Monstro e multidão: a estética das manifestações. Entrevista especial com Barbara Szaniecki

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15 Julho 2013

“As análises mais acertadas nesse primeiro momento foram as dos próprios manifestantes em seus movimentos coletivos e singulares. Apesar da diversidade das demandas, eles visivelmente se reconheceram e se encontraram na crítica aos atuais governantes da nação e gestores das cidades”, diz a pesquisadora.

Foto de noticias.br.msn.com

Confira a entrevista.

“Se existe algum discurso coletivo por todo o Brasil, trata-se menos de demanda por uma reforma política genérica e mais por uma escuta contínua sobre questões concretas e, em particular, aquelas que dizem respeito à gestão das cidades”, avalia Barbara Szaniecki em entrevista à IHU On-Line por e-mail, ao analisar as manifestações que tomaram as ruas das cidades brasileiras.

Apesar de as reivindicações girarem em torno de temáticas centrais como moradia, trabalho, mobilidade e lazer, Barbara assinala que é impossível extrair um “discurso coletivo” e um “consenso” no momento. Do mesmo modo, as respostas oferecidas pela presidência da República tratam de “uma consulta pontual e cuja forma determina assuntos por demais abstratos”. E acrescenta: “Se ‘discurso coletivo’ houver, este será o de uma demanda por diálogo permanente com nossos representantes e instituições políticas, ou seja, a extensão no tempo e no espaço de uma ‘multiplicidade de discursos’”.

Barbara Szaniecki também avalia as manifestações a partir de uma análise estética, pela qual é possível “observar e analisar os posicionamentos e os movimentos dos corpos de cidadãos que saem de sua rotina produtiva e aderem à manifestação política que atravessa o espaço urbano e, nesse atravessamento, criam nos espaços públicos usos mais compartilhados, percursos menos disciplinados, deslocamentos de sentidos etc.”. Segundo ela, pela estética também é possível “ouvir e analisar as emissões e composições das vozes dos cidadãos que, nessa expressão, criam dispositivos expressivos mais dialógicos, discursos mais polifônicos e, mais uma vez, deslocamentos de sentidos”.

Barbara Szaniecki é graduada em Comunicação Visual pela École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs, mestre e doutora em Design pela Pontifícia Universidade Católica. Atualmente é coeditora das revistas Lugar Comum, Global/Brasil e Multitudes. No momento, desenvolve pesquisa de pós-doutorado intitulada “Tecnologias digitais e autenticidade: o estatuto da imagem fotográfica na linguagem visual contemporânea” na Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ. É autora do livro Estética da Multidão.

Confira a entrevista.

Foto de www.ebc.com.br

IHU On-Line – Como avalia as manifestações que ocorreram nas últimas semanas em várias cidades brasileiras? O que é possível extrair do discurso coletivo?

Barbara Szaniecki – Foram 15 dias incandescentes, literalmente. Uma incandescência que animou boa parte da população e assustou boa parte de nossos governantes. Assustou porque, embora iniciada com uma demanda muito específica – a queda do preço da passagem de ônibus, os famosos 20 centavos –, as demandas rapidamente se multiplicaram. Aqui, a multiplicação das demandas indica, sobretudo, a multiplicidade de atores sociais. E foi essa multiplicidade o que se ignorou nas primeiras análises dos observadores da mídia, dos partidos, das ONGs e da academia, entre outros. Talvez as análises mais acertadas nesse primeiro momento foram as dos próprios manifestantes em seus movimentos coletivos e singulares. Apesar da diversidade das demandas, eles visivelmente se reconheceram e se encontraram na crítica aos atuais governantes da nação e gestores das cidades. Contudo, essa crítica comum tem aspectos diferentes dentro do espectro político tradicional e suscita, por sua vez, receios diferentes. Digamos, muito resumidamente, que à direita impera o medo da revolução esquerdista enquanto à esquerda impera o medo do golpe direitista. Com base em categorias e métodos sociológicos e políticos abstratos ou arcaicos demais, o risco de erro de interpretação é grande. Faz-se necessário então ir a campo com a mente aberta e o corpo alerta.

A análise estética faz sentido aqui porque a estética é política. Jacques Rancière pode ser uma boa referência. Pela estética, podemos observar e analisar os posicionamentos e os movimentos dos corpos de cidadãos que saem de sua rotina produtiva e aderem à manifestação política que atravessa o espaço urbano e, nesse atravessamento, criam nos espaços públicos usos mais compartilhados, percursos menos disciplinados, deslocamentos de sentidos etc. Pela estética também podemos ouvir e analisar as emissões e composições das vozes dos cidadãos que, nessa expressão, criam dispositivos expressivos mais dialógicos, discursos mais polifônicos e, mais uma vez, deslocamentos de sentidos. Para essas questões Mikhail Bakhtin permanece uma importante referência teórica. Em todo caso, é preciso entender estética como algo além do olho, do olhar, da imagem e do campo do visível.

Estética

A estética parte do olhar, mas não se restringe ao campo do visível e ainda menos à produção de imagem. Quando falamos em estética, a introdução do corpo e da voz é fundamental. Por exemplo, circularam nas redes duas imagens bem interessantes: uma fotografia de um manifestante rebolando com bambolê na manifestação em frente ao Maracanã no último dia da Copa das Confederações e uma fotografia de uma manifestante beijando um soldado durante a manifestação da quinta 27 de junho no Rio de Janeiro.

Na primeira, impressiona a soltura do corpo bamboleante do manifestante em franco contraste com a rigidez dos corpos disciplinados dos PM alinhados logo atrás. A disposição dos corpos em cena tem muito a dizer sobre o que estava acontecendo em termos estético-políticos naquele espaço-tempo.

Na segunda fotografia, nos faz sorrir a ternura com que o soldado programado para reprimir acaba por ceder ao beijo não programado da manifestante. Há também muito o que aprender ao comparar os corpos daqueles que foram chamados de “vândalos” com os dos policiais: das roupas, aos gestos e aos movimentos, está presente ali uma multiplicidade de discursos que são estéticos sem deixar em momento algum de ser políticos.

Todos esses registros são interessantes em si, na sua superfície imagética. Em termos de composição e uso (ou não) da cor, algumas fotografias são belíssimas, mas não é exatamente isso que nos interessa aqui. É preciso “entrar na imagem” (fotografia ou vídeo) e sentir os corpos. É preciso também “entrar no som” e ouvir as vozes que polifonicamente disputam o ruído uníssono do carro de som. Ou seja, é preciso estar presente nas manifestações para sentir e ouvir, e muito eventualmente entender o que está em jogo, sobretudo as demandas não ditas, mal-ditas e malditas.

O que é possível extrair do discurso coletivo? Eu diria que não há no momento um “discurso coletivo” e, portanto, há uma total impossibilidade de se extrair de todos esses corpos e vozes, consenso algum. A resposta dos poderes constituídos foi a da reforma política. Plebiscito ou referendo, pouco importa, pois em ambos os casos se trata de uma consulta pontual e cuja forma determina assuntos por demais abstratos. Se “discurso coletivo” houver, este será o de uma demanda por diálogo permanente com nossos representantes e instituições políticas, ou seja, a extensão no tempo e no espaço de uma “multiplicidade de discursos”! O que fazer?

Representantes políticos perguntam aflitos se existe uma metodologia para apreender o discurso coletivo (eventualmente para capturá-lo mercadológica ou eleitoralmente) ou uma teoria adequada para analisá-lo. Enquanto isso, consultores, especialistas e todo tipo de novos representantes tentam vender alguma solução mágica. Um caminho a meu ver pode ser o da observação das articulações entre as redes e as ruas, e sua contínua expansão. Sábado passado, por exemplo, os hastags mobilizadores da passeata pela permanência do Horto entre outras comunidades do Rio ameaçadas de remoção, pela democratização da mídia e pela pacficação da polícia eram: #RioSemRemoções #FicaHorto #VivaaVilaAutódromo.

Mas voltando o olhar aos registros (fotografias e vídeos) dos cartazes e das performances realizadas ao longo da manifestação daquele dia, seria possível não apenas criar uma infinidade de outros hashtags (#Sejamídia #RedeGloboDeCorrupção #ViolênciaéUPP #FavelaéCidade #FavelaTemHistória) como, sobretudo, concluir que os discursos não apenas são múltiplos como eles estão, eles também, em movimento! O que os torna inapreensíveis nesse momento é revelador da potência do movimento. Em termos de teoria, alguns conceitos de Antonio Negri têm se mostrado pertinentes e até proféticos.

IHU On-Line – Pode nos explicar em que sentido aborda a metáfora do monstro e como ela pode ser aplicada à sociedade brasileira e, mais recentemente, às manifestações que aconteceram nos últimos dias?

Barbara Szaniecki – A metáfora do monstro parece se adequar aos acontecimentos dos últimos dias no Brasil. Quando digo “parece”, manifesto minha cautela, mas também a necessidade contínua de testar nossas ferramentas teóricas. Multidão e monstro são duas ferramentas importantes para tentar dar conta das transformações no Brasil nos últimos anos e das manifestações dos últimos dias. Nos últimos anos, ouvimos falar de classe C pra cá, classe C pra lá. De repente, estouram as manifestações e começamos a ouvir multidão pra cá, multidão pra lá. O mesmo acontece com o termo monstro. A difusão dos termos talvez indique sua pertinência com relação aos fatos, mas ao mesmo tempo traz a possibilidade do esvaziamento ou banalização do significado.

Comecemos com o termo multidão: este foi durante muito tempo, séculos talvez, associado a grupos não controláveis. Multidão estava mais para “turba” do que para “povo” (corpo social criado pelo Estado e que se manifesta, por sua vez, no cotidiano como “cultura popular” e nas eleições com o “voto popular”) ou para “massas” (grupos sociais determinados pelo mercado e que se manifesta, por sua vez, nas formas do espetáculo e nos estilos de vida próprios do consumo). Em 2005 é lançado Multidão [1] no Brasil, mas já em 2003 em sua vinda ao país, em várias palestras, Antonio Negri apresentou o conceito de multidão por pelo menos três perspectivas distintas, mas complementares e que proponho reapresentar rapidamente.

Pelo viés sociológico, Negri analisava a transformação de sociedades com economias baseadas no trabalho organizado disciplinarmente na fábrica fordista a sociedades com economias baseadas em produções em redes sociais e tecnológicas difusas nas metrópoles e, nessas associações mais cooperativas do que em relações subordinadas, ele apreendia novos caminhos para a emancipação e autonomia dos trabalhadores. Analisava também a própria forma do trabalho sempre mais predominantemente imaterial. Dessa percepção, decorria o segundo viés, que é político: novas formas produtivas demandam novas formas políticas.

Se o trabalho na fábrica gerou o sindicato (que, por sua vez, provocou o nascimento de partidos ligados às causas dos trabalhadores), as novas associações produtivas nas metrópoles demandam novas organizações políticas. Essas, de fato, não chegaram a se concretizar. Talvez seja esse descompasso entre as atuais potentes formas de produção (novas formas de se relacionar, de colaborar, de cocriar, em suma de produzir) por um lado e, por outro, as velhas formas de política o que gera aquilo que se chama “crise da representação”.

Em terceiro lugar, o viés ontológico leva à pergunta “o que é a multidão?” Uma questão delicada visto que, à diferença das classes sociais – velhas ou novas classes médias no nosso caso – se definem por dados e estatísticas a priori, a multidão se constitui e se define nas lutas, nos processos.

Biopolítica

Podemos retomar essa questão mais adiante aprofundando a questão da biopolítica. Mas já temos aqui alguns elementos suficientes para abordar as transformações recentes no Brasil como constituição da multidão. Pelo primeiro viés, entendemos que a abordagem sociológica e economicista em termos de classe C seja importante, no sentido que houve efetivamente uma grande transformação da sociedade brasileira nos últimos anos com os governos Lula por meio do aumento do salário mínimo e da distribuição de renda por meio de programas específicos e, portanto, do aumento do acesso ao crédito e ao consumo.

Mas essas conquistas não se limitaram aos planos de inclusão e homologação preparados pelos economistas neoliberais e tematizados pelos marqueteiros eleitorais. Elas foram o terreno de produção de uma subjetividade que, hoje, expressa outros desejos: desejos de se formar e se informar, de se expressar, de comunicar e de circular, em suma, de exercer sua cidadania.

A estagnação no campo da comunicação e o retrocesso no campo da cultura desde a chegada de Dilma ao poder são alguns dos sintomas da negligência por parte de governantes, que se acomodaram com resultados de eleição e pesquisas de opinião, e de arrogância por parte daqueles que não se preocuparam em promover o diálogo com a população.

No Brasil, a multidão se fez: uma multidão em grande parte constituída pela juventude oriunda das classes populares, das periferias e das favelas, mas não apenas. Apesar das imensas dificuldades encontradas em nossas metrópoles em termos de moradia, de transporte, de lazer e de tudo, a multidão é superprodutiva, hiperinformada, ultraconectada e cheia de opinião. Quem imaginava que fosse possível separar a produção da política se enganou. Quem imaginava controlar essa potência em termos de mercado consumidor ou de curral eleitoral se enganou.

Multidão x monstro

E aqui chegamos, enfim, ao monstro! O que distingue multidão de monstro é difícil dizer, pois talvez não exista uma diferença tão marcada. Intuitivamente, eu utilizaria “multidão” para apreender os sujeitos que promoveram e foram promovidos junto com as transformações no Brasil dos últimos anos e utilizaria “monstro” para abordar as subjetividades atuantes nas manifestações dos últimos dias. Avancemos com um texto fundamental no qual Negri analisa o processo constituinte do monstro em dois momentos, sendo que esses dois momentos não são necessariamente subsequentes.

Em um primeiro momento, é possível associar monstro a um “corpo sem órgãos” tal como o definiam Gilles Deleuze e Félix Guattari: o monstro é corpo sem órgãos, pois não tem estrutura definida e não tem funções orgânicas determinadas. É apenas uma intensidade, mas não necessariamente uma intenção. O monstro é a carne da multidão. Não quer dizer que ele seja um estágio anterior à multidão (uma pré-multidão) que, por sua vez, seria um estágio anterior à formação das classes sociais ou formatação dos corpos institucionais.

O monstro não é um estágio pré ou pós qualquer coisa, o monstro está sempre aí: são as possibilidades que resistem e insistem por trás, ao lado, por baixo, por dentro e para fora daquilo que chamamos de realidade. Em um segundo momento, é possível associar monstro ao General Intellect tal como o concebeu Marx. General Intellect é a inteligência produtiva e politizada de que falei antes que, entre outras coisas, põe em xeque as figuras do “grande intelectual” e do “grande artista”, pondo em evidência que suas obras são fruto de processos mais coletivos que, contudo, não eliminam as singularidades presentes.

A constituição do General Intellect no Brasil pode ser relacionada às políticas, ao longo dos governos Lula, na educação superior (Reuni, ProUni e Cotas, investimentos em graduação, pós-graduação e extensão nas universidades federais e nos órgãos de fomento assim como movimentos de pré-vestibulares e formações alternativas que se beneficiaram dessas políticas indiretamente) e na área cultural (em particular no Programa Cultura Viva – com seus Pontos de Cultura, Ação Griô e Cultura Digital – iniciado na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura e que teve na figura de Célio Turino um idealizador visionário).

O monstro é sublime. Nem belo nem feio, nem bom nem mau, nem verdadeiro nem falso, ele desconfigura nossas certezas estéticas e políticas e, nesse movimento, promove simultaneamente angústia e alegria. Contagia. O termo “monstro” foi utilizado na mídia nos últimos dias, equivocadamente, para ressuscitar à esquerda e à direita as paranoias de um golpe totalitário.

O monstro é a face mais politizada da multidão superprodutiva, hiperinformada, ultraconectada e cheia de opinião de que falei acima. A meu ver, o “monstro” não tem nada de autoritário, muito pelo contrário, ele é um terreno de experimentação e de inovação – estético e político – fundamentalmente democrático. O “monstro” é a verdadeira democracia: aquela na qual formas, conteúdos, princípios e processos são indissociáveis. Por que ter medo?

IHU On-Line – Em que medida aponta tais manifestações como uma des-hierarquização do espaço urbano? Quais as consequências disso?

Barbara Szaniecki – Essa é mesmo uma pergunta das mais instigantes. Pois como escrevi acima, se existe algum discurso coletivo por todo o Brasil, trata-se menos de demanda por uma reforma política genérica e mais por uma escuta contínua sobre questões concretas e, em particular, aquelas que dizem respeito à gestão das cidades. Não por acaso o estopim foi a questão do transporte público.

A mobilidade é um tema central no urbanismo moderno, junto com a moradia, o trabalho e o lazer. E ela se torna ainda mais central na contemporaneidade. Por quê? Porque se na era moderna a mobilidade era definida por trajetos relativamente determinados como o de casa ao trabalho e do trabalho a casa, tendo a variável de lazer nos momentos de repouso semanal, na contemporaneidade, a esse tipo de mobilidade, são acrescentadas inúmeras outras.

Por serem formas que misturam geração de renda, formação profissional continuada, produção e circulação de informação, acesso ao consumo e desejos de sociabilidade, e tudo isso junto e misturado, tanto as formas de emprego flexível – que demandam uma atualização constante da dita “empregabilidade” – quanto as formas de produção autônoma exigem mais e mais mobilidade.

Jamais se circulou tanto pelas cidades, por necessidade sim, mas também por desejo de outras experiências urbanas e relações humanas. Um dos reflexos dessa intensa circulação é o nó no trânsito por conta do transporte coletivo de má qualidade e o consequente recurso ao carro individual. E a tendência é piorar caso a demanda seja atendida apenas em termos de redução da passagem em vez de melhorias quantitativas e qualitativas no sistema como um todo. Se o caos no trânsito me deixa relativamente pessimistas porque envolve decisões imediatas não apenas técnicas como também políticas, a percepção do desejo de circulação urbana, casado com o de mobilidade social, que é visível entre os trabalhadores cognitivos e culturais – e particularmente entre os jovens –, me deixa otimista quanto à possibilidade de des-hierarquização do espaço urbano nesse momento monstruoso.

Minha reflexão assume aqui o caso específico do Rio de Janeiro. Porque diferentemente das outras cidades brasileiras, o Rio não acolhe apenas um megaevento (a Copa) e sim uma série deles com impactos consideráveis. E porque, por sua configuração muito especial – tradicionalmente conhecida pela distinção nas zonas centrais entre “favela” e “bairro”, “morro” e “asfalto” ou “assentamento informal” e “cidade formal” entre outras denominações, além das periferias –, o Rio se tornou uma espécie de laboratório de políticas públicas. Nos últimos anos, acostumamo-nos a ouvir o discurso das UPPs.

Megaeventos

Em tempos de megaeventos (Rio+20 em 2012, Copa das Confederações e Jornada Mundial da Juventude em 2013, Copa do Mundo em 2014 e Jogos Olímpicos em 2016), as UPPs instaladas nas favelas cariocas seriam a garantia da segurança dos eventos e da circulação dos cidadãos na cidade. É o modus operandis do poder: ênfase no medo e implementação de uma forma de controle do governo sobre a sociedade com um novo discurso.

O caso do Rio de Janeiro é novo, mas o tema é velho: Foucault tem ampla literatura a respeito. Em paralelo à implementação das UPPs, deu-se um forte movimento de especulação imobiliária que afetou todos os cariocas (de modo desigual como sempre, mas afetou todos) no que diz respeito à moradia. Os moradores de favelas, quando não são removidos à força, são removidos pelo aumento dos custos dos serviços num fenômeno conhecido como “remoção branca”. Os moradores dos bairros também têm sofrido com preços abusivos de aluguéis, mas o processo não é certamente comparável em termos de violência.

O Rio de Janeiro virou uma cidade globalmente cara para se morar. Em maior ou menor grau, estamos sendo removidos em prol do sucesso de um modelo urbano inadequado à configuração social e cultura carioca no que ela já tem de extremamente hierarquizada e que o modelo imposto pelos atuais poderes públicos só faz hierarquizar ainda mais criando centros gentrificados (me refiro não apenas à gentrificação do centro ligado à zona portuária na qual resiste o Morro da Providência como também a eliminação de qualquer alteridade na Barra da Tijuca com a possível remoção da Vila Autódromo entre outras comunidades) ou “revitalizados”, isto é, esvaziados das formas de vidas que ali se constituíram e no aguardo da vinda de estilos de vida que não se sabe se virão.

Des-hierarquização do espaço urbano

Diante desse quadro, o que garantiu alguma possibilidade de des-hierarquização do espaço urbano (em seus aspectos sociais e culturais) foi justamente a circulação que mencionei acima: uma circulação eventualmente funcional no sentido de estar relacionada às exigências do trabalho contemporâneo, mas sobretudo uma circulação desejante de outras experiências urbanas e relações humanas. A dimensão mais qualitativa que quantitativa dessa circulação foi responsável não apenas pela resistência ao modelo hierarquizante de cidade – as resistências das favelas e das ocupações ameaçadas de remoção, por exemplo, se articularam por meio de reuniões em cada uma delas potencializando-se reciprocamente e fortalecendo globalmente as lutas por moradia – como também abriu, com sua criatividade, outras possibilidades de vivências na cidade.

Nas universidades públicas no centro ou próximas ao centro da cidade, jovens e adolescentes das favelas, das periferias e mesmo dos territórios mais longínquos da região metropolitana vêm estudar e compartilhar saberes e fazeres. Nas redes e nos espaços sociais e culturais – lonas, cineclubes, lan houses, lajes, etc. – das periferias e das favelas, jovens e adolescentes de todos os cantos da cidade vêm trocar arquivos, músicas, livros, filmes, ideias, danças, trejeitos, modas, afetos e amores. No Rio de Janeiro, ao medo do confronto respondeu o desejo do encontro.

A multidão se constituía aí nos milhões de agenciamentos, deslocamentos e desdobramentos pela cidade. Instituições como universidades e ONGs entre outras formas instituídas deram alguma base a essa produção de novos sentidos e valores, mas foram os movimentos que fizeram toda a diferença.

Em suma, a des-hierarquização urbana não está dada e os episódios de repressão no centro da cidade seguidos da matança na Maré são ainda fortes indicadores de hierarquias perversas que persistem. Contudo, depois de um período em que o Rio de Janeiro parecia estar sob o jugo de poderes incontornáveis (o dos padrões internacionais de segurança para megaeventos e o das especulações do mercado imobiliário local e global) e, pior, parecia haver consenso e aceitação da situação como único destino possível, as monstruosas manifestações dos últimos dias – com sua reivindicação inicial de redução da passagem e integração progressiva de pautas como a da moradia, da educação, da cultura, da comunicação, de uma segurança cidadã entre outras – abriram outros devires apresentando novas possibilidades de des-hierarquização do espaço urbano especificamente e, com elas, de des-hierarquização da atividade política. Poiésis e práxis, mais uma vez, juntas.

IHU On-Line – Que estética surge a partir de tais manifestações? O que ela significa?

Barbara Szaniecki – Para responder, farei inicialmente algumas considerações sobre o que tenho visto nas manifestações – concretas e virtuais – para em seguida tentar responder mais conceitualmente. Observei, por exemplo, nas ruas e nas redes, a produção de cartazes. Nas ruas, chama a atenção a proliferação de cartazes individuais em cartão ou cartolina entre outros materiais toscos, as escritas à mão na urgência ou no capricho em função do momento ou do talento, as ilustrações caricaturais e as fotografias sem retoques “profissionais” que, à primeira vista, podem ser interpretados como revival das ondas “do-it-yourself” (faça-você-mesmo) de hippies, punks ou anárquicos, ou ainda como expressão do “popular” ou “vernacular”: provavelmente é tudo isso junto mas não apenas.

Em todo caso, multiplicam-se as formas expressivas relacionadas a formas de vida que resistem aos padrões globais de cidade. Como trilha sonora, a apropriação da música “vem pra rua” utilizada por uma montadora se tornou ironicamente um dos slogans do movimento e disputa os ouvidos com carro de som e com o barulho das bombas. Nas redes, cartazes remixaram a repressão a pessoas carregando vinagre ou a máscara do filme “V de Vendetta” num “V de Vinagre”.

Também são numerosos os cartazes (ou memes) que caricaturam, carnavalizam ou canibalizam a imagem de representantes políticos que pouco nos representam assim como as insígnias ou logomarcas do seu poder, em particular às da FIFA nos ultimíssimos dias.

De modo geral, é visível, nos cartazes das redes, um uso mais acentuado dos recursos high tech (imagens realizadas com softwares de imagem e de composição tipográfica) se comparados aos recursos low tech e gambiarras dos cartazes das ruas (os cartões e cartolinas com escritas à mão de que falamos), pois esses usos dependem de vários fatores: acesso social, nível educacional e universo cultural, entre outros. Mas o tom caricatural, carnavalesco e antropofágico é frequente em todos. Uma faixa que traduz esse espírito foi a “Unfair Players” que juntava numa mesma imagem tipográfica a FIFA, a polícia e Anastasia em Belo Horizonte.

O carnaval de Bakhtin, aquele que subverte os poderes opressores e se desdobra em obras polifônicas. A antropofagia de Oswald, aquela que transmuta a tristeza em alegria – a alegria é a prova dos nove – e, após devoração e digestão do outro gera alteridades radicais. A semiofagia da multidão, aquela que une redes e ruas. Teoria? Sim, mas não apenas. Estamos falando do que fazemos no nosso dia a dia: toma emprestado uma máquina aqui, remixa um signo lá, articula com outras produções acolá.

O trabalho da multidão supõe saberes e fazeres cooperativos e colaborativos. Em muitos casos, são produções quase sem autoria ou que exige outros modos de autoria, desde os aspectos legais até os gêneros expressivos. E se esse trabalho material e imaterial da multidão é analógico ou digital não importa tanto. Mas é sempre o caso de perguntar a quem interessa essa dicotomia que prioriza agentes, práticas e produções de tecnologia digital ao mesmo passo que invabiliza agentes, práticas e produções de tecnologia analógica ou de baixa tecnologia em geral. Como se o “novo” estivesse inequivocadamente assegurado com o digital e o “velho” estivesse fatalmente atrelado ao analógico. Como se não existissem formas de exploração 2.0 e de representação 2.0 e como se não resistissem importantes formas de emancipação 1.0 e de expressão 1.0.

É até possível afirmar com esse ciclo de monstruosoas manifestações que, num momento em que o ativismo estava limitado (acomodado) ao Facebook e ao Twitter com seus hashtags e petições online, foi a volta às ruas quem fez toda a diferença! Nas ruas e nas redes as formas analógicas e digitais demonstram que não são antagônicas e sim complementares. Produzem, por sua vez, novos agenciamentos estéticos e políticos.

Como qualificar essa estética? Anos atrás, ao descrever a resistência à Guerra do Iraque em 2003, eu a havia descrito como uma estética da multidão [2]. Naquele momento, iniciei a análise com a produção de cartazes expandindo-a em seguida para as manifestações como um todo: dos inúmeros objetos que a compunham (cartazes, faixas, bandeiras, etc.) aos corpos dos manifestantes.

Considero que as manifestações desses últimos dias no Brasil poderiam ser pensadas dentro desse quadro teórico – de estética da multidão – mas, diante do impacto e sobretudo da desmedida que assistimos e vivemos, fico tentada em qualificá-la como uma estética do monstro e, por essa denominação, indico as subjetividades que a produzem. Estética do monstro porque é o Corpo sem Órgãos (Deleuze e Guattari) e o General Intellect (Marx) mencionados acima que a produzem. Mas, além de atribuir essa produção a esse sujeito – corpo e intelecto – em contínua constituição e jamais plenamente constituído, podemos qualificá-la ainda mais, em sua poiésis e em sua práxis, no seu produzir e no seu agir: eu diria que se trata de uma estética da ocupação da cidade, em conflito com a estética de espetacularização da cidade, ainda dominante mas profundamente abalada nos últimos dias.

IHU On-Line – Quais são as principais práticas de resistência à sociedade de controle? Que perspectiva política é possível vislumbrar numa sociedade controlada pelo biopoder e pela biopolítica? Em que medida as manifestações podem romper com a lógica biopolítica? Deseja acrescentar algo?

Barbara Szaniecki – Para não me estender na teoria sobre o tema – já tratada intensa e extensivamente por autores como Michel Foucault [3], Antonio Negri e Giusepe Cocco [4] –, abordarei a biopolítica a seguir a partir de um episódio de que pouco se falou na mídia no ano passado que foram as manifestações na frente do Museu de Arte do Rio no dia de sua inauguração na zona portuária. O exemplo é, de fato, muito significativo.

A zona portuária do Rio de Janeiro vem passando por um importante processo de “revitalização” dentro de uma tentativa de retomada econômica, social, cultural e artística baseado na dita Economia Criativa. Não negamos a importância de reforma da infraestrutura local e mesmo do projeto de revalorização do centro da cidade por meio da liberação do acesso ao chamado waterfront – o espelho d’água da Baía da Guanabara – para o usufruto do carioca e, sobretudo, para a marcar um novo ciclo virtuoso para a cidade.

Mas cabe aqui perguntar: Que projeto de “revitalização” é esse que em nome da vida de uns exclui a vida de outros? Quem são os uns e quem são os outros? Por “uns” podemos entender o turismo de brasileiros e estrangeiros mas também, sem muita certeza, uma classe média que retomaria o centro da cidade como lugar de moradia, de lazer e de negócios. E por “outros”, os outros de sempre: moradores de baixa renda que fizeram da zona degradada seu lugar de existência e de resistência. As vidas das ocupações são removidas. As vidas das favelas são removidas.

No Morro da Providência, favela histórica do Rio de Janeiro, são muitas as famílias ameaçadas de remoção para a construção de um teleférico que mais servirá aos turistas do que aos moradores que já manifestaram inúmeras vezes sua insatisfação com as soluções apresentadas. Apesar disso, em lugar de optar por um projeto baseado em experiências de mixidade social, o poder público optou por um projeto de gentrificação social.

Em suma, estamos realmente no terreno de confronto entre poderes que se exercem sobre a vida (biopoderes) e potências da própria vida (biopolítica). Retomemos então em O cenário da inauguração do MAR [5]. O Museu brilhava, os convidados brindavam: os três níveis governo, a família Marinho e a “classe criativa” (aqueles que se reconhecem como tal). Do lado de fora, movimentos sociais e culturais manifestavam batendo lata e executando performances. Pela primeira vez depois de muitos anos, ruidosa e provocadoramente, o Monstro mostrou a sua cara. Não poderia imaginar que meses depois as manifestações fossem tomar as ruas como tomaram, mas, retrospectivamente, considero bastante significativo que o primeiro sintoma de monstruação tenha se dado aqui no Rio de Janeiro pelo viés da arte e da cultura, que pareciam ultimamente adormecidas por grandes consensos.

Notas da entrevistada

[1] HARDT, Michael. NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005.
[2] SZANIECKI, Barbara. Estética da Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2007.
[3] Michel Foucault em Nascimento da Biopolítica e Segurança, Território, População.
[4] COCCO, Giuseppe e NEGRI, Antonio. GlobAL – Biopoder e luta em uma América Latina Globalizada. Rio de Janeiro: Record, 2005.
[5] Um artigo recente de minha autoria sobre esse evento: http://naborda.com.br/2013/texto/sobre-museus-e-monstros/

(Por Patricia Fachin)

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