“Temos que entrar em sintonia com o caos”, avalia Franco “Bifo” Berardi

Foto: PxFuel

26 Outubro 2020

Bifo disse que o início da pandemia lhe produziu uma solidão eufórica: “Desatou-se um tempo tão terrível como útil. Escrever sobre minha experiência pessoal foi uma maneira quase involuntária de analisar muitos acontecimentos que ocorrem no psiquismo global”.

 

Sobre a capa do livro “El umbral. Crónicas y meditaciones” (Tinta Limón, 2020), no qual destaca uma ilustração de sua autoria, conta que é resultado de momentos em que está “um pouco nervoso” e precisa se conectar com “uma esfera menos racional”.

 

Referência do movimento da autonomia operária italiana e fundador de importantes experiências de comunicação alternativa, Bifo se transformou em uma das vozes mais influentes para ler a conjuntura internacional.

 

A entrevista é de Ezequiel Gatto e Diego Skliar, publicada por El Salto, 22-10-2020. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

O que significa que o coronavírus deixou de ser um biovírus para se tornar um infovírus e por que isso nos coloca como humanidade em um limiar?

Tenho que antecipar o discurso a um jornal, antes da explosão da pandemia, no final do ano 2019, durante a deflagração de revoltas em todo o mundo. De Hong Kong a Quito, La Paz, Santiago do Chile, Barcelona, Paris, Beirute, no outono de 2019, pareceu-me que se estava verificando algo novo, muito espasmódico. Pareceu-me que estávamos diante de uma confusão do corpo global. Como se o corpo das novas gerações, especialmente da geração precarizada, tivesse nascido no interior da aceleração telemática.

 

 

Esta geração estava produzindo uma rejeição muito violenta, muito corpórea ao sufocamento. Esse sufocamento é o ponto de partida de tudo isto. A impossibilidade de respirar que o movimento negro expressa com as palavras “I can’t breathe”. É o símbolo e o sintoma, ao mesmo tempo, do efeito que 40 anos de ditadura neoliberal produziu sobre o corpo e o cérebro, entendido de uma maneira quase neurofisiológica. É esta corporeidade conectiva que explode sem projeto, sem estratégia. Na minha perspectiva, o centro da revolta do outono de 2019 é o Chile. Porque no Chile tudo começou. No Chile tudo pode terminar. A ditadura fascista e neoliberal.

 

 

Mas a explosão foi como um estrondo de loucura, uma convulsão. E a convulsão antecipava o colapso que chegou em fevereiro com a pandemia. Neste momento, é o caos que precisamos interpretar. Não podemos interpor fórmulas políticas do passado. Temos que entrar em sintonia com o caos. Quando se verifica uma situação de caos é inútil e perigoso pensar que temos que fazer a guerra contra o caos. O caos se alimenta da guerra.

 

É a primeira vez que se torna possível usar a palavra extinção em um sentido político e não biológico. Porque a extinção se tornou muito provável. O que temos que fazer é captar um novo ritmo, em nível sensível, em nível de formas de vida. É um processo que pode ser muito longo e muito doloroso. Eu acredito que a pandemia obriga a sociedade global a buscar um ritmo sintônico com a situação caótica que 40 anos de loucura neoliberal produziram. Estamos no limiar. Na passagem da obscuridade à luz e da luz à obscuridade.

 

 

E o que o vírus evidenciou?

Cada vez mais, a força dominante tem sido a abstração tecnofinanceira que impôs suas regras e que destroçou algumas estruturas da vida social. Mas durante a pandemia, percebemos que o problema não é o dinheiro. O importante são coisas muito concretas como as estruturas sanitárias, as máscaras, a comida. O que precisamos basicamente se impõe como o que está no centro da atenção.

 

Então, a frugalidade é a palavra que melhor expressa este retorno ao concreto. Frugalidade não significa pobreza, significa uma relação boa, feliz, entre o que necessitamos e o que podemos ter. Mas há um ponto que veremos claramente no futuro: só uma redistribuição da riqueza, dos recursos a nível planetário e local poderá permitir uma saída da crise espantosa que está ocorrendo no mundo. Redistribuição da riqueza, frugalidade, igualdade.

 

 

Longe desta possibilidade, as crescentes expressões de direita no mundo negam a pandemia e incitam, desde o início, a voltar a “ligar a máquina”. Vemos isto no Brasil e nos Estados Unidos, onde cada vez mais se fala em um processo de guerra civil. 

O fenômeno Bolsonaro é tão extremo em sua vulgaridade que me faz pensar em uma espécie de Berlusconi em uma fase de senilidade extrema. Acredito que a senilidade e a impotência são chaves muito importantes para entender a onda de violência machista e racista.

 

Em relação aos Estados Unidos, a guerra civil está se desenvolvendo. É um potencial que não se desenvolve nas ruas, desenvolve-se nas grandes instituições do imperialismo estadunidense. Mas existe também uma guerra racial e social que explodiu nos últimos quatro meses e não parará com as eleições. É uma crise psíquica.

 

Um dado essencial é o aumento ininterrupto do consumo de drogas oficiais que leva a uma intoxicação em massa, sobretudo da população branca senilizante. Em junho, foram vendidas três milhões de armas de fogo, uma das mercadorias mais vendidas durante a pandemia. Há 300 milhões de armas de fogo debaixo dos colchões. A insurreição do movimento norte-americano, após o assassinato de George Floyd, se explica em termos de reativação psíquica do organismo pensante da organização coletiva. Uma tentativa subconsciente para evitar uma depressão suicida, a longo prazo.

 

Como viver diante da possibilidade de extinção no horizonte?

O problema é que o colapso não pode ser superado no interior do paradigma neoliberal. A questão principal que eu me coloco é a seguinte: é possível imaginar uma vida feliz no horizonte da extinção? A resposta é sim. É a única maneira de escapar da extinção. Seguir imaginando ternura, imaginando erotismo, imaginando aventura.

 

Assista a videoconferência completa, em espanhol:

 

 

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