Constrangido, governo deverá fazer cortes sociais no próximo ano. Entrevista especial com Guilherme Delgado

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09 Dezembro 2014

“O governo está repetindo o mesmo padrão de ajustamento constrangido em uma situação macroeconômica externa completamente diferente, com uma virada cíclica negativa de comércio externo e do preço externo de commodities, em uma situação de estagnação forte da indústria e também de certo desequilíbrio fiscal”, adverte o economista.

Foto: www.cbnsalvador.com.br

O significado político do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, passada a euforia da reeleição e diante das primeiras declarações feitas à imprensa e da escolha da equipe econômica, é diferente do significado político que teve imediatamente após as eleições. Essa tese é defendida pelo economista Guilherme Delgado, que assinou o Manifesto dos Economistas pelo Desenvolvimento e pela Inclusão Social, e vê com preocupação as mudanças anunciadas para o próximo ano, a começar pelos ajustes a serem feitos nas políticas sociais.

“O governo Dilma disse que iria continuar com a valorização do salário mínimo, com a política de emprego, de renda, etc. Esse discurso foi em parte responsável pelo resultado eleitoral, mas não é o que se desenha com o apontamento da política econômica avisada pelo ministro Levy e pela virtual autonomia do Banco Central, para fazer política de caráter monetário de elevação de juros e cortar uma série de recursos que hoje comparecem como fundamentais para o problema distributivo da política social”, pontua.

Delgado enfatiza que a campanha eleitoral da presidente reeleita prometeu manter o programa de valorização do salário mínimo, apesar do baixo crescimento, como já vinha sendo feito no primeiro mandato. Entretanto, ressalta, “provavelmente isso vai ser revisto agora, tendo em vista que já se anuncia uma minirreforma da previdência, que não tem esse nome para não despertar suspeitas, mas é um pacote de redução de benefícios no sistema previdenciário. Isso já ocorreu no fim do governo Dilma, com a desoneração da folha de pagamento da previdência social, portanto, retiram-se recursos do sistema”. E acrescenta: “Os recursos fiscais, que estão sendo mirados nesse momento, são recursos da política social, por isso este aspecto está sendo mudado”.

Para o economista, a escolha de Levy à frente da equipe econômica, no comando do Ministério da Fazenda, demonstra a “continuidade da influência do ex-presidente Lula na montagem dessas equipes em situações de emparedamento”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Delgado também comenta a carta do Grupo de Emaús, enviada à presidente Dilma. “A carta do Grupo de Emaús é uma carta dirigida ao espaço vazio. Não seria, se fosse dirigida à população e se fosse comunicada com caráter de denúncia — denúncia do golpe e denúncia da chantagem. Mas a carta fica só no plano dos princípios, achando que há uma diferença abissal entre o programa concreto histórico que a Dilma vai executar e o programa que foi derrotado. Não, o programa derrotado é o que vai ser executado agora e isso precisa ser denunciado”, comenta.

Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.

Foto: 3.bp.blogspot.com

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o significado político e econômico da reeleição de Dilma?

Guilherme Delgado – Essa pergunta, respondida imediatamente depois das eleições, tem um significado e, respondida agora, quando já está se formando o governo, tem outro. E, nesse ínterim, há uma campanha que se costuma chamar de “terceiro turno” e que de certa forma reconfigura o resultado eleitoral. O resultado eleitoral que sai da população votante é um, e a conformação desse resultado na formação do governo e na orientação do governo, parece ser outro. Nesse entremeio há uma campanha sistemática daqueles que perderam a eleição no sentido de emparedar o governo para que pelo menos a agenda econômica — que foi supostamente derrotada — retorne à política oficial. Então, a reeleição tem esses dois significados.

Num primeiro momento, o resultado eleitoral deu um recado à proposta de retorno à orientação política e econômica do PSDB, fortemente personalizada por Aécio e Fernando Henrique Cardoso. Logo após as eleições, parecia que esse modelo havia sido derrotado, mas não foi o que se viu logo em seguida, numa campanha muito forte, com tonalidades um pouco golpistas no sentido de apresentar uma espécie de pré-impeachment da presidente, com o argumento de reconfiguração do governo. Ou seja, o governo supostamente é ilegítimo porque é corrupto e, como corrupto, não pode ganhar, e se ganhar não pode assumir, e se assumir não pode governar, etc. Aparentemente essa campanha não é para valer, mas pode até se tornar séria dependendo da eleição do presidente da Câmara dos Deputados, dada a maioria parlamentar existente ali.

“Tenho minhas dúvidas de que o PT tivesse uma proposta antes e agora está com outra”

IHU On-Line - Por que logo após as eleições havia um significado e agora há outro? O senhor quer dizer que o PT tem uma proposta política e econômica, mas não consegue colocá-las em prática por conta das circunstâncias? Esperava que a agenda econômica fosse outra?

Guilherme Delgado – Tenho minhas dúvidas de que o PT tivesse uma proposta antes e agora está com outra. O que estou dizendo é que, na discussão econômica da campanha eleitoral, ficaram muito matizadas as diferenças do Programa Dilma x Programa Aécio x Programa Marina. Por exemplo, a discussão da independência do Banco Central foi rejeitada como sendo um retrocesso, e a discussão sobre soberania e distribuição, embora com tonalidades um pouco eleitoreiras, esteve sempre ligada ao Programa Bolsa Família, e não à política social de conjunto. De todo modo, se fazia essa clivagem no sentido de mostrar que o governo Aécio faria um choque de corte genérico da política social para adequar a um ajuste fiscal de forma totalmente abrupta, enquanto o governo Dilma não faria isso. O governo Dilma disse que continuaria com a valorização do salário mínimo, com a política de emprego, de renda, etc. Esse discurso foi, em parte, responsável pelo resultado eleitoral, mas não é o que se desenha com o apontamento da política econômica aviada pelo ministro Levy e pela virtual autonomia do Banco Central, para fazer política de caráter monetário, de elevação de juros. Enfim, de cortar uma série de recursos que hoje comparecem como fundamentais para o problema distributivo da política social.

IHU On-Line - Esse não era um discurso só do governo Dilma, mas de muitos militantes da esquerda que apoiaram o governo apontando para a diferença entre dois projetos de país. Considerando os últimos anos do governo Dilma, podia-se esperar que a política econômica fosse outra?

Guilherme Delgado – Boa pergunta. O primeiro governo Dilma fez uma administração não ortodoxa do ponto de vista neoliberal, porque em um primeiro momento tentaram colocar o sistema financeiro sob uma nova regulação, principalmente em relação à questão dos juros. Mas logo em seguida, a partir de 2013, isso já se reverteu. Entretanto, havia uma tentativa de manter a política social. A manutenção do programa de valorização do salário mínimo, mesmo que com baixo crescimento econômico, continuou. Provavelmente isso vai ser revisto agora, tendo em vista que já se anuncia uma minirreforma da previdência — que não tem esse nome para não despertar suspeitas, mas é um pacote de redução de benefícios no sistema previdenciário. Isso já ocorreu no fim do governo Dilma, com a desoneração da folha de pagamento da previdência social, portanto, retiram-se recursos do sistema. Primeiro se retiram os recursos e, obviamente, com um sistema sem recursos ocorre déficit. Então, o segundo mandato de Dilma iniciará com um pacote de redução de benefícios, o qual já está anunciado. Nos jornais, os artigos desta semana, do próprio Delfim Neto e de outros que são muito próximos do governo, já anunciam isso como favas contadas: redução de benefícios das pensões e aumento de idade para a aposentadoria, na linha de reformatação da política social na perspectiva de menor impacto distributivo. Porque essa política social, e não o Bolsa Família, é que tem um caráter distributivo e, portanto, requer recursos.

Os recursos fiscais, que estão sendo mirados neste momento, são recursos da política social, por isso este aspecto está sendo mudado. Essa talvez seja a maior mudança porque, do outro lado, a política para o agronegócio vai continuar do mesmo jeito e até pior, porque Kátia Abreu é muito primária no trato que dá à questão. A política industrial, que não foi feita no primeiro governo, ainda não se sabe como será feita, porque não se faz política industrial simplesmente com declarações de intenção; tem de haver um arranjo novo de relançamentos da indústria, de competitividade da indústria, etc. Enfim, há um conjunto de anúncios ou de prenúncios que mostra um recuo no campo distributivo com aderência forçada às regras do ajuste fiscal ortodoxo, e uma continuidade do campo mais conservador da política, que vem desde FHC, Lula e Dilma, que é a completa e cega confiança na economia do agronegócio como espécie de novo nicho de crescimento do conjunto da economia. Isso é um equívoco, e mais dia menos dia o governo vai ter de sair dessa política, porque não é com especialização primária que uma economia desse tamanho vai sair da dependência externa em que se encontra. Essa é outra questão para a qual o governo não está tendo resposta. Há um agravamento do déficit externo e do déficit em conta corrente, que no último triênio do governo Lula foi de um tipo, no primeiro biênio do governo Dilma foi de outro, e agora é muito pior. Isso porque se partiu de um patamar de 30 bilhões de déficit para 50 bilhões no primeiro biênio do governo Dilma, e para mais de 80 bilhões no segundo biênio do governo Dilma, porque a economia está desatrelada da manufatura do ponto de vista exportador e totalmente dependente de commodities, o que nos torna cativos de uma situação adversa de círculo cadente dos preços de commodities.

Diante desse conjunto de desafios econômicos e de política social, não vejo, na tal da equipe econômica ortodoxa, qual é o enredo que poderá tirar o país dessa situação. O único enredo que eles parecem entender é o de paralisar o sistema, cortar toda a porção distributiva da política social para cortar consumo e com isso reduzir algumas tensões do comércio externo. Mas outras tensões vão continuar, porque pode se reduzir a tensão fiscal, mas não há perspectiva de crescimento claro daqui para frente, como de fato antes não tinha também. Mas a ideia anterior era confiar no programa de concessões, na superexploração petroleira, na economia do agronegócio como portas de saída para o crescimento. Ou seja, no fundo, um setor primário melhorado que seria a porta de entrada para o crescimento. Isso tudo agora está muito mitigado, porque só o programa de concessões está na mão daquela meia dúzia de concessionárias do serviço público, que está no prontuário da República. Então, os investimentos por esses concessionários também estão um pouco postergados. Os investimentos externos vão depender da melhoria da conta corrente; não se garante adimplência internacional com o grau de desequilíbrio que se tem hoje. Portanto, vamos ter no mínimo dois anos de crescimento muito baixo, de uma ortodoxia muito grande e provavelmente com recuos no sistema de garantia de direitos sociais.

“A política industrial, que não foi feita no primeiro governo, ainda não se sabe como será feita, porque não se faz política industrial simplesmente com declarações de intenção”

IHU On-Line - Como avalia a nomeação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda? Como explica a repercussão que a escolha teve entre os petistas? Isso contradiz o discurso de Dilma nas eleições?

Guilherme Delgado – Levy foi secretário do Tesouro do governo Lula, do qual o secretário de políticas econômicas era o Lisboa, que é outro economista de Chicago, e o ministro da época era o Palocci, que é igualzinho a esses dois. Nesse sentido, o que vemos é uma continuidade da influência do ex-presidente Lula na montagem dessas equipes em situações de emparedamento. Se lembrarmos de quando o Palocci assumiu o governo em 2003 e Armínio Fraga era presidente do Banco Central, havia um ambiente de chantagem econômica, tentando-se, através de certo terror financeiro, apresentar o governo como inviável, que queria quebrar contratos, etc. A alternativa foi colocar um banqueiro no Banco Central e uma equipe econômica que faria todos os procedimentos e todos os ajustamentos liberais para convencer o mercado de que não haveria perigo. Esse enredo é o que está sendo repetido agora. Naquela época, não sei se você lembra, o dólar chegou a 4 reais. Então, emparedado, o governo faz esse tipo de recuo, mas não significa que esse recuo seja algo que vá contra a índole do sistema de governo. A ideia é que num segundo momento, ao aliviar um pouco mais as tensões externas e internas, se consiga recalibrar a política e gerar um compromisso do estilo de governo que Lula gerou, com um pouco de crescimento, com certa distribuição de política social, o que agora não está sendo possível.

O novo enredo é de cortar gastos sociais também. O tamanho do gasto social na virada que significou a incorporação da população economicamente ativa nas políticas sociais cresceu muito. Então, para manter esse patamar, teria que realizar uma reforma tributária de caráter progressivo. Como isso é um “pecado mortal” para esse tipo de arranjo, isso não vai ser feito, portanto, a resultante é fazer políticas neoliberais, cortar gastos sociais e reduzir um compromisso mínimo e eficaz que teve no segundo governo Lula, principalmente, com a melhoria na distribuição da renda do trabalho, que realmente melhorou. Mas melhorou com o crescimento e com uma situação externa extremamente favorável, porque 2004 a 2008 foi um período de extremo avanço do comércio externo brasileiro com a especialização em commodities, mas também com crescimento de setores industriais, mesmo que em um ritmo menor. Mas atualmente não é esse o arranjo. O governo está repetindo o mesmo padrão de ajustamento constrangido em uma situação macroeconômica externa completamente diferente, com uma virada cíclica negativa de comércio externo e do preço externo de commodities, em uma situação de estagnação forte da indústria e também de certo desequilíbrio fiscal. Isso porque quando a economia cai, tem-se uma baixa capacidade arrecadatória e nesse momento se está “antenando” com um ajuste constrangido para baixo e, portanto, vejo com muita preocupação esse tipo de coisa.

Novo ministro da Fazenda

Joaquim Levy é um tecnocrata, não é um banqueiro; é um funcionário dos banqueiros. Então, conhecendo um pouco o perfil da presidente, parece que ela vai mandar nele até o limite, até ele não aguentar mais, aí ela o despede e coloca o Barbosa no lugar dele. Mas isso vai ter de ser feito em um prazo longo, porque se esse enredo é percebido, vai resultar em uma campanha midiática muito forte de volta ao impeachment, etc.

Temos que ler essas coisas no campo da economia política; isso não é política econômica pura. Temos que prestar atenção em quem será eleito dentro da Câmara. Se o presidente da Câmara fosse o deputado do Rio, que é ostensivamente ligado ao Aécio e ao núcleo do PSDB, ele seria aquele fiel da balança que vai dizer que está na hora de fazer mais concessões, ou menos concessões. Do contrário, ele poderia receber o pedido de impeachment, porque o pedido é recebido pelo presidente da Câmara, que dá tramitação ao processo. Se o presidente não recebe, o pedido não tramita. Portanto, o cenário é esse, um cenário muito ruim em que o governo se meteu, por razões diversas, um quadro de muitas dependências: dependência política, dependência externa, dependência do agronegócio, dependência das concessionárias, e todas as concessionárias estão ligadas a caixa dois, etc.

“Vamos ter no mínimo dois anos de crescimento muito baixo, de uma ortodoxia muito grande e provavelmente com recuos no sistema de garantia de direitos sociais”

IHU On-Line - Diante dos riscos de cortes de políticas sociais, alguns economistas publicaram, logo após as eleições, o Manifesto dos Economistas pelo Desenvolvimento e pela Inclusão Social. O senhor assinou o Manifesto dos economistas?

Guilherme Delgado – Assinei porque concordo com as propostas, só que aquilo não vai vigorar. Os manifestos de princípios, como essa carta do Grupo de Emaús, são muito bonitos, mas não estão conectados com a leitura da realidade. A leitura da realidade do governo e do seu pacto de poder é muito conservadora, e mesmo a proposta limitada de distribuição feita pelo governo Lula está sob o crivo da negação. Agora, como se reverte isso? Para reverter isso é preciso ter muita capacidade política de se comunicar, tem que ter partido político.

Qual é o partido político que sai em defesa dos direitos sociais e mostra à população que isso está sob ameaça? Não é o PT, porque o PT está muito constrangido, nem é o PDT, que nesse processo todo está muito mais catando cargos, nem o PSDB e muito menos o PMDB. Então, a rede partidária já não tem mais compromisso com a estrutura constitucional de institucionalização dos direitos sociais no campo da previdência, da saúde, da assistência, do seguro desemprego, da educação básica. Tudo isso que foi tão cantado em prosa e verso na campanha eleitoral. Só que tudo isso requer uma sustentação fiscal e, nessa hora, os donos do dinheiro, que é o mercado financeiro, estão puxando o tapete para o seu lado e encontram, de um lado, uma mídia totalmente aderente e, do outro, silêncio.

Quem vai defender os direitos sociais? O PSOL? O PSOL tem meia dúzia de deputados e não consegue ter capacidade de comunicação. O próprio governo está constrangido nesse processo, não sei se docemente constrangido ou asperamente constrangido, aí é uma questão de subjetividade, mas que não vai avançar, não vai.

IHU On-Line - Como avalia a polêmica aprovação no Congresso do PL 36/14, que muda a Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO de 2014 para alterar o cálculo do superávit primário? Essa medida poderá ter implicações futuras?

Guilherme Delgado – O que sei é que Dilma enviou ao Congresso uma MP para legalizar de fato o descumprimento da meta do superávit primário de 2014, mas isso é para 2014 e não é para frente. A meta de 2015 e 2016 — que Joaquim Levy anunciou como sendo fruto do novo arranjo — é fazer superávit primário de 1.2 em 2015 e de 2.0 em 2016, e isso com a contabilidade completamente transparente. O que o Congresso aprovou foi a permissão para que em 2014 se considerassem várias despesas do PAC e outras tantas que superaram o limite do superávit primário previsto, para essa situação se legalizar. Trata-se, portanto, da legalização de uma situação que já aconteceu, para não ficar mais fazendo a tal “contabilidade criativa” para esconder o fato.

O sistema está dizendo para o governo Dilma que se o Estado não pagar as contas na forma líquida de dinheiro, mais 1,5-2,5% do PIB, o sistema não viabiliza o governo. E o governo Dilma vinha embromando nesse campo por conta dos compromissos de financiar várias coisas. E quando se tem uma situação fiscal complicada, ou seja, por ter um programa social amplo como tem no Brasil, e se vai desonerando as folhas de pagamento, alguém tem que pagar a conta.

Então, o governo Dilma e o ministro Levy estão comprometidos com o retorno da meta de superávit primário e com o abandono da equipe da secretaria do Tesouro que fazia uma série de manobras para, na prática, não cumprir meta nenhuma de superávit primário. Agora, isso significa que, no jogo distributivo, quem está garantindo propriamente a sua posição é o sistema financeiro; o resto vai se ajustar, porque a economia vai estagnar e não haverá aumento de arrecadação. Quer dizer, com esse “cobertor curto”, se cubro um indivíduo até a cabeça, o outro indivíduo, que está com os pés maiores, fica sem cobertor. Ou seja, os recursos da política social no campo da previdência e no campo do seguro desemprego já estão anunciados como recursos que vão ser reformulados em 2015. Não precisa ser muito esperto para entender que no jogo distributivo cai política social, entra superávit primário sob regime de baixo crescimento. Aí a melhoria da economia vai depender do chamado “espírito animal” dos empreendedores privados, do investimento externo, da capacidade do Estado de bancar todas as concessões com muitas facilidades para que investimentos retornem à agenda e o país volte a crescer.

“Qual é o partido político que sai em defesa dos direitos sociais e mostra à população que isso está sob ameaça?”

IHU On-Line - Como o senhor avalia a carta do Grupo de Emaús à presidente Dilma, especificamente no tópico em que sugerem “reforçar um modelo econômico mais social e popular”, mas sem mencionar, por exemplo, a estagnação da economia brasileira?

Guilherme Delgado – Essa carta do Grupo de Emaús foi escrita por pessoas muito íntegras, honestas, mas estão fazendo um tipo de teologia que chamaria de fundamentalismo do bem. Isto é, a partir de um conjunto de princípios teológicos, filosóficos, totalmente defensáveis, mas descontextualizado da leitura histórica concreta, se propõe desejos e não realiza a mediação dos desejos com a história. Isto significa que os princípios ficam totalmente de acordo, mas não estão conectados, quando estão dirigidos à presidente Dilma, com os desafios concretos; ou seja, política social, distribuição de renda, reforma tributária, reforma agrária, reforma política, não estão na agenda desse governo.

Esse governo está completamente na mão do grupo que perdeu a eleição, e por um processo, em parte, de chantagem, mas, em parte, de incapacidade de comunicação desse grupo ganhador da eleição com a população que deu o voto. É aquela história: ganhamos o voto, mas perdemos o poder e vamos nos conformar a essa situação porque não tem saída. Se já em 2003 o Lula, que tinha capacidade de comunicação em massa e que poderia sair do jogo da chantagem, preferiu entrar nele, imagina agora com a Dilma, que não tem carisma nem tem capacidade de comunicação, e seu partido menos ainda.

Nesse sentido, a carta do Grupo de Emaús é uma carta dirigida ao espaço vazio. Não seria, se fosse dirigida à população e se fosse comunicada com caráter de denúncia — denúncia do golpe e denúncia da chantagem. Mas a carta fica só no plano dos princípios, achando que há uma diferença abissal entre o programa concreto histórico que a Dilma vai executar e o programa que foi derrotado. Não, o programa derrotado é o que vai ser executado agora e isso precisa ser denunciado.

IHU On-Line - Outro ponto que chama atenção na Carta do Grupo de Emaús é que se menciona a preocupação com a situação dos povos indígenas, mas apenas mencionam “megaprojetos”, sem fazer referência às hidrelétricas especificamente, e no tópico sobre reavaliar megaprojetos à luz de critérios ecológico-ambientais e sociais, também não se menciona diretamente as hidrelétricas. Isso apenas fica subentendido. Como o senhor vê esse tipo de carta e apoio à presidente, considerando que Gilberto Carvalho, Secretário da Presidência, declarou após as eleições que Belo Monte e Tapajós irão sair de qualquer jeito. A carta não quer fazer a crítica ao governo Dilma nesse aspecto?

Guilherme Delgado – Não quer fazer a crítica, exatamente. É aquela história de ficar anotando os princípios abstratos gerais, fugindo do histórico concreto. Mas, concretamente, o governo Dilma, o governo Lula e o governo FHC são exatamente iguais no tratamento que dão à economia do agronegócio e ao setor mineral. A única diferença é em relação ao setor petroleiro, no qual o governo Lula fez uma mudança na regra de distribuição da renda fundiária do petróleo, que é a diferença entre o preço de produção e o preço de mercado.

O governo Fernando Henrique tinha um regime liberal das concessões, o governo Lula mudou a regra e está pagando o preço também, porque essa campanha de corrupção da Petrobras, que tem fatos por trás, é também uma campanha para desestabilizar a regra vigente da partilha. Agora, do ponto de vista fundiário agrário e fundiário mineral e fundiário do ponto de vista das quedas d’águas, o programa de Lula e Dilma não tem nada a ver com aquela defesa da natureza, defesa dos povos indígenas, defesa das comunidades; é um programa de defesa da economia do agronegócio e da sua vertente mais atrasada, que é acumulação pela superexploração de recursos naturais. Isso precisa ser dito, porque senão parece que estamos em outro mundo. Esse programa do governo Lula e Dilma foi exportado para a África e para a América Latina como uma espécie de benesse brasileira, criando uma questão agrária nesses locais, criando uma situação de violência contra as comunidades campesinas de Moçambique, Angola, Bolívia, etc., praticada pelo agronegócio brasileiro.

Então, se a carta de Emaús quer ser uma teologia histórica concreta, tem que fazer a leitura da realidade e não ficar na abstração genérica, porque na abstração genérica estamos fazendo fundamentalismo e fugindo das questões e da história, que não é da vertente da teologia da libertação.

“Política keynesiana, nesse contexto de hegemonia do sistema financeiro, é impossível”

IHU On-Line - O senhor compara o governo do PT com as propostas do PSDB em alguns aspectos, mas fala em falta de comunicação no PT, afirmando que este é, em parte, refém da situação. Diante desse quadro, o PT deixou de ser de esquerda ao longo desses 12 anos?

Guilherme Delgado – Você tem no PT pessoas e setores de esquerda comprometidos com a distribuição e com as causas populares. Mas, com o pacto de manter-se no poder de forma continuada, o arranjo tanto de economia política como de economia política eleitoral é muito atrasado. Você pode até me perguntar se há outros. Eu vou responder que não tem outro dentro do quadro atual, e por isso nós precisamos partir para a denúncia dessa situação. Se você entra no poder e não se compõe com PMDB, PP e todos esses “P”, você não governa, e para você governar tem que distribuir os lotes burocráticos para essa turma. Mas essa turma tem uma leitura puramente patrimonial da distribuição, então quando surge a corrupção dizem que é golpismo. É também golpismo, mas existe a corrupção porque ela está ligada a essa forma de administração da política.

Por isso, a vertente da reforma política é necessária. Mas como nos comunicamos para fazer reforma política? Como você parte para um programa de mobilização pública e denúncia desse estado de coisas e não fica apenas na defensiva? O que sinto é que o PT está na defensiva; ganhou a eleição, mas está na defensiva porque não consegue sair das armadilhas lançadas pelo campo derrotado, armadilhas essas que estão envolvidas nessa forma de organização do chamado presidencialismo de coalizão.

Evidentemente é fácil analisar, não é fácil sair disso, até porque os canais de comunicação estão muito bloqueados, se tem uma mídia que é partido político, uma mídia que não quer se renovar, não aceita processos de democratização, se tem um sistema econômico muito atrelado à forma de propriedade fundiária, e o gosto da população é “carneirinho” nessa história, nem consegue entender o que está se passando e reproduz os argumentos da praça, do dia, da hora. Faltam-nos alguns protagonismos, alguns profetismos, e faltam principalmente partidos políticos com 5-10% do Congresso que pudessem colocar essas questões de forma independente e poder se comunicar com a população.

As soluções conservadoras não resolvem nem dão horizonte para resolver a crise política, nem a crise econômica, nem a crise de Estado, e o projeto oficial é refém. Não é um bom momento para fazer análise de conjuntura, infelizmente. Estou dizendo o que estou sentindo, mas não estou confortável com esse tipo de constatação.

IHU On-Line – Será possível aplicar uma política Keynesiana no governo Dilma? Em que ela consistiria?

Guilherme Delgado - Uma política keynesiana tem alguns pressupostos, ou seja, tem que ter um sistema financeiro que minimamente aceite uma remuneração baixa nos seus ativos. Traduzindo em miúdos: uma política keynesiana tem que, em um momento de crise, fazer dívida pública e essa dívida pública se faz com baixa remuneração. Então, se gasta mais do que se arrecada, e esse gasto extra se faz com base em lançamento de títulos da dívida pública, que são comprados pelos poupadores financeiros; e porque não há outra remuneração melhor, aceita a remuneração mais baixa. O que acontece é que o sistema financeiro não aceita remuneração baixa, ele quer a remuneração mais alta do mundo pelos títulos, para não inviabilizar a forma de governar.

Então, política keynesiana, neste contexto de hegemonia do sistema financeiro, é impossível, a menos que se tivesse outro pacto do poder, que colocasse esse sistema sob jurisdição do conjunto, mas não se conseguiu fazer isso. Diria que, no primeiro governo Dilma, ela tentou fazer isso, mas não conseguiu.

Com o atual patamar de juros da dívida pública, fazer dívida pública nova significa se comprometer cada vez mais com o pagamento do serviço financeiro; isso não é política keynesiana; é política tipicamente financeira. Então, para fazer política keynesiana é preciso ter um interesse geral, que por razões políticas estratégicas se impõe ao sistema financeiro.

O sistema financeiro, por não ter outra saída, aceita esse padrão. Por exemplo, se faz política keynesiana nos Estados Unidos, onde se pratica taxa de juros de 0,5%, com a inflação de 4-5%, e o juro real é negativo. O Estado tem capacidade de subordinar, até certo ponto, o sistema financeiro, porque essa política keynesiana está sendo feita para salvar o sistema. Mas no Brasil não se consegue porque o sistema financeiro está com completa segurança e liquidez e domínio da máquina privada e da máquina pública, da formação ideológica, etc.

“O que está desenhado não é nem um pouco a manutenção de algumas conquistas anteriores”

O formato de política keynesiana que o governo Dilma procurou fazer, que era criar dívida pública bruta, transferir recursos para o BNDES — nos últimos quatro anos transferiu quase 400 bilhões — e o banco fazer os empréstimos para todo o sistema de concessionárias, todo o sistema de agronegócio, todo o sistema de empreendimentos na hidroeletricidade, todo o sistema de petróleo, que são os setores eleitos para crescer. Mas aí chegou num certo ponto que esse conúbio de interesses não mais se tornou viável, porque não se aceita mais a emissão de dívida pública nova. É essa a clivagem da situação: se tem um baixo crescimento porque o investimento público financiado por dívida pública se tornou inviável e o investimento privado recuou em face de uma série de deteriorações de condições externas, porque a economia, também nesse momento, foi fortemente desindustrializada e totalmente especializada no comércio de commodities. Então, esse arranjo morreu com o final do governo Dilma, e o arranjo novo não me parece muito claro para onde vai. Mas o que está desenhado não é nem um pouco a manutenção de algumas conquistas anteriores.

Por Patricia Fachin

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