Por: Jonas Jorge da Silva | 18 Novembro 2021
Após 32 anos do brutal assassinato dos jesuítas Ignacio Ellacuría, Segundo Montes, Ignacio Martín-Baró, Amando López, Juan Ramón Moreno, Joaquín López y López, da funcionária da residência em que moravam, Elba Julia Ramos, e de sua filha, Celina, de 15 anos, a memória destes mártires lança luzes sobre os atuais tempos de pós-verdade, quando do centro do poder e de sua política a mentira é propagada de forma deslavada, sem qualquer compromisso com os fatos.
Os antecedentes e os desdobramentos do que aconteceu no dia 16 de novembro de 1989, em San Salvador, El Salvador, durante a guerra civil (1979-1991), foram partilhados em um belo depoimento feito pelo padre jesuíta José María Tojeira, diretor do Instituto de Direitos Humanos da Universidade Centro-Americana – IDHUCA, de El Salvador, que naquela ocasião era o provincial dos Jesuítas da América Central.
Para a realização de tal encontro, intitulado Mártires Jesuítas de El Salvador: sementes para a América Latina, o CEPAT contou com a parceria e o apoio do Instituto Humanitas Unisinos –IHU, o Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental – SARES e o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA.
O padre José María Tojeira ressaltou que a dura realidade vivida pelo povo salvadorenho, que com a guerra civil recrudesceu ainda mais, em um acentuado contexto de pobreza e desigualdade, levou esse grupo de jesuítas, alicerçado em seu trabalho na Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas – UCA, a refletir sobre qual era a responsabilidade de uma universidade em um país com problemas gigantescos.
José María Tojeira, diretor do IDHUCA, na atividade "Mártires Jesuítas de El Salvador: sementes para a América Latina"
Diante de situações claramente injustas e impactados pelas inquietações e protestos populares, Ignacio Ellacuría e companheiros constatavam que a universidade deveria participar da vida do país, defendendo os direitos dos pobres, envolvendo-se com seus dilemas. Com autonomia e posicionamento crítico, compreendiam que a UCA deveria ser um elemento de mudança dentro da sociedade. O que hoje é chamado de extensão universitária era compreendido como projeção social, ou seja, a universidade deveria estar engajada na realidade social, projetando caminhos e perspectivas para superar a situação de guerra civil e apontar caminhos.
Segundo Tojeira, Ellacuría defendia que a universidade precisa contribuir na construção da paz, com diálogo e justiça, e defender os direitos humanos. Olhar para os problemas estruturais e fazer projeções para o futuro, tendo em vista que até o brutal assassinato dos jesuítas ainda não estava claro qual seria o resultado da guerra, se haveria um triunfo dos revolucionários ou dos militares.
Entre as estratégias de Ellacuría e seus companheiros, estava muito clara a importância de se elaborar um pensamento de justiça social, de participação popular, de educação e de desenvolvimento de instituições adequadas a um país democrático, que busque o bem comum.
Contudo, na medida em que o conflito social se acirrava, aquilo que os jesuítas concebiam como defesa dos direitos humanos, os militares interpretavam como estratégia de esquerda para apoiar a guerrilha. Nada mais distante da realidade, com denúncias esdrúxulas para ocultar o verdadeiro massacre dos militares contra a população pobre.
O padre Tojeira lembrou, por exemplo, que um levantamento realizado pela Comissão da Verdade instaurada em El Salvador apontou que dos 22.000 casos registrados de violações graves aos direitos humanos, durante a guerra, 85% foram cometidos pelo Exército, 5% pela guerrilha e os outros 10% não foi possível identificar a quem correspondiam.
Na verdade, com o trabalho da Igreja para a resolução do conflito com paz, justiça e diálogo, qualquer crítica ao regime imposto era motivo para o desaparecimento de pessoas. Coube aos Mártires Jesuítas da UCA se somar àqueles que defendiam os pobres, principais vítimas das violações, defendendo seus direitos civis, políticos e sociais.
O trabalho dos Jesuítas da UCA passou a ser rotulado de comunista, ainda que sem qualquer nexo com a realidade. Ellacuría, por exemplo, havia recebido influências do filósofo cristão Xavier Zubiri, que foi seu professor. Contudo, o ódio dos militares só cresceu ao longo dos nove anos de guerra que antecederam ao martírio da UCA.
Para o padre José María Tojeira, o martírio de Ellacuría e companheiros nos interpela a assumir um forte compromisso cristão de enxergar nos pobres o Cristo Crucificado. Ellacuría considerava como tarefa principal do cristão descer os crucificados desse mundo da cruz. Assim, é preciso responder às cruzes do mundo atual, descer os pobres das cruzes da opressão econômica, da marginalização social, da violência e de qualquer tentativa de repressão estatal. A fraternidade e a amizade social só podem ser construídas a partir daí.
Susana Rocca, do IHU e José María Tojeira, diretor do IDHUCA, na atividade "Mártires Jesuítas de El Salvador: sementes para a América Latina"
Ignacio Ellacuría e companheiros enfrentavam a dura realidade salvadorenha partindo de um esforço inteligente para demonstrar a verdade da realidade. Para ele, a realidade nacional era a primeira disciplina a ser estudada na universidade, a partir da reflexão, da capacidade de análise e demonstração dos fatos.
Na opinião do padre Tojeira, tudo isso é muito atual nesses tempos de pós-verdade. Hoje, também urge buscar a verdade enraizada na vida do povo. Do ponto de vista religioso, urge pregar um evangelho vivo, que transforme as relações entre as pessoas, bem como as relações a partir das estruturas sociais.
Da vida desses jesuítas da UCA, podemos extrair um compromisso com a verdade, em favor da dignidade da pessoa humana, em contraposição a um mundo que mente com muita facilidade, especialmente no campo político e do poder. São símbolos de transformação. Em uma perspectiva teológica, seguindo João Crisóstomo, os mártires são as melhores testemunhas da ressurreição.
O padre Tojeira também estabeleceu elos entre os martírios do padre Rutilio Grande, dom Óscar Romero e os Jesuítas da UCA. Todos abordavam os direitos humanos fundamentais, bebiam de uma mesma causa. A realidade do martírio é um estímulo muito forte para transformar a realidade. Os mártires são uma denúncia de todas as vítimas da violência que nos desumaniza e precisam sempre ser recordados para que nunca mais existam vítimas, para que os cristãos assumam o compromisso de construir um mundo sem vítimas.
Após sua exposição principal, Tojeira também aprofundou elementos importantes sobre a vida de Rutilio Grande, como a sua amizade com dom Romero e o seu trabalho com os camponeses em Aguilares. Lembrou que o seu ofício pastoral de cunho popular, muito próximo da vida do povo, influenciou na conversão de dom Óscar Romero e também na radicalidade do compromisso cristão dos Mártires Jesuítas da UCA.
Rutilio Grande, que será beatificado no dia 22 de janeiro de 2022, junto com os leigos Manuel Solórzano e Nelson Rutilio Lemus, companheiros de martírio, foi um fermento na realidade de El Salvador, contribuindo inclusive para que outros companheiros jesuítas assumissem um compromisso mais pessoal com o mundo dos pobres, com uma presença e trabalho ao lado do povo. Em Romero, seu impacto foi tão forte que levou o bispo a praticar uma pastoral profética, que também o levou ao martírio.
Leia mais
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ellacuría e companheiros: esforço inteligente em prol da verdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU