O crime da Vale em Brumadinho: metáfora de um sistema minerário predatório

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28 Janeiro 2020

"A mineração que matou, negocia o que será reparado. Isso denuncia o estilo de um extrativismo colonialista, disfarçado em proposta de desenvolvimento. O que impera, aqui, de fato, é o interesse de uma multinacional e de seus acionistas, mesmo que para isso seja necessário burlar leis, comprar o Estado, usar maquiagens nas mídias", denuncia Dom Vicente Ferreira, Bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, no dia 25 de janeiro, 1º ano do "crime da Vale com o rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão, testemunhando "um luto e uma luta que fazem pensar elementos de respostas às perguntas" que surgem com os crimes de Mariana e Brumadinho.

Segundo o bispo, "pensar em caminhos alternativos esbarra em resistências fortes de um modelo que dominou até mesmo a autonomia do pensar. Não é tarefa fácil problematizar a mineração em territórios como Brumadinho e, o retorno dos trabalhos da Mineradora, em Mariana, é prova real disso".

 

Eis o artigo.


“Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade.” (Papa Francisco, Laudato Sì, n. 91)

A carta Encíclica Laudato Sì', do Papa Francisco, é um corajoso e bem fundamentado documento sobre ecologia integral. A partir de uma importante leitura das formas insustentáveis de exploração do meio ambiente, o texto propõe, à luz da fé cristã, uma conversão ecológica. Dramas agudos como o aquecimento global, a devastação da biodiversidade, a poluição do ar e das águas, impõem sobre o planeta violentos cenários de destruição e, sobre os pobres, caminhos sem esperança de sobrevivência.

Com tudo isso, crimes como os de Mariana e de Brumadinho são fatos isolados, acidentes de percurso, ou revelam uma forma global de extrativismo que recolhe o lucro e socializa a morte? Basta, apressadamente, pensar em medidas de reparação para cada caso, ou buscar um novo pacto global pela Casa Comum?

Desde o dia 25 de janeiro de 2019, data do crime da Vale com o rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão, testemunhamos um luto e uma luta que fazem pensar elementos de respostas a essas perguntas.

Primeiramente, o município é um caso concreto da minério-dependência. Mesmo com a trágica situação pós-crime, defender a narrativa dos atingidos é uma tarefa árdua, o que nos fez cunhar a expressão 25 é todo dia. A mineração que matou, negocia o que será reparado. Isso denuncia o estilo de um extrativismo colonialista, disfarçado em proposta de desenvolvimento. O que impera, aqui, de fato, é o interesse de uma multinacional e de seus acionistas, mesmo que para isso seja necessário burlar leis, comprar o Estado, usar maquiagens nas mídias.

Em segundo lugar, a repetição de uma engenharia criminosa, faz pensar que o rompimento de barragens é, infelizmente, um caso previsto; parte de um processo minerário. As placas com rotas de fuga mostram o cinismo da busca do lucro acima da vida. Trata-se, portanto, de crimes anunciados, realizados e prolongados. A grande devastação socioambiental serve, também, para que a mineração continue ocupando o território com ares de domínio e poder.

Em terceiro lugar, pensar em caminhos alternativos esbarra em resistências fortes de um modelo que dominou até mesmo a autonomia do pensar. Não é tarefa fácil problematizar a mineração em territórios como Brumadinho e, o retorno dos trabalhos da Mineradora, em Mariana, é prova real disso.

Diante desses pontos, há um grande trabalho de resistência protagonizado por algumas forças da Igreja local. Movimentos que levam a sério o pedido do Papa Francisco para que sejamos uma Igreja em saída. A articulação das comunidades ao longo de um ano pós-crime, possibilitou a formação de um coletivo dos atingidos. Nele, há um trabalho que une denúncia e anúncio, que liga espiritualidade e grito pela justiça. Um espaço de afeto, humano e ecológico, que o capital não domina. Dar voz às vítimas também não se faz sem a memória das 272 mortes, incluindo as que ainda não foram encontradas. E, como tudo está interligado nessa Casa Comum, fica claro que falar de crise ecológica é reconhecer que o horizonte da ética, do que o ser humano elege como seu novo deus, o dinheiro, não são coisas separadas uma da outra. Voltar o coração para a vocação central de cuidadores do planeta, deve fazer as comunidades locais e internacionais pensarem em limites e possibilidades da relação do homem com o universo.

Os caminhos alternativos passam pela proposta de uma conversão ecológica que deve assumir aspectos individuais e coletivos. Vencer a genética consumista da contemporaneidade se dará pela busca de uma vida mais simples, assumindo posturas que estão na contramão da cultura do descarte. Para isso, a valorização da agricultura familiar, das pequenas empresas, dos artesanatos, das tradições das comunidades quilombolas, do ecoturismo não são propostas inalcançáveis. Pelo contrário, elas já existem e sustentam a defesa de uma geografia que não possui somente minério, mas sobretudo água, tradições, religiosidade, mantidas por tantos atores locais. Vale lembrar, que tais atores, muitas vezes, são criminalizados pela força de sua resistência e nem sempre participam dos circuitos oficiais da sociedade ou da própria dinâmica eclesial. Desse modo, é louvável a primeira romaria da Arquidiocese de Belo Horizonte pela Ecologia Integral a Brumadinho, dia 25 de janeiro de 2020, como grito e súplica de tantos que sonham por um mundo novo.

Enfim, fica claro que a Igreja não possui um partido político, mas, sem dúvida, é uma voz política porque denuncia a exclusão e propõe a construção de uma sociedade de paz, que não será alcançada sem justiça. Seu partido é o Evangelho, que não pode ser rasgado em nome de nenhum interesse que coloque o lucro acima de tudo e a lama em cima de todos.

Se, num primeiro momento, fomos firmes na acolhida solidária, hoje, é mais do que justo, que debatamos também modelos políticos de condução de nossa região que não estejam atrelados ao monopólio das mineradoras.

Nesse caso, não basta a caridade assistencial. De algum modo, também nós cristãos temos que sanar a esquizofrenia que há entre fé e vida, entre crer com as palavras e não agir para mudar estruturas econômicas perversas.

O caminho a percorrer é longo, mas a esperança é grande. É bem provável que estejamos participando de uma nova revolução e ela é socioambiental.

Até quando? Até sempre!

 

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