12 Março 2019
"De algumas décadas para até os dias de hoje, especialmente os governos ligados ao nacionalismo populista, mais alinhados à direita do que à esquerda, vêm promovendo uma verdadeira desconstrução do estado de bem-estar da teoria keynesiana. Muitas reformas e muita retórica, por mais que digam o contrário, estão despindo os trabalhadores de seus direitos, tão dura e longamente adquiridos", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista e assessor das Pastorais Sociais.
Introdução
Em vista da Campanha da Fraternidade de 2019, a CNBB propõe para a reflexão e a ação durante o período da Quaresma o tema Fraternidade e políticas públicas. O lema, por seu turno, vem da Sagrada Escritura, reportando-se ao Livro de Isaías: “Serás libertado pelo direito e a justiça” (Is 1, 27). Nessa trajetória quaresmal somos convidados a um duplo percurso de conversão e reconciliação: pessoal/comunitária e social/política. Convém precisar, de início, que a expressão “políticas públicas” esconde um “não dito”, um discurso silencioso e silenciado. Uma espécie de coelho que, a exemplo do show de um mago, deve ser tirado do chapéu.
Por que se fala de políticas públicas? Porque ao longo da história, e especialmente a partir da Revolução Industrial, existe uma política privada. Esta última, com efeito, constitui a contraface daquelas. A política privada oculta-se por trás do mecanismo aparentemente neutro da produção e do consumo. Não costuma ser confessada nem confessável, mas encontra-se implícita ou explicitamente no modo de produção inaugurado pelos tempos modernos. A verdade é que qualquer empreendimento privado – pequeno, médio ou grande que seja – busca ganhar algo, auferir lucros, maximizar o capital. Produz-se roupas, sapatos, relógios, móveis, carros e objetos em geral, com o fim de fazer crescer o dinheiro investido.
Até aqui, nada de mal. Fazem isso o sapateiro, o açougueiro e o pipoqueiro; o dono da padaria, do restaurante e do boteco; o vendedor ambulante, o pequeno produtor e o artesão... E fazem isso as grandes empresas industriais ou as grandes redes de comercialização. O problema começa quando se passa da primazia da produção de “bens de uso” ou “bens de consumo” para a primazia da produção de “bens de troca”, para usar uma expressão familiar aos fundadores da economia política. A meta, então, é produzir prevalentemente para o mercado. Os bens se convertem em mercadorias. Ou seja, enquanto uns produzem ou vendem para manter o próprio núcleo familiar, outros o fazem exclusivamente para maximizar lucros e multiplicar o capital, utilizando a mão-de-obra assalariada. No segundo caso, a política privada adquire dois aspectos indissociáveis: de um lado, a força de trabalho de origem camponesa foi transformada em um exército de soldados da fábrica, operários assalariados; de outro lado, o acúmulo de renda ocorre em detrimento do bem-estar comum.
Dessa forma, as políticas públicas nascem e se desenvolvem para compensar os efeitos negativos da política privada, exacerbada pela exploração capitalista. Para entender de que modo o sistema de produção passou a ser comandado pela demanda do mercado, e de que forma isso dá origem aos princípios fundamentais da Doutrina Social da Igreja (DSI), precisamos dar três passos atrás. Neles veremos nascer e crescer uma espécie de embrião do que viriam a ser chamadas “políticas públicas”. Seguindo o exemplo do Papa Paulo VI na Carta Encíclica Octogesima Adveniens, publicada em 1971, em lugar de doutrina social da Igreja, falaremos de ensino social da Igreja.
Voltamos ao século XIX, especialmente na sua segunda metade. Estamos no chamado século do movimento. Movimento de pessoas, carros, trens, navios e, posteriormente, aviões. Movimento massivo do campo para a cidade. Êxodo rural gigantesco que afetará todos os países do velho continente europeu, como também os Estados Unidos. Na zona urbana, uma boa parte dos camponeses desenraizados consegue empregar-se nas indústrias nascentes. Outra parte, porém, com braços fortes e sem emprego, vê-se forçada a cruzar os oceanos em busca das terras novas nas Américas, na Austrália e na Nova Zelândia. Tempo de mudanças profundas, de avanços tecnológicas sem precedentes, de aumento da produção e produtividade; mas também tempo de profundas chagas do ponto de vista social.
Os estudiosos estimam que entre 1820 e 1920, cerca de 65 a 70 milhões de pessoas deixam a Europa. Tanto para os que ficavam e dependiam do trabalho na indústria, quanto para os que se aventuravam na emigração, a situação de exploração era extremamente pesada e precária. Existem páginas e páginas, livros inteiros escritos por volta de 1850, sobre as “condições dos trabalhadores nas cidades”. Esta expressão, aliás, constitui o título de uma obra de Friedrich Engels, lançada em 1844, referindo-se à área da Grã-Bretanha. Já o Manifesto do Partido Comunista, por sua vez, saiu em 1848.
Durante o século XIX, e mais fortemente em sua segunda metade, assiste-se ao fenômeno dos “santos sociais”. São em geral fundadores e fundadoras de novas congregações religiosas, masculinas e femininas, voltadas para situações que mereciam uma atenção específica. Entre tais situações, podemos destacar a prostituição, os órfãos e as viúvas, os jovens sem perspectiva, o desemprego e subemprego, o acompanhamento aos emigrantes, a precariedade habitacional, e assim por diante. Disso resulta a fundação de uma série de institutos religiosos, como também associações de leigos, com um carisma marcadamente apostólico. Com o empenho dos “santos sociais” vem à luz, no interior da Igreja, uma nova sensibilidade social para com aqueles que sofriam as consequências nocivas e negativas da Revolução Industrial. A extrema precariedade dos cidadãos, associada ao avanço das células comunistas, desperta setores da Igreja para a realidade nua e crua da exploração capitalista. Podemos chamá-los de precursores remotos do Concílio Vaticano II, pela sua visão voltada para a sociedade e seus problemas.
Na Alemanha, sobre a inspiração de Adolph Kolping, nasce a obra homônima, com o objetivo de formar os círculos operários católicos em defesa de sua dignidade enquanto trabalhadores. Antoine Frédéric Ozanam, por sua vez, fundador da Sociedade de São Vicente de Paulo, com a tarefa de socorrer as famílias mais carentes, embora tenha vivido na primeira metade do século, sua obra irá florescer e se estender cada vez mais por todo o século, até os dias atuais. Ao lado disso, sob a bandeira do socialismo e do comunismo, milhões de trabalhadores se organizavam em boa parte do continente para exigir seus direitos. A chamada “onda vermelha” vinha se ampliando por toda a Europa, com reflexos nos Estados Unidos.
Do ponto de vista da Igreja Católica, podemos dizer que essa nova sensibilidade social do século XIX convergirá para a elaboração da Carta Encíclica Rerum Novarum, documento inaugural do ensino social da Igreja, escrito e publicado pelo Papa Leão XIII, em maio de 1891. O subtítulo da Carta Encíclica, aliás, coincide com o título do livro de Engels já citado: “a condição dos operários”. É lícito falar de políticas públicas? A rigor não! Mas seja na obra dos “santos sociais”, seja na Carta Encíclica citada, torna-se evidente uma aspiração genuína pelo bem-estar dos trabalhadores explorados e de suas famílias. Em uma palavra, na contramão da política privada praticada pelo capitalismo nascente, ganha espaço uma consciência que apontam para a necessidade de políticas públicas, controladas pelo Estado.
O Papa Leão XIII, por exemplo, no texto assinalado, será claro e enfático sobre o dever dos empresários e das autoridades estatais, no sentido de oferecer melhores condições de vida e de trabalho para aqueles que são responsáveis diretos pela produção em massa. Também irá refletir com igual ênfase sobre as formas de organização dos trabalhadores, fortalecidos pela ação da Igreja. Por uma parte, chama a atenção para os compromissos conjuntos do Estado e da
Indústria, por outra, sublinha o direito de organização da classe trabalhadora. Dois embriões básicos das futuras políticas públicas.
Em outubro de 1929, ocorreu o famigerado “crash” da bolsa de valores de New York. Trata-se de uma das crises mais graves da economia capitalista. Medo, pânico e ameaça se espalharam como uma descarga elétrica negativa. Insegurança e instabilidade tomaram conta do mercado, dos investidores e dos trabalhadores. Como sempre, embora os danos fossem gerais, a corda rebentou do lado mais fraco. O resultado não se fez esperar: desemprego e subemprego, fortes ondas migratórias e forte carestia.
Isso explica como os anos de 1930 se tornaram terreno férteis para o surgimento das ditaduras e dos totalitarismos. Os exemplos são numerosos: Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália e Stalin na União Soviética; Franco na Espanha, Salazar em Portugal, sem falar do Estado Novo e de Getúlio Vargas no Brasil. Ditadura, tirania e totalitarismo são regimes que tendem a eliminar as instâncias intermediárias da sociedade civil. Movimentos populares, organizações sociais de base, partidos e instituições em geral perdem não somente seus objetivos, mas sua razão de ser. O Estado concentra tudo e todos, o que faz lembrar a célebre frase atribuída a Louis XIV, rei da França, em 1655: “L’Etat, c’est moi”.
Justamente no início dessa década tão crítica, em maio de 1931, o Papa Pio XI publica a Carta Encíclica Quadragesimo Anno, ou seja, no 40º aniversário da Rerum Novarum. Entre os temas debatidos, o pontífice retoma a reflexão sobre a justiça social, a busca do bem comum e o princípio de subsidiariedade. Neste último caso, trata-se de um conceito segundo o qual, entre Estado e sociedade civil, cada instância deve tomar nas mãos as tarefas e as responsabilidades a ela confiadas. Em palavras mais concretas, de um lado, as instâncias superiores não devem e não podem desconhecer o direito das instâncias inferiores, no sentido de que estas têm o direito de realizarem as atividades que lhe dizem respeito. De outro lado, as instâncias inferiores não podem e não devem sobrecarregar as instâncias superiores com problemas que são de seu âmbito, mas resolvê-los em sua área. Dessa forma, procura-se respeitar o princípio de subsidiariedade em sua dimensão ascendente.
Mas pode acontecer o inverso: a tentativa de jogar sobre os ombros de instituições menores da sociedade civis determinados encargos que pertencem ao campo do Estado. Ou seja, de um lado, as instâncias superiores não podem e não devem descarregar sobre as instâncias inferiores tarefas para as quais não foram preparadas e devidamente capacitadas. De outro lado, as instâncias inferiores não podem e não devem tomar sobre si resoluções e decisões que estão acima de seu alcance. Neste caso, procura-se respeitar o princípio de subsidiariedade em sua dimensão descendente.
Em tempos de forte crise e de regimes de exceção, abre-se espaço para as duas coisas: ou o Estado neutraliza e manipula todas as instâncias da sociedade civil, ou as sobrecarrega com tarefas que não são de sua competência. Ao mesmo tempo que pode controlar os sindicatos, perseguir a Igreja, inibir as expressões culturais e fechar o parlamento, o Estado totalitário ou tirânico pode igualmente obrigar as entidades e instituições a realizar tarefas para as quais não foram adestradas, como é o caso comum da propaganda político-partidária. Que o digam os exemplos do fascismo, do nazismo e do stalinismo.
Disso decorre a preocupação daquela Carta Encíclica, no sentido de retomar a reflexão sobre o princípio de subsidiariedade. Movimentos sociais, escolas, organizações populares, entidades, associações, produções culturais, Igrejas, etc. não podem ser ignorados ou constrangidos. Todos têm seu lugar e sua função na sociedade civil. Do respeito a essa pluralidade de ações depende o bem-estar de toda a sociedade. Uma vez mais, podemos falar de políticas públicas? A rigor não! Entretanto, ao insistir sobre o respeito ao princípio de subsidiariedade, Pio XI alerta para o risco de criar um mercado que absorva governo e sociedade civil numa política privada única e total, ao mesmo tempo que leva em consideração o terreno onde se desenvolvem os embriões das políticas públicas. O bem comum tem a primazia sobre o lucro e o bem individual.
Não podemos esquecer que nos anos de “ouro do capital” (1945-1970), a aplicação do Welfare State (estado de bem-estar), inspirado na teoria do economista inglês John M. Keynes, se encarregará de envolver empresários e governos numa série de benefícios que têm muito a ver com aquilo que viria a ser chamado de políticas públicas. São uma espécie de irmãos gêmeos das mesmas. Uma vez que os ganhos elevados se generalizavam por boa parte do planeta, tornava-se possível e recomendável oferecer aos trabalhadores melhores condições de vida e trabalho, bem como perspectivas de saúde e segurança de longo prazo. Afinal de contas, todo o trabalhador é, antes de tudo, um consumidor. Daí as migalhas que caem da mesa do rico, recolhidas pelo pobre Lázaro.
Retornando ao pensamento de Pio XI, ao abrir espaço para os mais diferenciados sujeitos e protagonistas da sociedade (pessoas, grupos, associações, movimentos, etc.), amplia-se o campo para a reflexão sobre a necessidades básicas e mais urgentes da população. Políticas públicas não o são apenas pelo fato de serem desenvolvidas pelos organismos do Estado e com o orçamento da União, mas também porque suas prioridades são debatidas e aprovadas pelo maior número possível de pessoas. Três condições são fundamentais para a elaboração de políticas públicas: envolvimento do Estado, uso do orçamento público acumulado com os impostos e taxas e canais efetivos de participação popular.
Os “anos de ouro” do capital terminam com a reviravolta que se inicia na década de 1970. Os milagres econômicos de numerosos países, o pleno emprego de outros e as migalhas do Welfare State cedem o lugar a uma crise prolongada da economia. Dois fatores, entre outros, contribuem decisivamente para a desencadear: primeiro, o boicote do petróleo por parte dos países produtores, acompanhado da elevação do preço; depois, a produção de dólares americanos desvinculada das reservas em ouro nos Estados Unidos. Dois resultados imediatos: elevação dos custos de produção em geral, o que representa menor margem de lucros, e euforia do mercado financeiro, o chamado “cassino mundial”, onde aparentemente dinheiro gera dinheiro. O sistema de produção capitalista começa então a orquestrar, em nível mundial, estratégias para correr atrás dos prejuízos e retomar os ganhos perdidos.
Justamente a partir da década de 1970 e com maior força após o ano de 1989, com o declínio do bloco soviético, ganha espaço e popularidade o conceito de globalização. Significa a expansão da economia capitalista, particularmente em duas dimensões. Temos, em primeiro lugar, a globalização extensiva: esforço concentrado para incorporar novos territórios e novos povos à influência do mercado mundial. Daí a corrida ao continente asiático e, em menor escala, ao continente africano. Destaca-se sobretudo a conquista dos tigres asiáticos, mas também dos gigantes orientais, como a Índia, a China e os países da ex-União Soviética. Verifica-se uma ampliação sem precedentes tanto das fontes de mão-de-obra barata e acessível quanto dos territórios inéditos para a venda de mercadorias.
Em segundo lugar, temos a globalização intensiva. Neste caso, o esforço é dirigido àqueles que, bem ou mal, já estão incorporados aos mecanismos do mercado. Como fazê-los consumir mais, renovando regularmente seus produtos? Multiplicam-se então, de forma estrondosa, os apelos repetitivos e estridentes do marketing, da propaganda e da publicidade. Instala-se o império da moda, como algo que nasce, ganha o apogeu e morre. Efêmera, passageira e sempre volátil, a moda exige trocar de vestiário, de carro ou de celular a cada produto de ponta. A revolução das telecomunicações e da informática, através das novas tecnologias, desencadeia uma corrida ansiosa e frenética às compras das últimas novidades. Resulta que a globalização, em seus aspectos extensivo e intensivo, confere novo fôlego à produção, comercialização e consumo. Daí a noção de economia globalizada.
Ao lado da globalização, verifica-se um movimento aparentemente paradoxal na economia: ela se torna, ao mesmo tempo, mais centrífuga e mais centrípeta. Mas centrífuga do ponto de vista da produção. Em lugar de gigantescos parques industriais, criam-se e multiplicam-se pequenas unidades de produção, facilmente deslocáveis, descentralizando-as de acordo com a facilidade de matéria prima de mão-de-obra mais acessível. As diferentes peças de um determinado bem de consumo – automóvel ou computador, por exemplo – podem ser produzidas em várias partes do planeta. Depois são transportadas e montadas, o que dá origem às montadoras. As revoluções dos transportes, das comunicações e da informática facilitam essa descentralização da produção em massa, com custos inferiores.
Ao mesmo tempo, desde o ponto de vista do controle e do poder de decisão, constata-se um movimento centrípeto. Uma central de inteligência simultaneamente humana e artificial, em qualquer lugar do planeta, é capaz de controlar e decidir sobre o que produzir, como produzir e para quem produzir. Basta acompanhar o desenvolvimento dos colossos do Silicon Valley, na Califórnia, como Amazon, Google, Facebook, Apple; ou então as grandes redes de Fast Food e de supermercados, como a McDonald’s e a Walmart. Em síntese, enquanto a produção tente a descentralizar-se, o poder de controle e de decisão tente a se concentrar. Daí o surgimento das megafusões e dos gigantescos conglomerados internacionais do petróleo, das finanças, da indústria têxtil e automobilística, entre outras.
Terceirização é o processo pelo qual um sistema ou complexo de produção industrial repassa alguns serviços para empreiteiras contratadas de acordo com as necessidades. Duas podem ser as consequências nefastas: primeiro, a empresa se desvincula do ônus ligado aos problemas trabalhistas e à segurança social e sanitária de boa parte de trabalhadores que atuam no seu interior; depois a empreiteira contratada acaba pagando salários inferiores aos funcionários regulares da empresa em questão. Para os empregadores, diminuem os riscos e os gastos, ao mesmo tempo que sobem os lucros. A terceirização também contagiou o setor dos serviços em geral e, de modo especial, aqueles vinculados ao Estado. Mas é sobretudo na agroindústria, com a intermitência natural das safras agrícolas e da requisição de mão-de-obra, que a terceirização ganha maior espaço. Exemplos disso vemos nos apanhadores de laranja, cortadores de cana-de-açúcar, coletores de café, tomate, azeitona, etc.
Boa parte do pessoal que atua nas empreiteiras de terceirização é formada por migrantes internos e imigrantes, estes últimos por vezes irregulares, trabalhadores temporários, mulheres no serviços domésticos, crianças e adolescentes no trabalho informal... São em geral empregos sujos, pesados, perigosos e mal remunerados. Um gigantesco exército de trabalhadores “sem terra, sem endereço fixo e sem pátria” erra pelas estradas do mundo, na tentativa de colher as migalhas dispersas pelos ventos do capital. Constitui a maior diáspora de todos os tempos, com mais de 250 milhões de pessoas. Prova disso são as oficinas da indústria têxtil, na cidade, ou as carvoarias, no campo, onde o trabalho infantil, “doméstico” ou “autônomo” é explorado à máxima potência. O uso dessa mão-de-obra, como é fácil verificar, além de fazer oscilar para baixo a massa salarial da sociedade, também contribui de forma decisiva seja para a dificuldade de conscientização, organização e mobilização dos trabalhadores, seja para e enfraquecimento do sindicalismo combativo.
A flexibilização é irmã siamesa e parceira da terceirização. Para contratar serviços terceirizados é necessário contar com uma legislação trabalhista mais flexível. Numa sociedade em que as classes dominantes ditam as leis, flexibilizar significa repassar determinados custos de produção para os ombros dos trabalhadores. Um cheque em branco para que as empresas possam negociar com empreiteiras suspeitas serviços eventuais, tais como, por exemplo, manutenção do sistema hidráulico ou elétrico da fábrica. Nesse processo, uma série de direitos adquiridos através da onda keynesiana ou através da luta sindical acabam reconvertendo-se em mercadorias. E estas, como se sabe, são vendidas e compradas a preço de mercado. Custos ligados à segurança e à previdência social recaem sobre o bolso dos assalariados. Uma vez mais, as empresas poupam boa parte das despesas em detrimento da qualidade de vida dos trabalhadores.
Com a terceirização e a flexibilização, os encargos sociais passam da responsabilidade das empresas para a (ir)responsabilidade de muitas empreiteiras. Estas, na maioria dos casos, não se encontram aparelhadas para arcar com as consequências de um acidente, de um desastre ou tragédia. Ainda desta vez, os trabalhadores acabam sendo penalizados. Tudo isso, efetivamente, atinge a dignidade da pessoa humana e se sua família.
Algumas reformas propostas pelos governos eleitos nas últimas décadas, em diversas partes do globo, são reconhecidamente necessárias. Outras duvidosas. De qualquer forma, a grande pergunta é “quem paga a conta”? Limitando-nos ao Brasil, tomemos o caso da Reforma da Previdência. O problema não está no texto a ser aprovado, mas no embate de forças no jogo de xadrez da prática política nacional. Até que ponto o governo eleito têm força para quebrar o corporativismo e os privilégios dos servidores públicos, das forças armadas, dos poderes executivo, legislativo e judiciário?
No fundo, não estaremos repetindo o esquema da Casa Grande & Senzala, cunhado pelo sociólogo Gilberto Freire? Enquanto os privilégios da Casa Grande são adquiridos e intocáveis, os favores da Senzala não passam de migalhas, as quais dependem do humor de quem detém as rédeas do poder. E quando os moradores da Senzala tentam se organizar e se mobilizar para transformar os favores/migalhas em direitos, tropeçam com o tronco, o chicote, a polícia ou o exército – formas de repressão bem conhecidas e notórias na tradição socioeconômica e político-cultural deste país – como mostra o caso do Quilombo dos Palmares.
As últimas décadas do século XX também se apresentam como um período de organização e mobilização popular intensa, plural e diversificada. Aqui vamos apenas citar os canais que mais marcaram época, especialmente no combate ao regime militar de exceção. No interior da Igreja, já desde os anos de 1960, temos as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a formação das diversas Pastorais Sociais, a defesa dos Direitos Humanos – tudo isso com a iluminação teórica da Teologia da Libertação (TdL). Pelas periferias, multiplicaram-se movimentos sociais com exigências voltadas para melhorias na saúde, na energia elétrica, na pavimentação das ruas, na habitação, no transporte público, nas creches, na escola, e assim por diante. Os chamados círculos bíblicos de reflexão/ação constituíam espaços para onde convergiam: a) a constatação dos problemas sociais da rua, bairro, cidade ou campo, b) a luz da Palavra de Deus lida de forma crítica e potencialmente sociopastoral e c) a formação de movimentos e atividades concretas, em vista da busca de soluções. O instrumento popular era o método VER-JULGAR-AGIR, com raízes na Ação Católica e em Paulo Freire.
Entre a segunda metade da década de 1970 e o início dos anos 80, saiu às ruas o Movimento contra o Custo de Vida (MCV), contra a carestia, ilustrado pela grande manifestação das panelas vazias. O movimento estudantil e uma série de intelectuais engajados ajudaram a movimentar o ambiente acadêmico. No campo, proliferaram as Ligas Camponesas no Nordeste e, depois, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, por várias regiões do território nacional. A partir do núcleo do ABC paulista e da capital São Paulo, como também de outras localidades do território nacional, desenvolveu-se um sindicalismo fortemente combativo, o qual iria dar à luz a CUT e posteriormente o Partido dos Trabalhadores (PT). Tampouco podemos esquecer as múltiplas e diversas manifestações pela preservação do meio ambiente ou da “casa comum” (expressão do Papa Francisco), a luta dos povos indígenas e remanescentes de quilombos, bem como os movimentos femininos em suas diferentes versões.
Nos anos de 1990 e início do século XXI, destacaram-se os debates em torno das Semanas Sociais Brasileiras (SSBs) e as primeiras edições do Grito dos Excluídos (1975). Na preparação ao grande jubileu do ano 2000, nasceu e se fortaleceu a Campanha Jubileu Sul, destinada à análise e debate sobre a Dívida Pública, acompanhada do Tribunal Popular da Dívida Externa. Depois vieram os Plebiscitos Populares, sobre a Dívida e sobre a ALCA, os quais mobilizaram em todos os estados do país dezenas de milhares de voluntários, levando cerca de 10 milhões de pessoas às urnas. Em outubro de 2002, após três tentativas, Luiz Inácio Lula da Silva se elege pela primeira vez presidente do Brasil.
Desnecessário acrescentar que tais mobilizações, além do combate à ditadura militar e à violação dos Direitos Humanos, tinham no horizonte um desenho de políticas públicas. Entre a população organizada e as autoridades de plantão, estiveram sobre a mesa questões ligadas à segurança nacional, à educação, ao déficit habitacional, à melhoria das condições de vida, à falta ou escassez do transporte, ao custo de vida comparado com o salário mínimo, entre tantas outras. Transparecia o anseio e as aspirações por políticas públicas, onde a justiça, a paz e a dignidade humana estivesses em primeiro lugar.
Por que a CNBB, durante a Quaresma deste ano, coloca em debate esse tema das políticas públicas? A resposta, em parte conhecida e em parte intuída, desdobra-se em três linhas de reflexão. Em primeiro lugar, não apenas no interior da Igreja, mas também em outros campos de ação sociopastoral e política, respira-se a sensação de que estamos assistindo a um desmonte das políticas públicas. De algumas décadas para até os dias de hoje, especialmente os governos ligados ao nacionalismo populista, mais alinhados à direita do que à esquerda, vêm promovendo uma verdadeira desconstrução do estado de bem-estar da teoria keynesiana. Muitas reformas e muita retórica, por mais que digam o contrário, estão despindo os trabalhadores de seus direitos, tão dura e longamente adquiridos.
Nesse desmonte, determinados serviços vinculados à função histórica do Estado acabam sendo privatizados ou terceirizados. A iniciativa privada, por sua vez, sem jamais esquecer sua margem de lucro, começa a vender tais serviços como mercadoria a ser paga. Veja-se o pedágio nas estradas, por exemplo. Além disso, outros tipos de serviços são pura e simplesmente abandonados pelos órgãos estatais. Destes últimos, alguns passam para as mãos de associações, movimentos sociais, instituições, organizações não governamentais (ONGs), igrejas e entidades do tipo. Neste caso, muitas vezes, o governo não só deixa de cumprir o seu papel, como ainda por cima parece perseguir que o faz, através de uma fiscalização que não se vê no interior de seus mesmos organismos. O cuidado com as crianças e adolescentes é um bom exemplo desse desrespeito por parte das autoridades.
Em segundo lugar, semelhante situação de descaso, particularmente diante da população de baixa renda, como era de se esperar, leva a Igreja Católica a retomar os princípios básicos de seu ensino social. Este os retoma recordando, entre outras, três linhas fundamentais:
a) a função pública da propriedade privada, “sobre a qual pesa uma hipoteca social”, como dizia São João Paulo II;
b) a primazia do trabalho sobre o capital, no sentido de garantir ao trabalhador e família salário digno, segurança e saúde; e
c) o direito de organização e mobilização por parte dos trabalhadores, o qual, como vimos, vem desde a Rerum Novarum. Estão em jogo, no fundo, a retomada das políticas públicas voltadas para os estratos mais carentes e marginalizados. Entendemos por políticas públicas “um conjunto de medidas de planejamento e administração do orçamento público (soma de impostos, taxas, multas, etc.) em função de programas que atendam às necessidades mais urgentes da nação”. Mas não só isso! Além de envolver os frutos do trabalho de todos os cidadãos, tais programas devem também levar em conta a participação do maior número possível deles.
Um exemplo recente: se a política pública da extração do minério de ferro levasse em conta, prioritariamente, a segurança do trabalhador, e só depois, os ganhos da empresa, certamente teríamos evitado as tragédias de Mariana (2015) e Brumadinho (2019). O acúmulo de rejeitos minerais com barragens reforçadas a montante foi utilizado porque era mais barato, poupando gastos da empresa e elevando seus lucros. O reforço a jusante deveria ser obrigatório e devidamente fiscalizado pelos órgãos do governo. O que faltou? Uma medida técnica de segurança para a construção da barragem, por um lado, e, por outro, uma fiscalização séria e efetiva. Ou seja, faltou uma verdadeira política pública de segurança na atividade mineradora. Muitos outros exemplos garimpados em diversos campos da administração pública: educação, saúde, transporte, habitação, produção agrícola, meio ambiente, e assim por diante.
Em terceiro lugar, como já ficou claro, políticas públicas não são somente as medidas tomadas pelo Estado e que usam o tesouro da nação como um conjunto. Além disso, é preciso encontrar vias e espaços para a participação e a tomada de decisão populares (pessoas, grupos, partidos, associações, movimentos...). Formas de contribuição como os Conselhos Populares ilustram melhor quais as prioridades de cada rua, bairro, cidade, país. O termo fraternidade acoplado às políticas públicas mostra isso. A fraternidade requer o parecer de cada força social e política no debate sobre, por exemplo, a política pública de produção: quem decide o que produzir, como produzir e para quem produzir? Este o desafio que a CNBB lança para a conversão pessoal e coletiva da CF/2019: como e nutrir novos espaços, novas formas, novos canais, novos instrumentos e novos mecanismos de participação popular na elaboração de políticas públicas que visem o bem comum e a dignidade de toda pessoa humana – coluna vertebral e linha mestra do ensino social da Igreja!?
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Fraternidade de políticas públicas: à luz do ensino social da Igreja (em perspectiva histórica) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU