimento contínuo da violência policial que, como disse, vinha desde 2014 – de 2013 até 2019 houve um crescimento de 313% no aumento da letalidade policial. Com a decisão do ministro Fachin, houve uma diminuição de 34% da letalidade no ano de 2020. Pelo nosso cálculo, foram salvas até agora 288 vidas.

 

 

É importante dizer que no momento em que tivemos uma redução da letalidade policial, com a preservação da vida, não foi observado o aumento nem dos crimes contra a vida nem dos crimes contra o patrimônio. Ou seja, os casos de homicídios, latrocínios e lesão corporal seguida de morte tiveram um decréscimo de 24%. Os crimes contra o patrimônio, roubos e furtos, tiveram uma queda ainda maior, da ordem de 40%. Esse fato é muito importante de ser destacado porque prova que o respeito aos direitos humanos e à dignidade da vida humana e o controle democrático da atividade policial não se opõem ao controle do crime. É uma falácia, que não tem nenhuma base em dados e evidências, acharmos que a brutalidade policial é eficiente para o controle do crime. Esse resultado da ADPF das favelas aponta para uma solução de curtíssimo prazo que reduziu a letalidade policial para 70% em todo o acumulado.

 

Descumprimento da decisão do STF

A partir do mês de outubro de 2020, também passamos a observar o descumprimento da decisão do STF. De outubro até dezembro, houve um aumento bastante significativo das operações e da letalidade policial. De lá para cá, tivemos um aumento de mais de 85% das operações policiais e quase 200% da letalidade policial. Muitas chacinas foram realizadas nesse período – mais de 21 foram notificadas – e as forças policiais do Rio de Janeiro passaram a responder por mais de 40% do total de homicídios também nesse momento.

Há um problema que é constitutivo da decisão do ministro Fachin: a produção proposital da ambiguidade da decisão. Na sua decisão, ele disse que as operações policiais estariam suspensas, salvo em casos absolutamente excepcionais, ou seja, elas estariam restritas a casos excepcionais. Mas o fato é que as forças policiais do Rio de Janeiro e o governo do Estado vêm afirmando que o Rio de Janeiro é uma grande excepcionalidade, de modo que, se tudo é excepcional, não existe limite restritivo para as operações policiais. A rede de pesquisadores sobre violência, segurança pública e direitos humanos elaborou uma nota técnica justamente sobre este ponto, tratando dos marcos legais das normativas das próprias polícias sobre as operações policiais, dos protocolos e tratados internacionais sobre o uso de força, mostrando que aquela decisão do colegiado do STF só poderia ser interpretada em termos restritivos durante a realização de operações policiais. Mas o fato é que esse desrespeito continuou e, desde o início deste ano, verdadeiramente estamos num momento de afronta da decisão do STF, dado que os patamares das operações policiais e da letalidade policial já se encontram superiores àqueles que nós víamos nos meses anteriores à liminar do ministro Fachin.

As forças policiais se permitem, com a anuência do governo do Estado do Rio de Janeiro, afrontar uma decisão do STF. Me parece que isso inclusive transcende a questão da própria letalidade policial e chega a um ponto que diz respeito ao conjunto das instituições da democracia brasileira. Afrontar a Suprema Corte do Brasil é afrontar a própria ideia de democracia no país.

Apesar de isso ser um absurdo, não chega a ser surpreendente, visto que o desrespeito às leis é marca característica das operações policiais há muito tempo no Rio de Janeiro. Parte desse desrespeito ocorre em função da corrupção que se faz pelo engajamento de agentes do Estado nas chamadas milícias.

 

 

IHU – Como é a atuação da polícia em zonas controladas por grupos armados e milicianos?

Daniel Hirata – Fizemos um mapa dos grupos armados do Rio de Janeiro a partir de dados do Disque Denúncia para apontar quais eram as áreas de controle desses diferentes grupos: das facções do tráfico de drogas, como o Comando Vermelho - CV, o Terceiro Comando Puro, o Amigos dos Amigos, e das milícias. Chegamos à conclusão surpreendente de que a maior parte do território e da população do Rio de Janeiro estava sob o comando territorial das chamadas milícias. Elas estavam controlando quase 30% dos bairros do Rio de Janeiro, o que significa uma população de mais de dois milhões de pessoas, ao passo que o tráfico de drogas não conseguia chegar a essa porcentagem. Ou seja, a milícia sozinha já controlava uma porcentagem da população superior à do tráfico de drogas.

Quando percebemos – e esse é o ponto a que eu queria chegar – a incidência das operações policiais nessas áreas de controle territorial dos grupos armados, os números são ainda mais assustadores: mais de 40% das operações policiais ocorrem em áreas de controle do Comando Vermelho, ainda que o CV não tenha o controle de 10% da superfície territorial do Rio de Janeiro. No caso das milícias, elas concentravam 6,5% das operações policiais, sendo que já controlavam a maior parte do Rio de Janeiro. O que isso nos indica e nos faz pensar? Em primeiro lugar, que há uma diferenciação no uso da força que é muito nítida, seguindo o tracejado disputado dos territórios sob o controle dos grupos armados. Ou seja, há grupos que enfrentam muito menos repressão estatal que outros.

Nós já nos posicionamos contra a ideia de que as forças policiais são eficientes para o controle dos grupos armados; elas não são. Contudo, as operações policiais causam prejuízos a esses grupos e alteram a geopolítica do controle territorial entre eles. Portanto, o fato de ter muito mais operações direcionadas a áreas do Comando Vermelho do que das milícias, aponta, sim, essa diferenciação no uso da força segundo os grupos criminais.

É muito importante esse tipo de circunscrição do debate para entendermos que, de um lado, há o problema da brutalidade policial e, de outro, a questão da corrupção, do uso privado da força no favorecimento de grupos armados e criminais. Com relação a isso, não há protocolos que consigam dar conta, a não ser protocolos de responsabilização. Tanto do ponto de vista da contenção da brutalidade policial quanto do ponto de vista da responsabilização pelos atos ilegais praticados por agentes de Estado, a situação tem avançado por conta da mobilização da sociedade civil.

 

 

IHU – Quais os sinais efetivos dessas ações da sociedade civil?

Daniel Hirata – Todas essas mobilizações culminaram numa audiência pública que ocorreu no mês de abril deste ano, quando o ministro Fachin chamou autoridades públicas, policiais, estatais, judiciais, movimentos sociais, que pela primeira vez puderam falar no Supremo Tribunal Federal, movimentos de favelas, de familiares de vítimas, pesquisadores; ou seja, os atores que fazem parte e que discutem a questão da letalidade policial no Rio de Janeiro. Foram dois dias de muitas e produtivas conversas.

No mês seguinte, ocorreu a chacina do Jacarezinho. Aquela foi a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, só comparada a chacinas de grupos de extermínio que atuaram de forma extralegal. A chacina do Jacarezinho, ao contrário, foi uma ação chancelada pelo governo do Estado, pelas autoridades policiais e foi extremamente letal: 27 mortos e um policial que veio a falecer. Por si só, esse número de pessoas impactadas pela operação já seria escandaloso. Mas não é só a brutalidade policial que está em jogo na chacina do Jacarezinho. Teve um espectro político que pairou durante todo o momento da operação e pós-operação, a começar pelo nome da operação que deu origem à chacina: Exceptis, que fazia claramente uma menção à excepcionalidade da decisão do ministro Edson Fachin.

 

 

Um morador jovem foi colocado morto sobre uma cadeira de plástico, com os dedos na boca, como se fosse uma espécie de deboche ao que estava acontecendo. Logo depois, foi feita uma coletiva de imprensa da polícia civil, que foi quem dirigiu a operação, em que o subsecretário da polícia, Rodrigo Oliveira, classificou a ADPF das favelas como ativismo judicial que impedia o trabalho da polícia. É um linguajar muito próximo àquele utilizado pelos grupos que estão no governo federal atualmente. Inclusive, o presidente esteve no Rio de Janeiro dez horas antes da operação do Jacarezinho para “estreitar os laços entre o Estado e a União”.

O vice-presidente, logo no dia seguinte à operação, chamou os 27 mortos de bandidos. O governador Cláudio Castro chamou a chacina de “um ato de libertação do povo”. A Procuradoria Geral do Estado classificou a operação como “operação pela vida”. Ou seja, esse espectro político chama a atenção para os efeitos de construção do autoritarismo no país, passando diretamente pelas ações das forças policiais. Temos agora grupos que estão atuando na linha de frente da construção e da erosão das nossas instituições democráticas, que devem ser controlados. É necessário que discutamos o controle democrático da atividade policial. Sem esse controle vai ser muito difícil a preservação das instituições democráticas como um todo.

 

 

IHU - Como o senhor percebe as ações do pacote “anticrime” do governo federal? Haverá recrudescimento desse assunto nas eleições de 2022? Como o aspecto policial/militar entrará nos discursos eleitorais?

Daniel Hirata – Essa é uma preocupação que tenho e posso dizer que talvez seja a minha maior preocupação neste momento. É por isso que menciono a chacina do Jacarezinho e o espectro político que pairou antes, durante e depois da chacina. Quer dizer, o processo de autonomização das forças policiais com relação aos poderes eleitos, às leis, às instituições democráticas, tem ocorrido de forma muito vigorosa nos últimos anos. Me parece que isso ocorre também em função de um estímulo que vem do governo federal e das forças autoritárias do país, para o rompimento da cadeia de comando e controle das polícias com relação aos poderes eleitos.

Existe um estímulo constante e permanente: há motins das forças policiais. Não custa lembrarmos, por exemplo, o caso que aconteceu no Ceará, quando ocorreram motins, chacinas e toques de recolher impostos pelos policiais amotinados. Um ex-governador foi baleado quando tentou irromper uma barricada na cidade de Sobral. Também não custa lembrar a politização no caso do policial na Bahia ou o que aconteceu nas manifestações de Pernambuco, quando várias pessoas foram atingidas por balas de borracha, perdendo a visão, e uma vereadora foi agredida, em ações que foram feitas ao arrepio do governador Paulo Câmara. Recentemente, no estado do Amazonas, ocorreu uma verdadeira chacina na cidade de Tabatinga, que foi precedida de outras chacinas. São muitos casos, de Norte a Sul do país, em que percebemos que as forças policiais têm atuado de forma autônoma, politizada, não seguindo os poderes eleitos e as leis que deveriam ser imperativas e restritivas quanto ao uso da força. O controle interno das forças policiais, as corregedorias, por exemplo, não têm sido eficazes para conter a violência policial e a autonomização política das forças policiais. Os controles externos, que deveriam ser atribuição do Ministério Público, também não estão sendo efetivos para tornar as polícias instituições mais técnicas do que politizadas.

 

 

Respondendo à pergunta: me parece que daqui até a eleição casos desse tipo vão continuar acontecendo porque nós temos um governo federal que não pode dizer, de maneira nenhuma, que cuidou da pandemia. A CPI da Covid está deixando isso bastante claro. Também não pode dizer que cuidou da economia e dos efeitos econômicos da pandemia, nem das pessoas de forma geral. O que vai sobrar como elemento de construção política para as eleições de 2022? O velho discurso que funciona há anos no Brasil: a oposição entre o chamado cidadão de bem e o criminoso. Essa categoria do criminoso, do bandido e do vagabundo é expansiva, porque começa com alguém que comete um ato criminal, depois se amplia para um perfil racializado de classe que é muito claro. Esse discurso vai se aprofundando, e se a brutalidade policial não tem eficácia para o controle do crime, tem eficácia política e é mobilizada politicamente. Esse sentimento de medo, de ódio tem um efeito político bastante importante e evidente, que funcionou nas últimas eleições presidenciais e em muitos momentos da história brasileira. Então, tenho receio de que esse tipo de instrumentalização das polícias e de incitação de amotinação das polícias passe a compor o nosso cenário até 2022. Isso seria deletério porque vai de encontro à preservação das nossas combalidas instituições democráticas.

 

 

IHU - Por que as forças policiais e militares têm um protagonismo tão grande na América Latina?

Daniel Hirata – Essa é uma questão profunda e é difícil resumi-la em poucas palavras. Ela toca no coração da questão principal que tentei levantar, que é o uso da força, o qual precisa ser democratizado no Brasil e na América Latina. É necessário que o uso da força seja compatível com as instituições democráticas. Isso não foi feito desde a formação do Estado brasileiro e dos Estados latino-americanos em geral. Talvez o Brasil seja um dos piores exemplos de como isso foi equacionado. Em países como Argentina e Uruguai, o problema da letalidade não é tão grave como no caso brasileiro porque eles conseguiram, de alguma maneira, enfrentar a questão de como se usa a força no mundo democrático.

Todos nós na América Latina temos um passado colonial que nos marca. No caso do Brasil, o passado é fortemente racista, contra populações indígenas, negras etc. Além disso, o país viveu alternâncias de períodos democráticos e autoritários e, nos períodos autoritários, houve um aprofundamento do protagonismo das forças policiais. A ditadura militar “desaquartelou” as polícias militares para fazer um enfrentamento à “subversão” e elas nunca mais foram aquarteladas e continuam fazendo policiamento ostensivo. Então, essa é uma questão difícil porque passa por vários episódios da nossa formação estatal e societária. A constituinte também não conseguiu enfrentar, de forma mais direta, essa questão, embora tenha enfrentado outras. Ou seja, temos problemas de longuíssimo prazo, que têm a ver com a nossa herança colonial, problemas de médio prazo, de agravamento, que têm a ver com ditaduras militares na América Latina, e problemas posteriores, de como se constituiu a própria democracia depois da transição do período militar. São muitos problemas acumulados. O professor Michel Misse fala da acumulação social da violência no Brasil; é uma maneira muito arguta para pensarmos essas questões.

 

IHU - Como vê a relação das milícias na política brasileira e carioca?

Daniel Hirata – As milícias têm raízes históricas muito importantes e o professor José Cláudio Alves já apontou e vem reforçando isso em vários de seus trabalhos. Elas têm raízes profundas no Rio de Janeiro, sobretudo no que diz respeito à sua relação com os grupos de extermínio, como os esquadrões da morte, que, diga-se de passagem, são grupos que surgiram como consequência desses vários grupamentos especiais. A Coordenadoria de Recursos Especiais - Core [unidade de elite da Polícia Civil do Rio de Janeiro], que organizou a chacina do Jacarezinho, foi criada durante a ditadura militar. Antes disso, o Serviço de Diligências Especiais, criado pelo general Amaury Cruel, que deu origem aos 12 homens de ouro no Rio de Janeiro, já era naquele momento um grupamento cujas prerrogativas de atuação em favelas eram ilimitadas e que, posteriormente, deu origem aos grupos de extermínio e aos esquadrões da morte. As milícias têm essa herança histórica de autonomização das polícias, de utilização desses grupos para fazer uma limpeza racial e social no país.

 

 

Atuação das milícias a partir dos anos 2000

Nos anos 2000, tem uma nova versão que estruturalmente é muito semelhante aos grupos de extermínio. São grupos que vão se formar sobretudo na zona Oeste do Rio de Janeiro, mas também na Baixada Fluminense e que vão atuar em vários ramos relacionados à expansão urbana do Rio de Janeiro. Essa é uma região de assentamento mais recente no Rio de Janeiro e a urbanização foi se fazendo na mesma medida em que esses grupos iam expandindo seus negócios por ali: mercado de transportes, imobiliário, grilagem, compra e venda de imóveis, administração condominial, serviços urbanos de água, luz e internet. Ou seja, o fazer da cidade se fez em conjunto com esses grupos que tinham bases econômicas bastante sólidas.

O estudo que realizamos em conjunto com o Observatório das Metrópoles mostra que, no mesmo período em que ocorreram muitas operações policiais em áreas do tráfico de drogas e poucas em áreas de milícias, ocorreu também uma expansão imobiliária nessas regiões e que, portanto, esses grupos puderam não só se beneficiar de uma repressão menor das forças policiais, mas também se beneficiaram de um mercado imobiliário muito aquecido. Ou seja, eles estavam ganhando muito dinheiro por um lado, e gastando menos dinheiro com as disputas territoriais, de outro. Portanto, esses grupos tiveram uma alavancagem muito grande, estabelecendo relações com vereadores, deputados estaduais, federais, com uma parte do sistema judicial também, de modo que a influência política e institucional foi crescendo.

Não vou entrar em detalhes sobre isso, mas o caso da execução da vereadora Marielle Franco tem a ver com isso. Por conta da delação premiada da namorada do Adriano da Nobrega, que era o chefe do Escritório do Crime, grupo que estava vinculado à execução da Marielle, as duas promotoras que estavam atuando no caso se retiraram, a delegada da Divisão de Homicídios se retirou, e ninguém sabe de onde veio essa interferência. Mas isso vai iluminando o grau de contaminação das instituições no Rio de Janeiro, o grau de permeabilidade de poderes estatais e criminais, e quanto essas coisas estão acontecendo em convergência. Não há exatamente um poder paralelo de duas linhas que não se encontram; temos poderes que são absolutamente convergentes e se estruturam nas suas relações políticas e econômicas. Ou seja, essas bases políticas e econômicas vão construindo, do chão da vida cotidiana desses lugares até as instituições políticas do Brasil, relações de muita promiscuidade. Há um desafio no enfrentamento das milícias por conta desse grau de relações [que elas têm] com o Estado.

 

 

Não me parece que o problema das milícias vai se resolver com ações puramente repressivas, com operações policiais. As operações policiais são ineficazes para o enfrentamento dos grupos de tráfico de drogas. No caso das milícias, elas são ainda mais ineficazes porque o problema não está ali – ele poderia ser enfrentado por vias regulatórias, e isso seria mais eficiente para enfrentarmos esses grupos de forma estrutural. Mas isso não vem sendo feito, então não temos motivo para ser otimistas em relação a isso. E o cenário é preocupante porque esses grupos atuam politicamente. O tráfico de drogas pode ter candidatos mais ou menos preferenciais, mas no caso dos grupos de milícias, eles têm candidatos próprios. Esse é realmente um tipo de organização muito mais perigoso, muito mais estruturado, que atua mais diretamente construindo poderes fáticos e sobre as instituições do Estado brasileiro.

Essa não me parece ser uma questão somente do Rio de Janeiro. Temos todos os ingredientes no campo e na cidade para a proliferação de milícias. Processos de “miliciarização” já estão acontecendo em várias regiões do país. É a lógica da “jagunçagem”, a lógica histórica do Brasil que faz desses grupos fontes de apoio do poder político e econômico. É perigosa a expansão desses grupos porque isso vai criando as condições de destruição da nossa combalida democracia.

 

 

IHU - Como o senhor percebe a adesão cada vez maior dos policiais e militares na política, com viés de participação em partidos de "direita" que parecem alimentar um paradigma de violência, de necropolítica?

Daniel Hirata – O Fórum Brasileiro de Segurança Pública - FBSP fez recentemente uma pesquisa muito interessante que mostra que uma parte significativa dos policiais brasileiros interage com grupos de extrema direita de forma mais ou menos frequente. Esse com certeza foi um dos estudos pioneiros a mostrar esse tipo de relação. No mundo inteiro, forças policiais, pela natureza do trabalho, tendem a ter uma aproximação ideológica com grupos mais à direita do que à esquerda. Isso não é uma novidade nem um problema desde que tenhamos um controle democrático sobre a atividade policial. As pessoas podem ter suas concepções políticas e ideológicas e isso é normal e natural. A questão é quanto isso se presta a fazer de uma atividade de Estado algo que possa se jogar contra o próprio Estado, o Estado de Direito e a democracia. Aí nós temos um problema grave, e não é no mundo inteiro que isso acontece. Portanto, é fundamental enfrentarmos essa questão, termos protocolos muito bem definidos sobre o uso da força, reforçarmos esses protocolos que garantem que o uso da força seja feito de forma objetiva, protegendo tanto o policial, que pode atuar em legítima defesa, como a sociedade civil, contra a brutalidade policial. Esse seria um sistema de mediação e garantidor de que o uso da força não será feito de forma ilimitada.

No ponto em que estamos no Brasil, é importante fortalecer as cadeias de comando das forças policiais, ou seja, fortalecer o comando dos batalhões, do estado maior, da polícia militar, da chefia da polícia civil e, sobretudo, dos comandos dos governos eleitos, dos governadores, sobre as forças policiais. A lógica é mais ou menos a seguinte: nós deveríamos fazer a cessão parcial do uso da força para que o uso da força seja feito segundo certos parâmetros isonômicos para todo mundo. Isso exige que os poderes eleitos sejam os representantes dessa cessão. Mas o que observamos é que os poderes eleitos não têm o controle sobre as armas.

 

 

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