“As atitudes animadas pela meritocracia são corrosivas para o bem comum”. Entrevista com Michael Sandel

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06 Março 2021

De camisa preta, afável, cercado por livros, Michael Sandel, este filósofo e professor de direito da Harvard se conecta via Zoom, de sua iluminada casa em Boston e, durante uma hora, conversa sobre o seu novo livro A tirania do mérito (1).

Entre as muitas distinções, é ganhador do Prêmio Princesa das Astúrias em Ciências Sociais, autor de livros canônicos como O que o dinheiro não compra, e referência obrigatória em filosofia política. Suas conferências geralmente atraem milhares de participantes e viralizam nas redes sociais.

Neste livro, realiza uma análise profunda e crítica sobre o auge do conceito de meritocracia: a ideia de que cada um pode ir tão longe conforme o seu talento e esforço permitirem. Em sua opinião, o resultado da aplicação deste conceito não levou a uma sociedade mais justa, mas a uma em que as elites justificam e validam seu status porque pensam que o merecem e que é apenas obra sua, provocando soberba nos privilegiados e humilhação e ressentimento naqueles que se consideram “perdedores”.

O fato de a centro-esquerda ter abraçado este ideal e ter esquecido – em sua visão – as classes trabalhadoras e médias, explica a atração por figuras populistas como Trump, Bolsonaro e Marine Le Pen, no mundo de hoje.

A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 26-02-2021. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Não é contraintuitivo escrever contra a meritocracia, se é a alternativa, por exemplo, à aristocracia?

Entendo que possa soar contraintuitivo, especialmente se o oposto à meritocracia é, como você diz, a aristocracia. Mas o que estou sugerindo é que hoje o oposto à meritocracia são a democracia e o bem comum. Talvez soe paradoxal, portanto, deixe-me explicar. A meritocracia é um ideal atraente, especialmente se a alternativa for o privilégio herdado, o patrocínio, o nepotismo e a corrupção. Eu, por certo, sou contra essas coisas.

E o mérito tem o seu lugar. Atribuir papéis sociais importantes para aqueles que estão qualificados é algo bom. Se tenho a necessidade de uma cirurgia, preciso de um médico muito bem qualificado para que me opere. Então, o mérito em si é algo bom, é uma alternativa desejável frente a outras como as que descrevi, quero partir deixando isso claro.

Mas, para você, existe um lado obscuro.

Sim. Do modo como se desenvolveu, especialmente nas últimas décadas, em sociedades impulsionadas pelo mercado, teve um lado obscuro. É que as atitudes animadas pela meritocracia, ou seja, uma sociedade de ganhadores e perdedores, tal maneira de pensar na sociedade, são corrosivas para o bem comum. Esse é o argumento principal de meu livro.

E busco demonstrar como, especialmente nas últimas quatro décadas, a versão de globalização impulsionada pelo mercado aprofundou a divisão entre ganhadores e perdedores em nossa sociedade, envenenou nossa política e nos separou.

Em parte, pelas desigualdades, mas também pelas atitudes em relação ao êxito que esta ideia promove, quando aqueles que venceram passaram a acreditar que seu êxito é apenas obra deles, que é a medida de seu mérito. E aqueles que ficaram para trás, não têm ninguém para culpar por isso, exceto eles próprios. Isso é o que chamo de “tirania do mérito”.

E você sustenta que isto criou uma elite muito bem formada, cosmopolita e arrogante, que não se importa com as classes menos favorecidas. Por quê?

O que houve é que a meritocracia produz arrogância nos ganhadores – o que eu chamo de “arrogância meritocrática” – e humilhação nos que ficam para trás. Porque no coração da ideia meritocrática está a crença de que se as oportunidades são iguais, os ganhadores merecem o que ganharam, que é só seu.

Mas existem dois problemas com essa ideia. Primeiro, que as oportunidades não são verdadeiramente iguais em nossas sociedades. Os ganhadores partem com vantagens imensas. Então, em todas as nossas sociedades, não vivemos de acordo com os princípios meritocráticos que professamos. Além disso, até mesmo se pudéssemos conquistar total igualdade de oportunidades, isto seria bom, mas não o suficiente para tornar uma sociedade justa e boa.

Por quê?

Porque uma meritocracia perfeita poderia incitar os ganhadores a pensar que merecem muito profundamente o seu próprio êxito. A esquecer que a sorte e a boa fortuna os ajudaram no caminho, e a esquecer seu sentido de dívida pelo seu êxito, para com seus pais, professores, comunidades, países.

E você cita outros fatores – além da sorte – que incidem no êxito individual e que também considera arbitrários ou contingentes, como, por exemplo, possuir as destrezas que a sociedade em um determinado momento valoriza mais.

Sim, e o exemplo que utilizo no livro é o das grandes estrelas do esporte, que são muito exitosos e ganham muito dinheiro. Uso o exemplo do jogador de basquete Lebron James, mas poderia utilizar qualquer outro. Qual é o jogador de futebol popular no Chile?

Alexis Sánchez, poderia ser.

Ok! Uma estrela do futebol ou basquetebol, por certo, são grandes atletas. Trabalham e treinam duro. Mas há três elementos de sorte e arbitrariedade moral em seu êxito. O primeiro tem a ver com circunstâncias favoráveis familiares, ter bons treinadores, professores, oportunidades. Segundo: ter grandes talentos atléticos. Não são apenas o treinamento e o esforço que produzem grandes esportistas, mas também ser talentosos, independente do que façam.

E o terceiro, é o que você disse, que é muito importante. Lebron James vive em uma sociedade e em um tempo em que amamos o basquetebol, e isso é boa sorte. Se tivesse vivido no renascimento, ao contrário, não se importavam com o basquetebol, mas com a pintura afresco... Então, existem três ingredientes (além da sorte) contingentes e arbitrários no êxito: formação, talento e a combinação entre os talentos que temos e o que a sociedade quer, premia e recompensa no momento.

Você considera que foi um grande erro da centro-esquerda no mundo adotar esta ideia de meritocracia, abandonando a representação das classes trabalhadoras e médias. É crítico, nesse sentido, a Obama, por exemplo. Por que isso aconteceu?

Sim. Representa uma grande mudança nos alinhamentos políticos, e impacta como este padrão é comum em democracias ao redor do mundo. Em 2016, com o voto do Brexit, no Reino Unido, e a eleição de Trump, nos Estados Unidos, os partidos de centro-esquerda (Trabalhista e Democrata, respectivamente) tinham se tornado partidos mais sintonizados com os valores, interesses e perspectivas das classes profissionais, formadas em universidades, com boas credenciais.

E tinham alienado os eleitores da classe trabalhadora, que tradicionalmente constituíam sua base e sua razão de ser... E isso deixou muitos eleitores da classe trabalhadora abertos à sedução de figuras populistas de direitas e autoritárias, como Trump.

Qual é a origem desta mudança da centro-esquerda, em sua avaliação?

Isto remonta aos anos 1980, quando Ronald Reagan e Margaret Thatcher chegaram ao poder com o argumento explícito de que o governo é o problema e os mercados, a solução. E quando saíram da cena política e foram sucedidos por políticos de centro-esquerda (como Clinton, Blair), estes não rejeitaram a premissa fundamental da fé no mercado de Reagan e Thatcher.

Não desafiaram a presunção de que os mecanismos de mercado são instrumentos primários para definir e conquistar o bem comum. Suavizaram as partes mais duras do capitalismo do laissez-faire, e até certo ponto protegeram a rede de seguridade, mas nunca desafiaram o outro lado. Ao contrário, presidiram um período de globalização impulsionada pelo mercado, que criou amplas desigualdades, e não as enfrentaram diretamente.

O que fizerem?

Como resposta às desigualdades ofereceram a mobilidade social individual, através da educação superior. Aqui, é onde o projeto político meritocrático se conecta com a adoção acrítica da fé no mercado. Disseram: “se você quer competir e ganhar na economia mundial, deve ter um certificado universitário. O que ganhará dependerá do que aprender. Pode conseguir, caso busque e se esforce”.

Isto é o que eu chamo de a “retórica da ascensão” dos partidos de centro-esquerda, empregada como resposta à desigualdade. Mas o que não viram foi o insulto implícito desta ênfase na educação universitária, porque a maioria das pessoas não tem um grau acadêmico superior. Nos Estados Unidos, dois terços não possuem. Não viram o insulto implícito no conselho que estavam dando. E o insulto é este: se você não foi à universidade e está sempre lutando na nova economia, o fracasso é culpa sua. E isto gerou o ressentimento que chegou à reação populista.

E produziu uma “ira contra as elites em todo o mundo” que “ameaça as democracias”, como você afirma.

Sim. Porque as figuras populistas que canalizam e expressam estas queixas, esta política do ressentimento e a humilhação, na realidade, não oferecem políticas que enfrentem o desamparo das pessoas no trabalho. Trump diminuiu os impostos dos mais ricos.

Tornou os ricos mais ricos, de fato.

Claro. Mas, apesar disso, 74 milhões votaram nele, mesmo vendo que administrava a pandemia muito mal, inflamar as tensões raciais, e violar normas constitucionais. Então, o que o Partido Democrata deve responder – ainda que respirem aliviados porque Biden é presidente – é qual a razão, depois de tudo isto, de tanta gente apoiar Trump e essa política de ressentimento.

E minha preocupação é que estes partidos de centro-esquerda, incluindo o Democrata dos Estados Unidos, não conseguiram perceber as origens da política de ressentimento à qual as figuras populistas autoritárias apelam. Isto me preocupa, porque sugere que o rancor, a raiva e o ressentimento ainda ofuscam nossa política, mesmo que nos Estados Unidos Biden tenha conseguido vencer.

Pode ser que a centro-esquerda ou a social-democracia se redefina de tal modo que volte a ter as maiorias e freie o populismo?

Penso que os partidos social-democratas devem reorientar e redefinir suas políticas, sua missão e propósito, caso queiram enfrentar as políticas de ressentimento às quais as figuras populistas de direita apelam. E sugiro que façam isso de duas maneiras. Uma é passar do que eu chamo de a “retórica da ascensão” a um projeto focado na dignidade do trabalho. E com isto quero dizer reconhecer que o trabalho não é só um modo de ganhar a vida, mas também uma maneira de contribuir para o bem comum, e obter reconhecimento, respeito, estima social, por ter feito esse trabalho.

Isto sugere que a políticas do estado de bem-estar e de redistribuição, importantes como são, não são suficientes. Porque as pessoas não se preocupam apenas com a justiça distributiva, como também com a justiça contributiva, ou seja, que seu trabalho seja reconhecido, valorizado e respeitado. E isso é, acredito, o que se perdeu do projeto político da centro-esquerda, que ficou focado apenas no aspecto distributivo que, reitero, é importante e necessário, mas não suficiente. Porque as pessoas precisam sentir, querer sentir, que suas contribuições são valorizadas. Assim, sustenta-se a comunidade unida, é o que confere às pessoas um sentido de dignidade e orgulho, como membros, cidadãos de uma comunidade política.

E outro aspecto que considero que a social-democracia deve mudar seu foco é em relação a dar voz às pessoas. Não só ajudá-las, mas prover instituições e espaços públicos e comuns que juntem as pessoas de diferentes origens sociais e econômicas. Porque muito do que prejudicou a vida democrática pública é a perda de espaços comuns que misturam pessoas por meio das classes e origens. É preciso retirar as pessoas de seus enclaves privatizados, que nos separam e que nos isolam uns dos outros.

Em que medidas concretas se deveria traduzir o objetivo da dignidade do trabalho? Aumento do salário mínimo, fortalecimento de sindicatos, por exemplo?

Tem muita coisa na lista de medidas que, ao menos, deveríamos estar debatendo. O que você menciona definitivamente estaria em minha lista. Em vez de um salário mínimo, um salário de vida (living wage), mais proteção aos sindicatos, não só para que os trabalhadores possam negociar melhores condições, mas também idealmente para lhes dar mais voz na vida cívica e política.

E também penso que deveríamos questionar a suposição, muito difundida, de que o dinheiro que as pessoas ganham é a medida de sua contribuição para o bem comum. Vimos na pandemia que os trabalhadores essenciais não são os mais bem remunerados, nem mais reconhecidos e, no entanto, nós os chamamos de essenciais. Mas somos muito cautelosos em debater esta pergunta politicamente, porque sabemos que haverá avaliações diferentes sobre quais contribuições realmente importam, sobre o valor dos diferentes trabalhos. Ao contrário, o que fazemos é “terceirizar” esse juízo moral para o mercado. Assumimos que o mercado de trabalho emitirá um veredicto sobre quais trabalhos têm valor. E o que vemos é que isto é um erro, pois o veredicto do mercado nem sempre é bom.

O que deveria ser feito nesse plano?

Devemos reivindicar novamente essa pergunta, como cidadãos democráticos. Debater sobre salários de vida, em vez de mínimos, mas também debater sobre subsídios salariais, caso os mercados não forneçam um pagamento decente. Também, por certo, existe o sistema de impostos. Normalmente se debate a partir de seu efeito redistributivo, e isso é importante, mas também deveríamos debatê-lo do ponto de vista da contribuição e debater quais realmente têm valor social... e quais não.

Por último, o mais evidente exemplo de como a contribuição do trabalho pode não ser recompensada ou reconhecida de modo justo pelo mercado de trabalho é o trabalho doméstico e de formação das crianças. Um trabalho considerável e importante, mas que, segundo o veredicto do mercado, nem sequer é registrado. Isto deveria fazer parte de qualquer projeto que reconheça a dignidade do trabalho.

Depois do levante social de 2019, no Chile, estamos prestes a redigir uma nova Constituição e elegeremos, muito em breve, as 155 pessoas que a escreverão. Como restaurar o diálogo, de modo que os diferentes constituintes possam debater e acordar um futuro comum, apesar de suas diferenças?

É um momento muito interessante na história da democracia chilena. Parece-me que para suplementar as deliberações dos 155 membros, seria importante que houvesse outros espaços de discussão e debates dentro da sociedade civil, e que ocorram ao mesmo tempo. Não sei se há planos para isto, se algumas organizações estão pensando em algo assim, mas esta deliberação mais ampla poderia ser uma maneira de tornar este processo realmente democrático e de educação cívica.

Uma pergunta final: sua crítica profunda à meritocracia, neste livro, também poderia ser lida como um desincentivo ao esforço pessoal. Onde fica a sua importância?

É uma pergunta importante. Penso que deveríamos reafirmar o esforço e o trabalho duro, que são virtudes, mas até certo ponto. Porque incentivar o esforço individual não implica pensar o êxito só como produto próprio. Essa é a diferença. Que os exitosos reconheçam o papel da sorte e da boa fortuna, e seu sentido de dívida, para que a partir disso reconheçam um sentido de obrigação para com os outros cidadãos, é o único ingrediente do êxito. Por isso, nesta era da meritocracia, o que falta é a virtude da humildade, que pode nos abrir para um sentido maior de responsabilidade pela sociedade.

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos - IHU

 

1.- SANDEL, Michael J.,  A tirania do mérito. O que aconteceu com o bem comum? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020

 

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