16 Junho 2017
Esqueça muito do que você leu por aí: não há catástrofe humanitária nem Maduro está para cair; mas há manifestantes quase todos os dias nas ruas, e eles não são “terroristas”, como dizem os apoiadores do governo.
A reportagem foi publicada por Natalia Viana, publicada por Agência Pública, 13-06-2017.
Na segunda-feira, 5 de junho, a Venezuela amanheceu com o mesmo presidente, Nicolas Maduro, como vem acontecendo desde que ele sucedeu Hugo Chávez, em 2013. Mais uma decepção para muitos dos manifestantes que têm lotado as ruas de diversas cidades do país nos últimos dois meses. Corriam boatos, de alcance multiplicado por correntes de WhatsApp, de que Maduro iria fugir do país no dia anterior. Até uma conhecida vidente previra sua fuga, dizia uma das mensagens. Era dito e certo.
Assim como nesse episódio, tudo o que acontece na Venezuela é cercado de desinformação e enevoado pelas fake news espalhadas por apoiadores do governo e da oposição. Na política venezuelana, tudo é espetáculo. Por isso, esqueça muito do que você leu por aí: a Venezuela não está vivendo uma catástrofe humanitária pela falta generalizada de alimentos; o governo de Nicolás Maduro não vai cair amanhã; a polícia nacional não está massacrando manifestantes a rodo nas ruas. Mas também não é verdade que tudo está bem e que as manifestações e a violência em torno delas são fruto de “terroristas” armados, como dizem os apoiadores do governo.
Nossa reportagem passou três semanas no país para ouvir o que dizem os venezuelanos e seus líderes. Logo no primeiro dia, já caímos numa marcha da oposição na zona leste de Caracas. Desde o começo de abril, elas têm sacudido a capital: a cada dois dias há um novo protesto massivo, e as ruas amanhecem como um cenário de guerra. Em todas as principais avenidas, há caminhões antidistúrbios ao lado de uma fileira de guardas da Polícia Nacional Bolivariana portando armas longas. Soldados do Exército com seus uniformes verde-oliva também ocupam esquinas e locais-chave para intimidar aqueles que vão protestar. Boa parte das principais avenidas de rápido acesso aos locais de encontro das marchas é interditada pelas forças do governo, impedindo o fluxo de manifestantes. As estações do metrô fecham. Algumas empresas liberam seus funcionários em horários alternativos para evitar o caos.
As marchas também têm a sua rotina: ali na Plaza Altamira, do bairro de classe média de mesmo nome, senhores e senhoras loiras com o característico boné com as cores da Venezuela conversam enquanto estudantes de diversas universidades, como a Universidade Central de Caracas, Universidade Metropolitana e a Universidade Santa María, trazem faixas e cartazes com os nomes das suas escolas e palavras de ordem contra o governo, para eles uma ditadura. Aos poucos, grupos de jovenzinhos, morenos, brancos, negros, começam e se organizar em rodas. Vão tirando das mochilas as suas “armas de guerra”: capacetes de moto, camisas negras que enrolam sobre o rosto, máscaras antigás, luvas grossas, escudos cuidadosamente talhados de madeira, enfeitados com palavras como “Coragem”, “Liberdade” e “Honra”. Os “black blocs” venezuelanos pedem que não sejam fotografados. Como os brasileiros, são muito jovens, entre 16 e 25 anos, e encontram nas marchas uma maneira de manifestar o desejo de mudança em seu país. Ali eles não quebram bancos nem lojas. Levam pedras e devolvem, quando podem, com suas luvas grossas, as bombas de gás lacrimogêneo atiradas pelas fileiras policiais; alguns atiram coquetéis molotov, ou explosivos caseiros. E são saudados como heróis pela oposição.
Nos protestos em Caracas, jovens utilizam máscaras antigás e enrolam camisas em seus rostos para se proteger (Foto: Manuel Rueda/Agência Pública)
Quando a praça já está lotada, eles passam em fila indiana, o braço sobre os ombros do anterior, em direção à linha de frente, sob fortes aplausos. Algumas senhoras pedem para tirar fotos com eles. “São tão corajosos!”, exclama uma. Seu papel, ali, é tentar “empurrar” o cordão policial que invariavelmente interrompe a marcha quando ela se aproxima do centro da cidade, impedindo que os manifestantes penetrem na zona onde estão os prédios governamentais. “Não há um paro (greve) nacional na Venezuela. Há uns protestos, e esses protestos estão focalizados em guetos onde o governo deixa que protestem”, resume o diretor do Instituto Datanálisis, Luis Vicente León.
Nada disso é novidade na Venezuela; o chamado para “calle calle calle” (rua, rua, rua) tem sido repetido por diferentes líderes da oposição, com menor ou maior veemência, desde que Hugo Chávez foi eleito presidente em 1998. As ondas de protesto, boicote, lockouts são tantas que se perde a conta. Muitas delas tiveram apoio dos Estados Unidos, através de financiamentos da Agência Americana para Cooperação Internacional, a Usaid (saiba mais aqui e aqui). Desde a morte de Hugo Chávez em 2012, houve pelo menos três grandes ondas de protestos, seguindo sempre o mesmo roteiro. E, mesmo assim, quando se conversa com os manifestantes, eles garantem que desta vez será diferente. “Vamos seguir nas ruas, é todo um país que não quer continuar com esse regime”, diz Alejandro Ferrero, de 23 anos, sob um capacete com as cores da bandeira. Desde abril, mais de 2800 manifestantes foram detidos. Mais de 200 permanecem presos.
O motivo para a mais recente onda de protestos está num prédio branco no centro de Caracas, enfeitado com colunas romanas e uma fonte de água no luxuoso pátio, onde funciona a Assembleia Nacional – ou deveria funcionar. Em meados de maio de 2017, as sessões ocorriam no máximo a cada semana, reunindo um punhado de deputados da oposição; os deputados do governo nem davam as caras. Em agosto do ano passado, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) declarou a Assembleia em “desacato”, e desde então ninguém sabe direito como tirá-la daí.
Um destino melancólico, mas muito venezuelano, para uma Assembleia cuja eleição, em dezembro de 2015, significou a primeira derrota eleitoral do chavismo no Legislativo, controlado durante 16 anos pelo governo. Partidos da oposição que fazem parte da Mesa de Unidad Democrática (MUD) conquistaram a maioria de dois terços das cadeiras, podendo fazer leis que contrariam as principais políticas do Executivo, além de aprovar ou desaprovar empréstimos internacionais e rechaçar o orçamento federal. Um feito histórico, vastamente celebrado nas ruas, nos cafés elegantes, nas empresas e nas correntes de WhatsApp. Já na cerimônia de posse, o presidente eleito da assembleia, Henry Ramos Allup, promulgou uma lei de anistia a todos os presos políticos e prometeu: “Em um período de seis meses, vamos propor um método, um sistema para mudar o governo por vias constitucionais”.
Horas antes, o presidente Nicolás Maduro emitira um decreto retirando da Assembleia o poder de nomear a diretoria do Banco Central, e o TSJ havia impedido três deputados da oposição de tomar posse – para que ela não conquistasse a maioria. A MUD não acatou a ordem judicial; desde então, o governo não paga salários aos deputados, e todos os atos do Legislativo são anulados pelo TSJ – que chegou, em 29 de março, a decidir que assumiria os poderes do Congresso, mas capitulou depois diante da grita internacional.
“A Assembleia funciona no sentido testemunhal, funcionam reuniões, se fazem debates, mas todas as leis que aprovamos foram anuladas. São mais de 60 decisões da Sala Constitucional anulando todos os atos”, explica em entrevista à Pública o atual presidente da casa, Julio Borges. Ainda mais beligerante que o seu predecessor, Borges assumiu em janeiro prometendo eleições gerais ainda este ano. Em março, anunciou que o Legislativo declarava o “o abandono do cargo” do presidente Nicolás Maduro, pela ineficiência do governo em lidar com uma aguda crise econômica que gera crises de falta de medicamentos e alimentos e uma inflação que supera os 500% ao ano. Mas ninguém deu muita bola.
“É um absurdo pretender que toda a instituição esteja em desacato, como se fosse uma pessoa”, diz Borges. “Maduro aprovou o orçamento sozinho, no Tribunal Supremo de Justiça. Aprovou a dívida federal sozinho, sem passar pelo Parlamento. De maneira que temos um Parlamento fechado por um governo a quem não importam nem o voto popular nem a democracia.”
Manifestantes com escudos talhados em madeira (Foto:Manuel Rueda/Agência Pública)
A guerra entre os dois poderes acirrou-se ao longo de 2016. Uma tentativa de diálogo, acompanhada pelo papa Francisco e a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), no final do ano, também foi por água abaixo. “Nicolás Maduro está governando fora da Constituição. E o país se rebelou diante de um governo que está instalando uma ditadura na Venezuela”, diz Borges. Ele se refere a uma enxurrada de “jeitinhos” aos quais o governo apelou para postergar os votos nas urnas, depois da acachapante derrota eleitoral no Legislativo em 2015. O referendo revogatório para o mandato do presidente – proposto pelos partidos de oposição – foi interrompido quando o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) suspendeu a coleta de assinaturas por fraude em cinco estados no fim de outubro. Na mesma semana, o CNE anunciou que as eleições para governadores, que poderiam dar maioria das cadeiras a opositores – e com elas o controle de diversas polícias estaduais –, seriam realizadas até o fim do primeiro semestre de 2017, com seis meses de atraso. Não ocorreram até hoje.
Antes de se despedir de Borges, a reportagem pergunta o que pode acontecer se o governo não realizar eleições gerais, como pede a oposição. “Nada. Vamos seguir lutando, porque não tem outro jeito.”
No centro da cidade, os olhos do falecido líder Hugo Chávez estão por toda parte. Literalmente. Pintados sobre as paredes de prédios governamentais, adornando muros, esparramados sobre os degraus do parque El Calvario, trazendo – de forma um tanto sinistra – a lembrança constante de que a Venezuela é “território do chavismo”, como muitas pichações teimam em lembrar. É também sob os olhos de diversos retratos de Chávez que o Elías Jaua despacha no seu gabinete no Ministério da Educação.
Homem de confiança de Chávez, ele já foi secretário da Presidência, chanceler, ministro da Economia Popular, ministro da Agricultura e Terras e vice-presidente. Agora, além da pasta da Educação, Jaua comanda o principal esforço do governo para se livrar do impasse criado pela oposição, que segue firme nas ruas: a criação de uma Assembleia Constituinte, proposta por Nicolás Maduro no último 1o de maio. As eleições dos 545 membros estão fixadas para o dia 20 de julho. Antes uma bandeira da oposição, ciosa de encurtar o governo chavista, a Assembleia proposta é para lá de controversa. Se levada adiante e empossada, a Constituinte suplantará todos os demais poderes – e, portanto, pode comandar, ou extinguir, a rebelde Assembleia Nacional. O governo promete um referendo popular apenas no fim do processo.
Moreno, com um olhar sério sob os óculos quadrados, Jaua explica, enfático, que o maior problema do país é a “injustificável negativa da oposição a se sentar e dialogar com o governo e a sua opção pela violência”. “Eles desconhecem o direito de governar dessa força popular que levantou a bandeira dos indígenas, camponeses, pescadores, afrodescendentes, os excluídos de toda sorte. E não é novo. São 18 anos de desconhecimento”, diz.
Como chavista histórico que é, Jaua foi encarregado de coordenar o esforço constituinte, uma aposta arriscada de modificar um dos maiores legados de Hugo Chávez, a Constituição de 1999, que, apesar de contestada na época, hoje está na boca de qualquer político: todos se acusam mutuamente de estar violando a Constituição. É a resposta do ministro, por exemplo, quando indagado se não seria mais fácil abrir o diálogo realizando as eleições gerais. “Não está na Constituição a figura das eleições gerais. Isso seria o fim das instituições, se um grupo que usa a violência pudesse mudar as regras do jogo.” É tanto o apreço pela Carta Magna que Jaua parece se contradizer ao explicar a necessidade de uma Constituinte.
“Não se trata de mudar a Constituição”, ele explica à Pública. “Trata-se de apelar ao princípio de que a soberania popular é a fonte suprema do destino da nação, já não com a cúpula da oposição, mas com um processo eleitoral por via universal, direta e secreta. E que emerjam tanto lideranças do governo como lideranças da oposição que estão contra essa violência.”
A fórmula para eleger os constituintes é mais que controversa. Metade será eleita por regiões; a outra metade, de acordo com nove setores, como camponeses, empresários, indígenas, pessoas com deficiência, universitários e representantes de conselhos comunais, que cuidam da manutenção nas favelas, por exemplo. Cada setor terá seus representantes. Sobre aqueles que ficarão de fora – como jovens que não estão na universidade –, Jaua justifica que todos poderão votar pela sua região. “A única razão é técnica e legal. Tem de haver um registro histórico, reconhecido, institucional dos setores. Não se trata de discriminação, mas o registro tem de ser confiável e certificado”, enfatiza.
Mas como o governo sabe que a população aprova a iniciativa, se não há um referendo consultivo? Ele responde com confiança:
“Isso se expressará nas eleições dos constituintes, e se verá nas próximas semanas, em milhares de candidaturas que já começam a florescer por todos os lados”. Até meados de junho, já eram mais de 50 mil os candidatos, segundo fontes oficiais. Sejam quais forem as mudanças que surgirem após uma Constituinte eleita dessa maneira, ele garante: “As bases doutrinárias e filosóficas da Constituição de 1999 se manterão”.
A proposta governista incendiou o ambiente político como gasolina no fogo. A comoção é quase palpável quando, no dia 11 de maio, uma passeata enche as ruas de Las Mercedes, na zona leste de Caracas. O protesto, marcado em menos de 24 horas, era a antítese da marcha do dia anterior, onde naquele mesmo lugar uma multidão tentava entrar no centro da cidade, impedida pelo cordão policial, bomba, choque e, por fim, pela tragédia. Hoje, conduzidas por um padre católico, as famílias rezam, cantam e trazem coroas de flores para o jovem Miguel Fernando Castillo Bracho, de 27 anos, um estudante de comunicação da Universidade Santa María, morto, segundo o Ministério Público, por uma esfera metálica atirada por uma arma caseira nas manifestações do dia anterior. “Estou aqui como mãe para compartilhar a dor das mães desses jovens assassinados. Chega de tanta repressão e tanta maldade que tem esse governo. Qual é o medo que a gente chegue ao palácio de Miraflores?”, dizia a professora Ana Karina Malave.
“Luto por algo que não conheço: uma Venezuela diferente”, diz cartaz empunhado por manifestante contrário ao governo (Foto: Manuel Rueda/Agência Pública)
Foram mais de 70 mortes relacionadas à onda de protestos na Venezuela desde março. A contagem das mortes – uma perversidade do sensacionalismo venezuelano – entra na conta política dos dois lados em disputa. Em Caracas, uma das cidades mais violentas do mundo, as mortes têm marcado todas as ondas de protestos contra o chavismo. Em 2014, as 43 mortes de manifestantes serviram para a Justiça condenar o líder Leopoldo López, do partido Primeira Justiça, a 14 anos de prisão; desde então, ele virou o mais famoso preso político do país. Em 2002, as 19 mortes durante uma jornada de protestos em 11 de abril serviram de pretexto para a cúpula militar exigir a renúncia de Hugo Chávez, abrindo caminho para o golpe de Estado que duraria menos que 48 horas.
É por isso que, ao entrar em um escritório do ministro da Comunicação em meados de maio, a reportagem da Pública encontra Ernesto Villegas sobre uma pilha de papéis impressos, organizados no chão ao pé de uma lousa branca, com uma lista de nomes. Cada papel traz com uma foto, um nome e sobrenome e dados como idade, sexo e “status do caso”. Ernesto Villegas é ministro da Comunicação e presidente da cadeia estatal Venezuelana de Televisão. É, antes de tudo, diz ele, jornalista. “Isso ninguém pode me tirar.” Depois do golpe de 2002, Ernesto estudou os mortos de 11 de abril para seu livro Abril, golpe adentro.
“Veja, todas as mortes valem o mesmo, sejam chavistas ou da oposição”, diz ele, garantindo que, hoje como na época do golpe, o número de mortos pela polícia nacional é muito menor do que o alardeado. Até o começo de junho, entre os 77 casos registrados pela sua equipe, apenas 25 pessoas estavam de fato participando de manifestações quando faleceram. Entre elas há vítimas que receberam impactos de armas caseiras ou por armas de fogo. Um estudante de medicina, Paúl Moreno, 24 anos, foi atropelado por uma caminhonete Hilux em Maracaibo, no oeste do país, e outro jovem universitário, Juan Pernalete, de 20 anos, morreu após o impacto de uma bomba lacrimogênea atirada pela polícia no seu tórax, segundo a procuradora-geral, Luisa Ortega Díaz. Entre os mortos há também quatro chavistas, quatro policiais e oito vítimas que morreram eletrocutadas em meio a um saque em uma padaria em Caracas.
“Aqui o pretexto para a intervenção estrangeira são as violações de direitos humanos. Por isso, os esforços de um aparato midiático gigantesco estão postos para essa narrativa do governo de Maduro como violador massivo de direitos”, avalia o ministro. Para ele, se um policial atira nos manifestantes, está desobedecendo à Constituição, às ordens expressas de seus superiores e do presidente.
“E para mim é suspeito de estar alinhado ao show de Luis Almagro na Venezuela”, diz referindo-se ao secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), que age em concordância com a política dos Estados Unidos.
A mais brutal de todas as mortes foi a de um jovem de 21 anos, Orlando Figuera, linchado, esfaqueado e queimado vivo por manifestantes que ocupavam a praça Altamira no dia 20 de maio, após ter sido acusado de tentar roubar uma pessoa. Ele morreu no hospital 15 dias depois. Segundo os pais, chavistas ferrenhos, ele era guardador de carros em Las Mercedes e “foi morto por ser chavista”. A notícia horrenda recebeu pouquíssima atenção da imprensa internacional e foi usada pelo governo para atacar a oposição. “Aqui a imprensa internacional não segue seu manual de estilo. Se desqualifica a fonte oficial como válida. Há a visão de que qualquer coisa que se diga contra o governo é válida como notícia, não é necessário verificar.”
Entre 2002 e hoje ele aponta uma diferença fundamental: a primazia das redes sociais. A internet tem a penetração de 53% na Venezuela, com mais de 70% referente às classes mais baixas. “Naquela época éramos reféns da TV”, diz Ernesto. “Hoje a comunicação digital substituiu a televisão em algumas franjas geográficas e etárias. Tem muito impacto o que circula em grupos de WhatsApp; o Facebook é a rede mais popular na Venezuela, e o Twitter é usado por políticos.”
Enquanto marchas como a de Miguel não são mencionadas pela TV aberta – a Telesur e a VTV, em especial, dedicam longas horas a programas propagandísticos recheados de acusações contra os opositores –, é impossível controlar a torrente de vídeos caseiros, que repercutem em sites antichavistas, como Maduradas.com ou La Patilla. Há vídeos que mostram jovens sendo linchados pelos manifestantes, outros mostram a Polícia Nacional Bolivariana quebrando e queimando as próprias motos para incriminar manifestantes, como este.
O ministro diz que existe uma mistura entre meios de comunicação digitais e outros, que “são fachadas de um aparato político com expressão digital”. “São sites que corrobo ram um ao outro, ajudam a espalhar notícias exageradas ou falsas, e até a propagar um valor inflacionado do dólar paralelo”, diz ele, citando o site dolartoday, capitaneado por um ex-militar venezuelano treinado pelos EUA e envolvido no golpe contra Chávez em 2002, que mistura cotações que sobem num ritmo vertiginoso com quaisquer informações que sejam publicadas contra o governo chavista.
“E há outro fenômeno: Miami está aqui. Boa parte dos conteúdos que se produzem na Venezuela é fabricada em Miami. Se você faz um mapeamento de influenciadores, algo como 60% não está na Venezuela.”
O contra-ataque chavista não fica atrás e é propagado por sites como La Iguana TV. Por um lado, divulgam vídeos como este aqui, que mostram manifestantes atirando bombas caseiras na polícia. Mas também chegam a extremos de manipulação, como a inserção de armas em fotos de manifestantes – imagens que depois se filtram para as TVs públicas.
À esquerda, a imagem original (EFE/Miguel Gutiérrez); à direita, a foto manipulada, em que armas foram inseridas nas mãos dos manifestantes
Em uma manhã de maio, enfiado em um moletom, Henrique Capriles parece animado como quem acaba de fazer um jogging. Principal rosto da oposição há mais de uma década, ele diz estar seguro de que, sem resolver a crise política, não há como resolver a crise econômica. E, conversando com ele, parece difícil resolver a crise política. Derrotado por apenas 224 mil votos por Nicolás Maduro em 2013, Capriles, o candidato que une a oposição, está proibido de concorrer a eleições durante 15 anos desde o último 7 de abril. “Segundo a Constituição, a única forma de ser inabilitado é você ter um julgamento definitivo. Eu fui notificado de inabilitação por causa de uma multa de 40 mil bolívares (cerca de US$ 6 dólares na cotação paralela), por haver recebido uma doação do Reino Unido para um projeto escolar”, diz. Dois dias depois da entrevista com a Pública, Capriles, que é governador do estado de Miranda, teve seu passaporte confiscado no aeroporto, o que o impediu de sair do país. Ele pretendia ir à ONU denunciar violações de direitos humanos. Capriles comenta o que considera uma perseguição: “Se fôssemos a eleições no próximo fim de semana, o governo sabe que o próximo presidente seria este que está falando com você”.
Para o político, o caos pode se aprofundar. Se a Constituinte avançar, diz, o país pode terminar com duas Constituições. “O governo radicalizou sua posição, um governo que está cada vez mais sozinho e mais isolado, e isso não é sustentável com o tempo”, diz.
A solução, para ele, é a tal calle calle calle. “Maduro desconheceu o resultado que o povo venezuelano deu nas urnas, uma maioria contundente pela mudança. O que propusemos: referendo revogatório, previsto na Constituição. O que aconteceu? Roubaram-nos. O que fazemos quando nos fecham todas as portas democráticas? Que faço eu, como líder?”
Em público, Capriles é outro homem. Leva a multidão ao delírio discursando durante os protestos, xingando o presidente – “o maior ‘boceta de mãe’ que existe neste país” – e garantindo que o governo vai cair logo, logo. No seu escritório, parece mais sensato e bem mais conciliador. Fala com muita veemência sobre uma saída eleitoral, pela pressão das ruas. “Eu estou convencido de que a mudança tem de se dar por via eleitoral. Porque temos de pensar no dia seguinte de Maduro. Um governo que caia, que termine, que venha de uma insurreição militar, um golpe de Estado, não vai dar estabilidade à Venezuela”, diz.
Capriles acompanhou de perto o golpe fracassado de 2002, embora insista em se afastar da herança maldita. Em 11 de abril de 2002, horas antes de Chávez ser levado preso por militares rebelados, o presidente do seu partido, Primeira Justiça – Julio Borges, atual presidente da Assembleia –, exigia pela TV a renúncia do governo e dos demais poderes (aqui o vídeo). Ao seu lado esquerdo estava o jovem Leopoldo López, prefeito de Chacao, um município da Grande Caracas. No dia seguinte, López levaria a polícia municipal para prender o ministro do Interior e Justiça, Rodríguez Chacín, parte de uma “purga” que teve duração tão curta quanto o golpe. Ao invadir a casa onde estava o ministro, era acompanhado por Henrique Capriles, então um jovem prefeito de Baruta, também na capital, e das forças policiais de ambos os municípios.
Naquele mesmo dia, Capriles protagonizou ainda um infame episódio na embaixada cubana. A casa estava cercada desde o dia 9 por uma turba que ameaçava invadi-la, e haviam cortado a luz e a água desde que passaram a circular notícias de que o vice-presidente de Chávez, o tenente do Exército Diosdado Cabello, buscava asilo ali. Capriles entrou no local garantindo a segurança da embaixada e pediu para revistá-la; o embaixador se negou e invocou o direito internacional para exigir respeito ao território soberano da embaixada. Na saída, Capriles lavou as mãos: “Não posso confirmar nem desmentir que ele está na embaixada, pois não me deixaram revistar” (vídeo). Capriles diz que foi até lá a pedido do embaixador e que tudo não passou de uma armadilha, na qual caiu por “inexperiência”. “Eu nunca estive no golpe. Nunca!”, repete durante a entrevista.
Diosdado Cabello, o ex-vice-presidente que ele buscava na embaixada cubana, é hoje o homem mais forte do chavismo.
Todas as quartas-feiras às 20 horas, o canal estatal VTV recebe um colorido programa de auditório que dura umas quatro horas a fio. Logo na abertura, uma orquestra toca o refrão: “Soy chavista y voy marchando, por la vida celebrando… Y com el mazo dando!”. É a hora do programa semanal de Diosdado Cabello, vice-presidente do PSUV, o mais fiel seguidor do estilo do “comandante” falecido. O programa Com el Mazo Dando foi batizado por uma clava que o apresentador mantém sobre uma mesa, com a qual ele bate quando quer reforçar o que diz. Gordinho, o ex-militar aparece diante de um grande letreiro que forma a sigla 4F – o símbolo do golpe de Estado fracassado tentado por Chávez em 1992, do qual participou Diosdado na condição de tenente do Exército – e a frase “#Aqui não se fala mal de Chávez”.
No último programa, gravado dentro do Forte Tiúna, instalação militar histórica da capital, o apresentador e político começou fazendo um reconhecimento especial à Guarda Nacional Bolivariana (GNB) e à Polícia Nacional Bolivariana. As dezenas de militares que sempre estão presentes na plateia responderam com um longo coro. “A direita está montando falsos positivos todos os dias para vocês. Mas nós prometemos: não passarão e não voltarão nunca mais a governar esta pátria de Bolívar e de Chávez!” – disse, dando um beijinho nas pontas dos dedos como compromisso. Antes de passar pela tradicional gozação das notícias da semana que “atacam a Venezuela”, rabiscando um X sobre elas, ele grita para a plateia:
– Hashtag oposição terrorista e…
– Assassina! – responde o público.
Diosdado é peça-chave de um governo que cada vez mais apela ao componente militar. Foi, além de vice-presidente durante o golpe, presidente da Assembleia Nacional, ministro de Obras Públicas e Vivienda e governador do estado de Miranda, título que perdeu para Capriles. Hoje, sem cargo no governo e com o posto inútil de deputado federal em uma Assembleia que não funciona, é um dos garotos-propaganda do governo perante a população.
“Ele é o político neste momento que conhece melhor as Forças Armadas. Ele tem proximidade e domínio sobre toda a promoção do Exército”, explica Rocío San Miguel, diretora da ONG Control Ciudadano para la Seguridad, la Defensa y la Fuerza Armada. “Creio também que Cabello joga um pouco ao vender essa imagem, de fazer crer que controla as Forças Armadas, o que é falso. Nenhum homem ou mulher na Venezuela as controla neste momento. Nem sequer o presidente da República.”
É justamente essa a aposta da oposição, que desde o começo do ano tem apelado para que os militares abandonem o apoio a Maduro. “Hoje é um governo sentado sobre as baionetas. Mas nas Forças Armadas esperamos que haja uma reserva democrática institucional, e que não vão acompanhar um governo que está corrompido”, diz Julio Borges à Pública. “É a isto que estamos apelando: que não tenham medo do voto, que não tenham medo de que possamos ir a um processo de eleição na Venezuela, e que possamos unificar o país. Uma mudança na Venezuela não significa perseguição, não significa caçada às bruxas, não significa vingança.”
O foco em seduzir os militares virou até mesmo projeto da Assembleia Nacional. No fim de maio, foi instaurada uma “Comissão de Garantias para a transição”, para fazer leis de anistia para quem mudar de lado. “Não somente anistia, mas também incentivos”, diz o deputado Freddy Guevara, vice-presidente da Assembleia Nacional e do partido Voluntad Popular, liderado por Leopoldo López. “Se alguém é preso ou despedido do seu trabalho por apoiar a luta pela democracia, que saiba que, mesmo que a ditadura o amedronte, no momento em que chegar a democracia, vai ter a recompensa.”
A mensagem busca assegurar que não se repetirá a caçada de 12 de abril de 2002, ocasião em que a perseguição teve a participação dos principais líderes oposicionistas de hoje. Desde então, o governo chavista reformou a polícia e sedimentou a doutrina bolivariana no Exército nacional, assegurando o mando a militares leais.
“Chávez introduz os militares no poder como fórmula de governo, mas sem dúvida, depois da sua morte, se formou uma coabitação muito maior entre políticos e militares, pelas concessões de poder que Maduro fez aos militares. É um governo militarista. Mesmo que seja governado por um civil, tem todas as características de um governo militar. A militarização da sociedade, todos os elementos diários do cotidiano estão dirigidos pelas Forças Armadas Nacionais: os alimentos, a circulação, os metrôs, as farmácias”, explica Rocío.
Entre os 32 ministros de Maduro, 11 são militares; e 11 dos 23 governadores estaduais são militares reformados. Além disso, os militares também estão presentes na Zona Econômica Militar Socialista, um complexo industrial implantado por Maduro a partir de 2013 para tentar reanimar a economia, em franca decadência. Cinco empresas, criadas logo no anúncio da iniciativa, têm relações com as Forças Armadas: um banco, uma agropecuária, uma televisão digital, uma empresa de construção e uma de fornecimento de águas subordinada ao Ministério da Defesa. Outras três empresas foram criadas desde então. “A mudança mais importante é a produção e exploração de minérios pela Caminpeg. É uma empresa militar com as dimensões em seu econômico similares à PDVA, a estatal de petróleo”, diz Rocío.
Criada no começo de 2016, a Compañía Anónima Militar de Industrias Mineras, Petrolíferas y de Gás tem como atividade a exploração de petróleo, gás e minérios, a reabilitação, manutenção e perfuração de poços petrolíferos e a importação e exportação de produtos químicos para mineração. A junta diretiva é nomeada pelo ministro da Defesa, o general Vladimir Padrino López, e o governo tem ações majoritárias. Maduro assegura que ela será apenas uma “prestadora de serviços para a PDVSA”.
São os militares que estão à frente também do maior esforço governamental para enfrentar a atual crise, a Grande Missão Abastecimento Soberano, igualmente encabeçada por Padrino López. A Missão tem cuidado da importação e distribuição de alimentos para a população mais pobre através dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP). Ligados aos conselhos comunais das favelas, os comitês distribuem às famílias um saco de alimento com cerca de 12 quilos de produtos essenciais, como arroz, farinha, macarrão e óleo, a preços subvencionados pelo governo (12 mil bolívares, cerca de R$ 2 dólares, na cotação paralela). Embora com problemas, a política dos CLAP atenuou a escassez de alimentos básicos importados, que atingiu seu ápice em 2016. Naquele ano, um estudo realizado por três universidades estimou que 70% dos venezuelanos perderam em média 8 quilos – um desastre depois da drástica redução na fome obtida pelo chavismo, de 15% para 5% da população, reconhecida pela Unesco em 2015. Hoje, há um militar encarregado por cada gênero alimentício, dentro do Plan Rubro por Rubro: óleo, açúcar, café, arroz e até papel higiênico.
Quando a recente onda de protestos ultrapassou Caracas e tomou outros estados do país, gerando saques, bloqueios de ruas e estradas e ataques a instalações policiais, o governo pôs em prática a segunda fase do Plan Zamora, que utiliza o Exército para controle da ordem pública, militarizando áreas inteiras do país. Em meados de maio, o Ministério da Defesa enviou 2 mil soldados da GNB e 600 tropas de operações especiais ao estado de Táchira, na fronteira com a Colômbia. Desde maio, os militares têm também sido responsáveis por prender manifestantes em todo o país, julgados por cortes militares.
Enquanto isso, o general Padrino López não cansa de dar respaldo público ao seu presidente, seja afirmando que a Constituinte “é uma proposta revolucionária, constitucional, profundamente democrática que nós acompanhamos”, pedindo “que acabe a campanha de ódio contra as Forças Armadas”, ou apoiando publicamente a retirada da Venezuela da OEA – o secretário-geral, Luis Almagro, é um de seus alvos preferenciais. López também é historicamente leal a Chávez. Durante o golpe contra o ex-presidente, o então tenente-coronel e comandante do Batalhão de Infantaria em Forte Tiúna permaneceu leal a Chávez e chegou a oferecer ajuda ao presidente deposto. Meses antes de morrer, o líder o alçou à posição de segundo comandante do Exército. Em 2013, Maduro o nomeou chefe do Comando Estratégico Operacional e, meses depois, ministro da Defensa. Recentemente, o general garantiu que as Forças Armadas são um pilar da Venezuela “porque rechaçam todos os ataques vis e doentios impostos pela direita terrorista”.
Um dos problemas de empregar os militares em áreas estratégicas da economia é justamente o calcanhar de aquiles do governo chavista, a corrupção. Em dezembro do ano passado, uma reportagem da agência AP trouxe relatos de comerciantes que compram alimentos no mercado negro dos militares, ou que afirmam terem pago propinas diretamente ao ministro de alimentos, o general Rodolfo Marco Torres. Os repórteres também identificaram empresas offshore ligadas a familiares do ex-ministro da Alimentação, general Carlos Osorio, que hoje é inspetor-geral das Forças Armadas. O governo americano passou a impor sanções a militares e membros do governo venezuelano. Os últimos a entrar na lista negra dos americanos foram o ministro do Interior, general Néstor Reverol, e o ex-subdiretor do escritório antidrogas, general Edilberto Molina, acusados de ajudar traficantes de drogas na distribuição de cocaína para os EUA.
“O governo apoia-se nas Forças Armadas em uma dialética que até agora se mantém. No curto e no médio prazo, essa relação deve se manter”, vaticina Rocío San Miguel. Por trás dessa aliança, diz ela, há uma ameaça que bate à porta. “Há três delitos que perseguem a cúpula militar venezuelana: o narcotráfico, as violações aos direitos humanos e a corrupção”, resume a pesquisadora.
Buscar uma voz imparcial na Venezuela é impossível. No máximo – e com muito custo – pode-se encontrar um interlocutor realista. Luis Vicente León não é um homem “isentão”; ele acredita que Maduro está se convertendo em um governo abusivo, com traços ditatoriais. Mas sua visão como cientista de dados – ele é diretor do Instituto Datanálises, um dos mais importantes institutos de pesquisas do país – vai além de suas convicções: desde 2016, quando a crise de abastecimento de alimentos alcançou o seu auge, até o início de 2017, a popularidade de Maduro aumentou, ele reconhece. “A popularidade descendeu de maneira significativa desde que ganhou com 51% dos votos. E o seu pior momento foi em dezembro do ano passado, quando chegou a 18% de popularidade.
Paradoxalmente, o presidente Maduro este ano recuperou 6 pontos percentuais de apoio popular, passando de 18% a 24% de aprovação. Isso tem a ver com uma parte importante da população que é independente, 35% dos venezuelanos se autodefinem independentes: nem chavistas nem opositores”. No entanto, ele diz que 90,5% dos venezuelanos acham que o país está mal ou muito mal e 70% responsabilizam Maduro pessoalmente por isso. “Mas sem dúvida a liderança opositora tampouco é uma liderança apaixonante, que fale da história que este país pode ter. Eles preferem ficar brigando com Maduro.”
Para Léon, o melhor para o país seria uma negociação entre o governo e a oposição.
“Eu creio que a solução passa por uma negociação política. Sem negociação política, não há nenhuma forma de resgatar os equilíbrios. Creio que a oposição tem de construir em seus protestos o suficiente poder de negociação para obrigar o governo, não a entregar sua cabeça, mas a negociar a reinstitucionalização do país”, acredita ele.
Se isso não ocorrer – como os últimos fatos tendem a mostrar –, a tendência é que o governo siga “encapsulando os protestos em guetos” e com isso os protestos fiquem ainda mais violentos. “Isso é o que temos de evitar a qualquer custo”, diz León.
Ele aponta também outro entrave para o país chegar a uma solução, esse mais profundo e intangível. “Na Venezuela há escassez de leite, café, arroz, mas o mais escasso é a verdade. E, mais ainda, a objetividade. Aqui é um país onde nunca se sabe o que é verdade, nem nos meios de comunicação, nem nos discursos, nem nos debates, nem nas entrevistas”, diz. “O tema da verdade foi perdido completamente como um valor na Venezuela. E, claro, não somente no governo, mas também na oposição. Há uma guerra de pinóquios, onde todo mundo mente e onde você nunca sabe o que é verdade e o que é mentira. E, se você perde a verdade, simplesmente não é capaz de separar o ruído dos sinais. Então, tomar posições ou decisões se converte em um elemento muito difícil”, avalia. No momento, a Venezuela parece ter inventado a polarização que se infiltrou no resto do continente. “E, quando se está no clímax da polarização, a verdade é vista como uma traição”, lamenta León.
Carlos e Roberto são dois jovens bonitos, articulados, apaixonados pelo seu povo e pelo trabalho de mobilização social. Ambos fizeram curso superior com foco em mobilização e promoção social. Um, branco, estudou Políticas Públicas com foco em “segurança cidadã” em Harvard; o outro, pardo, estudou Gestão Social para o Desenvolvimento na Universidade Bolivariana da Venezuela. Se eles se conhecessem – e não fossem venezuelanos –, é possível que fossem bons amigos. Mas aqui em Caracas estão em campos opostos, liderando duas iniciativas que têm no fundo o mesmo propósito: driblar a escassez e a alta dos preços de alimentos através da auto-organização das comunidades em favelas. A Pública esteve com liderança jovem chavista Carlos Rodríguez, de 30 anos, e o dirigente do partido Primeira Justiça, Roberto Patiño, de 28 anos, em três favelas da capital. Em todas elas, a reclamação em relação aos CLAPs é a mesma: a bolsa de alimentos, vendida a preço subvencionado, não chega com regularidade. Demora às vezes um mês, às vezes 40 dias. E o alimento não dá para mais de duas semanas.
Roberto Patiño, dirigente do partido Primeira Justiça (Foto: Manuel Rueda/Agência Pública)
Nos supermercados, os produtos tabelados são entregues através de um carnê, e é preciso fazer filas de horas para conseguir algo. Muitas vezes não se consegue os produtos básicos. Outros têm preços proibitivos por causa da alta inflação e do estratosférico dólar paralelo. Mesmo os vegetais e frutas, produzidos no país, são muito caros. A solução é racionalizar, comendo menos. A Encuesta Nacional de Condicionantes de Vida (Encovi), realizada pelas universidades Central de Venezuela (UCV), Católica Andrés Bello (Ucab) e Simón Bolívar (USB), estimou que 9,6 milhões de venezuelanos, cerca de um terço da população, dizem comer duas vezes ou menos ao dia. É por isso que algumas famílias têm se dedicado a buscar comida nos lixos das áreas mais ricas das cidades, um escândalo numa sociedade que não está acostumada à fome, mas longe de ser uma situação de escassez severa conforme a definição da ONU, o que significaria mais de 20% da população sem ter o que comer.
A liderança jovem chavista Carlos Rodríguez (Foto: Manuel Rueda/Agência Pública)
Para complementar a alimentação das bolsas, Patiño se juntou a grupos de mães de comunidades como Los Mecedores, antigo centro chavista. “O programa nasceu quando coordenei os jovens da campanha de Capriles em 2012, e ao tocar muitas portas vi a desconfiança da gente com a política”, diz ele. São sete refeitórios em diferentes favelas, que oferecem alimento gratuito para 700 crianças antes de irem à escola. As mães ficam responsáveis por preparar a comida.
O que Patiño pede em troca é “coração aberto” para ouvir suas propostas, que são discutidas em reuniões que se realizam a cada 15 dias. Em uma manhã de maio, sentados em banquetas, cerca de dez mulheres e homens conversam sobre a crise política, enquanto na cozinha duas senhoras preparam o menu do dia: creme de abóbora, arroz e carne moída. Embora todos os filhos estejam estudando em escolas públicas, que oferecem lanche, uniforme, material escolar e até computadores, eles dizem que já não conseguem comprar comida suficiente. Ali, a única que ainda se diz chavista, Yurima Carillo, atrai críticas dos demais. “Peraí”, diz ela. “Eu sou chavista, mas consciente. O que Chávez fez com as mãos, Maduro destruiu com os pés.” Em seguida, ela explica por que tem receio da oposição: “Eles querem o poder para este lado e os outros querem o poder para o outro lado. Nenhum quer soltar a batuta. Quem está levando duro somos nós, pobres, que vivemos nas favelas, que não temos para sair para marchar. Como vamos marchar com o estômago vazio?”, pergunta.
No tradicional bairro de San Agustín, conhecido local de música popular na capital venezuelana, o chavista Carlos “Camarada” Rodríguez, do coletivo Insurgente, chega ao belíssimo centro cultural com desenvoltura. No galpão gigante, enfeitado com imagens icônicas de músicos da comunidade – todos negros –, há um grupo tocando tambores para saudar a Santa Cruz. É ali que ocorrem as feiras do projeto Pueblo a Pueblo, tocado pela Coalizão Unidos San Agustín, da qual ele faz parte. A cada mês, a comunidade se reúne em uma assembleia para definir quais os vegetais que devem ser entregues diretamente por produtores do estado de Trujillo. Um saco de 12 quilos de vegetais chega a custar 7 mil bolívares (cerca de US$ 1, na cotação paralela) e o programa atende 200 famílias. “O que esse plano permite é varrer os intermediários, economizar recursos para as comunidades e dar rosto à economia. De um lado, é um homem que produz e, do outro, uma mulher que come. Então tem um conteúdo social e político, de formação”, explica Carlos, que também é funcionário do governo federal, encarregado de fiscalizar a produção de pães pelas padarias do bairro.
O projeto é tocado com firmeza por senhoras negras, elegantes, e chavistas até o âmago, como Marisol Olivares, de 64 anos. “Estamos tratando que toda comunidade se envolva no trabalho, para que tenha sua bolsita. Cada família tem que mandar um representante”, explica ela. Sobre a escassez, ela não tem dúvida:“É a mesma guerra econômica que sempre travaram contra nós. É um grupo que é minoria e que sempre, desde que estava vivo nosso comandante, nunca deixou que exercesse todo o poder. Mas com todo o problema que tivemos com a escassez da comida nós seguimos adiante, não vamos nos dar por vencidos e não vamos permitir que eles voltem”.
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Venezuela sem fake news - Instituto Humanitas Unisinos - IHU