17 Julho 2020
A Congregação para a Doutrina da Fé publica um Vademecum para orientar, passo a passo, quem deve proceder para averiguar a verdade quando um menor sofre abusos por parte de um sacerdote ou religioso. O texto é o mais recente resultado do vértice determinado pelo Papa no Vaticano de 21 a 24 de fevereiro de 2019 com os presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo. Nenhuma nova norma, mas muitos detalhes operacionais que estabelecem um quadro rigoroso.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por Famiglia Cristiana, 16-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com um "manual de instruções" extremamente detalhado (164 parágrafos), o Vaticano fornece aos bispos de todo o mundo indicações operacionais estritas para lidar com casos de abuso sexual de menores, recomendando, entre outras coisas, não "descartar" as denúncias anônimas ou que apareceram nas redes sociais, não transferir um padre suspeito de paróquia em paróquia e encaminhar as denúncias para as autoridades civis "sempre que considerar que isso seja indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos criminosos". O "Vademecum sobre alguns pontos de procedimento no tratamento dos casos de abuso sexual de menores cometidos por clérigos elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé" é o mais recente resultado do vértice sobre a pedofilia determinado pelo Papa no Vaticano de 21 a 24 de fevereiro 2019 com os presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo.
"A história recente atesta a maior atenção da Igreja sobre essa praga", escreve o cardeal Luis Francisco Ladaria, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, apresentando o documento. “O caminho da justiça por si só não pode esgotar a ação da Igreja, mas é necessário para alcançar a verdade dos fatos. Trata-se de um caminho articulado, que adentra a densa floresta das normas e das práticas, diante da qual Ordinários e Superiores às vezes se sentem incertos sobre qual direção seguir. Eis então, aqui está o Vademecum, escrito principalmente para eles, bem como para os profissionais do direito que os ajudam a lidar com os casos. Não se trata de um texto normativo: nenhuma nova lei é promulgada, nenhuma nova lei é emanada. Em vez disso, trata-se de um "manual de instruções" - especifica o jesuíta espanhol - que pretende levar passo a passo aqueles que precisam lidar concretamente com os casos do início até o fim, ou seja, desde a primeira informação de um possível delito (notitia de delicto) até a conclusão final da causa (res iudicata). Entre esses dois extremos, há tempos a serem observados, medidas a serem tomadas, comunicações a serem ativadas, decisões a serem tomadas”. Constitui-se, consta no prefácio do vademecum, de uma ajuda dirigida a bispos e superiores religiosos para "melhor entenderem e implementarem as exigências da justiça no caso de um delictum gravius que constitui, para toda a Igreja, uma ferida profunda e dolorosa que pede para ser curada”.
Portanto, nenhuma nova norma, mas nas dobras do longo articulado existem muitos detalhes operacionais que esboçam um quadro rigoroso ao qual, a partir de agora, será oportuno que os bispos de todo o mundo se conformam em combater a pedofilia. Depois de especificar "O que configura o delito", como foi sendo definido na normativa e na jurisprudência canônica nas últimas décadas, na primeira seção, o vademecum responde, na segunda seção, à pergunta "O que fazer quando se recebe a informação sobre um possível delito (notitia de delicto)?”. Significativamente, o ex Santo Ofício especifica que "não é preciso que se trate de uma denúncia formal" e que também pode ser "divulgada pela mídia de massa (incluindo as mídias sociais)" ou "chegar ao seu conhecimento através de vozes recolhidas”.
Além disso, “algumas vezes, a notitia de delicto pode chegar de fonte anônima, ou seja, de pessoas não identificadas ou não identificáveis. O anonimato do denunciante não deve levar automaticamente a considerar falsa tal notitia; no entanto, por razões facilmente compreensíveis, é oportuno ter muita cautela ao tomar em consideração esse tipo de notitia, que de modo algum deve ser encorajado. De igual modo, não é aconselhável descartar a priori a notitia de delicto, proveniente de fontes cuja credibilidade possa parecer, à primeira vista, duvidosa”.
Conforme explicado pelo secretário da Doutrina da Fé, Monsenhor Giacomo Morandi, em uma entrevista a Andrea Tornielli para o Vatican News, "percebeu-se que uma atitude peremptória em um sentido ou outro não ajuda na busca da verdade e da justiça. Como descartar uma denúncia que, embora anônima, contenha certas evidências (por exemplo, fotos, vídeos, mensagens, áudio ...) ou pelo menos indícios concretos e plausíveis da prática de um delito? Ignorá-la apenas porque não assinada seria injusto. Por outro lado: como aceitar como válidas todas as sinalizações, mesmo que genéricas e sem remetente? Nesse caso, proceder seria inoportuno. Um cuidadoso discernimento deve, portanto, ser feito. Em geral, as denúncias anônimas não recebem crédito, mas não devem ser descartadas a priori uma sua prévia avaliação para verificar se existem elementos objetivos e evidentes determinantes, o que chamamos de fumus delicti em nossa linguagem”. O vademecum esclarece, ainda, que o confessor que, durante a celebração do sacramento, é informado de um delictum gravius, deve tentar "convencer o penitente a divulgar suas informações por outras vias, a fim de colocar em condições de atuar quem de direito".
Além disso, embora, como o próprio monsenhor Morandi explica, "não haja resposta unívoca" a respeito da obrigatoriedade da denúncia às autoridades civis, uma vez que "em alguns países a lei já prevê essa obrigação, em outros não", o Vademecum prescreve no entanto, que "mesmo na ausência duma explícita obrigação normativa, a autoridade eclesiástica apresente denúncia às autoridades civis competentes, sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos". O documento do Vaticano detalha quais ações o bispo deve tomar quando uma notitia de delicto é recebida e especifica, entre outras coisas, que "a Congregação para a Doutrina da Fé, por decisão própria, por solicitação explícita ou por necessidade, pode também pedir a um Ordinário ou um Hierarca terceiro que realize a investigação prévia”. Além disso, "a investigação prévia canônica deve ser realizada, independentemente da existência ou não de uma investigação correlativa pelas autoridades civis".
O Vademecum elabora a extensão, as modalidades e os limites da investigação prévia e lembra, entre outras coisas, que nessa fase "se está obrigado a observar o segredo de ofício. Tenha-se em mente, porém, que não se pode impor qualquer vínculo de silêncio sobre os fatos a quem faz a denúncia, à pessoa que afirma ter sido ofendida, nem às testemunhas”.
Não apenas isso: "É absolutamente necessário evitar, nesta fase, qualquer ato que possa ser interpretado pelas presumíveis vítimas como um obstáculo ao exercício dos seus direitos civis perante as autoridades estatais". É previsível, sempre nessa fase, a imposição de medidas cautelares, que "o aspecto não penal da medida deve ser bem esclarecido ao interessado, para evitar que ele pense ter sido julgado ou punido antes do tempo". "Deve-se evitar – explica o texto - a opção de realizar simplesmente uma transferência de ofício, de circunscrição, de casa religiosa do clérigo envolvido, pensando que o seu afastamento do local do suposto delito ou das presumíveis vítimas constitua solução satisfatória do caso".
O Vademecum lembra, nesse ponto, com grandes detalhes o que acontece na conclusão da investigação, o processo penal bem como a via mais rápida do processo penal extrajudicial, as várias sanções possíveis, como a possibilidade de absolver o acusado ou de não chegar uma prova certeira de sua culpabilidade, os vários graus de juízo com os possíveis apelos até chegar ao Papa. Também deve ser notada a possibilidade, mencionada no vademecum, que, como explica Monsenhor Morandi, "quando o clérigo reconhece o delito e sua própria não idoneidade para continuar o ministério pode pedir para ser dispensado. Assim, ele continua sendo sacerdote (o sacramento não pode ser revogado ou perdido), mas não mais clérigo: deixa o estado clerical não por demissão, mas por seu consciente pedido dirigido ao Santo Padre. São vias diferentes que chegam ao mesmo resultado em relação à condição jurídica da pessoa: um ex-clérigo que nunca mais poderá se apresentar como ministro da Igreja".
As diretrizes são a última das medidas anunciadas no final do vértice sobre a pedofilia determinado pelo Papa no Vaticano de 21 a 24 de fevereiro de 2019 com os presidentes das conferências episcopais de todo o mundo. O próprio Pontífice havia sugerido, em suas reflexões finais, "elaborar um vademecum prático no qual fossem especificados os passos a serem tomados pela autoridade em todos os momentos-chave da emergência de um caso". O jesuíta Federico Lombardi, ex-porta-voz do Vaticano e moderador daquele histórico encontro, havia indicado na época que esse vademecum teria ajudado "os bispos do mundo a entender claramente seus deveres e suas tarefas". Desde fevereiro de 2019, no entanto, Francisco introduziu uma longa série de inovações normativas e procedurais, que as diretrizes podem finalmente implementar.
O pontífice argentino promulgou num primeiro momento, em 29 de março de 2019, normas penais contra os abusos sexuais para o Estado da Cidade do Vaticano e a Cúria Romana, incluindo núncios apostólicos, na forma de um Motu proprio "sobre a proteção de menores e adultos vulneráveis” e uma nova lei (número CCXCVII) - até então inexistente - com diretrizes análogas às diretrizes adotadas pelas Conferências Episcopais nacionais, mas dedicadas à vida dos fiéis do Vicariato da Cidade do Vaticano. Duas medidas, estas, de valor "exemplar", além de efetivo, para indicar às Igrejas nacionais um modelo rigoroso de regulamentação interna, ainda que aplicado ao Estado Papal. Em 9 de maio, com o motu proprio "Vos estis lux mundi", Vós sois a luz do mundo, o Papa ordenou e atualizou a normativa antiabuso válida para toda a Igreja Católica, introduzindo, inclusive, a obrigação de padres e religiosos denunciarem os abusos ao seu bispo, reforçando o papel do arcebispo metropolitano nas investigações, sancionando a proibição de impor o vínculo de silêncio e recomendando que cada diocese se equipe com um sistema facilmente acessível ao público para receber as sinalizações. Em 17 de dezembro de 2019, novamente, com duas "reescritas" assinadas pelo cardeal secretário de Estado Pietro Parolin, o Papa Francisco aboliu o segredo pontifício nos casos de violência sexual e abuso contra menores cometidos por clérigos, e também decidiu mudar a norma relativa ao delito de pornografia infantil, incluindo entre os “delicta graviora”, os delitos mais graves, a posse e difusão de imagens pornográficas envolvendo menores de 18 anos. Finalmente, no final de fevereiro, a Santa Sé apresentou uma força-tarefa, coordenada pelo maltês Andrew Azzopardi, que fornecerá suporte às Conferências Episcopais e às ordens religiosas de todo o mundo para implementar as medidas de combate e prevenção dos abusos sexuais cometidos por padres e religiosos. O Vaticano já havia regulamentado a questão dos abusos sexuais com o motu proprio de João Paulo II Sacramentorum Sanctitatis Tutela de 2001, atualizado em 2010 por Bento XVI, e Francisco já havia feito uma intervenção endurecendo as normas em 2013.
Agora chegam as “diretrizes” da Congregação para a Doutrina da Fé para fornecer aos bispos de todo o mundo indicações operacionais para a aplicação correta das normas canônicas existentes quando surgir um caso de abuso sexual. Como afirma o cardeal Ladaria, "o Vademecum será hoje entregue em sua primeira versão, chamada "1.0”: um número que prevê futuras atualizações. Por ser um "manual", deverá acompanhar os eventuais desenvolvimentos da normativa canônica, adaptando-se a ela". Como o monsenhor Morandi explica, o fenômeno dos abusos sexuais de menores por clérigos "está presente em todos os continentes, e ainda assistimos ao aparecimento de denúncias de fatos antigos, às vezes de até muitos anos. Certamente, alguns delitos também são recentes. Mas quando essa fase de "emersão" do passado terminar, estou convencido (e todos esperamos isso) que o fenômeno a que estamos testemunhando hoje poderá acabar. No entanto, é preciso dizer que o caminho da verdade e da justiça é uma das vias de resposta da Igreja. Necessária sim, mas não suficiente. Sem uma adequada formação, um atento discernimento, uma serena, mas determinada prevenção, ela não pode curar sozinha essa ferida que estamos testemunhando hoje”.
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“Vademecum” do Vaticano para os bispos: ok, inclusive para denúncias anônimas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU