João Paulo II também foi vítima de documento contra as “heresias”

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27 Setembro 2017

A velocidade da internet e das redes sociais que se transformaram em repetidoras servem de caixa de ressonância para o que está acontecendo – por exemplo, no caso da chamada "correção filial" do Papa Francisco –, como se nunca antes tivesse acontecido algo semelhante. Um olhar sobre a história recente da Igreja nos ajuda a entender que este não é o caso e a informar a justa dimensão do documento assinado por 79 estudiosos, pesquisadores, jornalistas e blogueiros, no qual se argumenta que o Papa Francisco propagou “proposições heréticas”.

A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada por Vatican Insider, 26-09-2017. A tradução é de André Langer.

Os autores do texto, também assinado pelo ex-presidente do IOR, Ettore Gotti Tedeschi, indicam sete "heresias", na verdade nunca escritas ou pronunciadas pelo Pontífice, mas "deduzidas" por eles mesmos de seu magistério ou de seus discursos. Trata-se, provavelmente, de um primeiro passo para essa "correção formal", à qual se referiu muitas vezes o cardeal estadunidense Raymond Leo Burke, um dos quatro signatários das "dubia" sobre a Amoris Laetitia que foram apresentadas a Bergoglio.

Dar um passo atrás ajuda a entender o real alcance do documento que está sendo discutido nestes dias. João Paulo II, por suas afirmações em consonância com o Concílio Ecumênico Vaticano II (verdadeiro alvo de muitos críticos) nas áreas do ecumenismo, da liberdade religiosa e do diálogo com as outras religiões, foi repetidamente atacado em vida. E também depois da sua morte, algumas pessoas da área mais extrema do tradicionalismo, representada pelo "sedevacantismo" (ou seja, aqueles que consideram que não havia um Papa real na cadeira de Pedro desde Pio XII), chegaram a atribuir a ele 101 “heresias”. Para criticá-lo, eles usavam citações extraídas dos documentos de papas do passado.

Elas têm a ver com algumas afirmações do Papa Wojtyla sobre o ecumenismo, isto é, sobre os irmãos separados, que são, precisamente, chamados de irmãos e não mais de "filhos do diabo", sobre a possibilidade de definir os "cristãos", mesmo os não-católicos, sobre a possível salvação além das fronteiras visíveis da Igreja, sobre a salvação de crianças mortas sem o batismo, sobre a possibilidade do martírio cristão fora da Igreja católica, sobre a definição dos hebreus como "nossos irmãos", sobre a liberdade de consciência como direito humano, sobre o direito à liberdade de professar a fé, mesmo para os não-católicos... Tudo isso acompanhado de notas indicando onde e quando o Papa João Paulo II havia feito certas afirmações, e onde e quando os papas do passado afirmavam o contrário.

Mas não devemos esquecer que no caso citado estamos falando de frações extremistas e marginais, que agora são conhecidas explorando o potencial da internet, mas que não têm consistência real entre o povo cristão. Muito diferentes (tanto por sua seriedade quanto por suas proporções) foram as críticas e petições que fizeram chegar a São João Paulo II os teólogos que eram contra o chamado "centralismo romano". Uma crítica ao Pontífice polonês e também ao seu prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé Joseph Ratzinger. Estamos falando da famosa Declaração de Colônia, que até alguns anos atrás era apresentada como um "ataque ao magistério" por parte daqueles que hoje se comportam da mesma maneira porque o magistério não diz exatamente o que eles pensam. Os signatários da declaração não fizeram os exames da doutrina do Papa, como fazem agora, mas contradizem uma parte das instâncias conciliares.

Em 1989, promovida inicialmente pelos teólogos de Tübingen Norbert Greinacher e Dietmar Mieth e por um primeiro grupo de dissidentes, a “carta aberta” foi subscrita por 162 professores de teologia católica de fala alemã. Imediatamente depois, ela foi assinada por 17 mil leigos e eclesiásticos da Holanda e 16 mil párocos e leigos da então República Federal da Alemanha, bem como por uma centena de grupos católicos. Outras declarações similares apareceram na Bélgica, França, Espanha, Itália, Brasil e Estados Unidos. O motivo da declaração foi a sucessão do bispo de Colônia e o questionamento das prerrogativas tradicionalmente concedidas ao capítulo em muitas dioceses alemãs sobre a indicação das propostas das ternas dos candidatos.

Assim, criticavam-se o "centralismo romano" e a falta de escuta por parte da Santa Sé das instâncias e indicações das Igrejas locais. Dizia-se que a negação da autorização eclesiástica para ensinar a "teólogos e teólogas qualificados" representava "um grave perigo e um atentado à liberdade de pesquisa". O documento usou os mesmos argumentos daqueles que agora criticam Francisco, convidando os "bispos para se lembrarem do exemplo de Paulo, que permaneceu em comunhão com Pedro apesar de ‘lhe resistir de frente’, em relação à questão da missão entre os pagãos".

No dia 15 de maio de 1989, também na Itália – isto é, a nação considerada a mais católica da Europa e em que o Papa, que também é seu primaz, vive –, 63 teólogos publicaram, na revista Il Regno, um documento crítico intitulado “Carta aos Cristãos – Hoje na Igreja”, expressando seu desconforto "com determinadas atitudes da autoridade central da Igreja no campo do ensino, no campo da disciplina e na esfera institucional", para manifestar "a impressão de que a Igreja católica foi sacudida por fortes impulsos regressivos". A carta foi assinada por muitos importantes professores de várias faculdades teológicas e de diversas universidades italianas. Fizemos menção a Declaração de Colônia não para sugerir comparações absurdas com o que aconteceu nestes dias, mas para documentar como dissidências e pedidos não representam nada de novo.

Voltando às críticas que vêm da frente "tradicionalista" ou conservadora, não devemos esquecer os ataques, às vezes ferozes, contra Bento XVI por alguns de seus discursos em que ele enfrentava o tema do ecumenismo ou pela decisão de participar do encontro inter-religioso de Assis. Também não devemos esquecer que muitos criticaram muito duramente o cardeal Gerhard Ludwig Müller algumas semanas antes de ser nomeado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em 2012. Uma operação de alto nível, com apoios dentro da cúria romana, para trazer à tona algumas de suas declarações consideradas "heterodoxas" e tentar impedir a sua nomeação.

A tradução para diferentes línguas das passagens consideradas "dubbia" de suas obras foi enviada anonimamente por correio eletrônico para vários jornalistas, na esperança de que se tornassem inquisidores de Müller. E os textos foram divulgados em sítios e blogs próximos ao chamado mundo tradicionalista e lefebvriano. O futuro prefeito escreveu, na época, que a doutrina sobre a virgindade de Maria "não diz respeito tanto às propriedades fisiológicas específicas do processo natural do nascimento", que "o corpo e o sangue de Cristo não indicam elementos materiais da pessoa humana de Jesus durante a sua vida ou de sua corporeidade transfigurada" e que, graças ao Batismo, "nós, como católicos e cristãos evangélicos, já estamos unidos, mesmo naquilo que chamamos de Igreja visível".

Naquela época, para defender Müller, saiu a campo Nicola Bux, que era consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, com uma entrevista concedida ao Vatican Insider na qual ele disse: "O desenvolvimento doutrinário é enriquecido pelo debate: quem tem mais argumentos convence. Nas acusações contra dom Müller, tira-se tudo do contexto: assim é fácil condenar qualquer um. Um verdadeiro católico deve confiar na autoridade do Papa, sempre".

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