O antiliberalismo católico e o novo governo populista da Itália. Artigo de Massimo Faggioli

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12 Junho 2018

Nestes últimos 70 anos, na luta global pela implementação das democracias constitucionais e pelo respeito aos direitos humanos, o catolicismo tem sido parte da solução. Agora, ele poderia se tornar parte do problema.

A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em Il Mulino, 11-06-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O novo governo populista da Itália atraiu interesse nos Estados Unidos e, em particular, na pequena, mas ativa, minoria antiliberal e neotradicionalista católica estadunidense.

Há um fascínio perceptível pelo novo governo populista da Liga-Cinco Estrelas, se lermos a análise hospedada pelos centros desses círculos teopolíticos pós-liberais e antiliberais – revistas como First Things e Commentary.

O que está em jogo aqui não é apenas uma percepção estadunidense da Europa, da União Europeia, do euro, da Itália e da Alemanha, que é diferente das percepções dos europeus em relação a outros europeus e instituições europeias.

Há também uma batalha teológica e religiosa em curso. Para os católicos antiliberais dos Estados Unidos, a chegada ao poder de governos de direita e populistas na Europa central e oriental (Polônia, Áustria, Hungria e Eslovênia) representa, junto com a Rússia de Putin, um modelo novo e atraente para a relação entre religião e política.

A mudança de regime na Itália é, até agora, a meta mais ambiciosa do plano do tradicionalismo católico e do antiliberalismo nos Estados Unidos para retirar a Europa do secularismo, do multiculturalismo, da imigração, da globalização e, em particular, da União Europeia.

A Itália está no centro desse mapa geopolítico e geoteológico, dado o seu papel histórico para o catolicismo. É quase como se o novo governo populista da Liga-Cinco Estrelas na Itália fosse a versão teologicamente neotradicionalista, católica e romanocêntrica do Brexit.

O neotradicionalismo e o antiliberalismo católicos podem ser vistos como dois fenômenos diferentes, mas sua percepção da situação da Europa hoje se sobrepõe amplamente. Essa ideologia se origina nos Estados Unidos: Steve Bannon é apenas um dos porta-vozes dessa visão de mundo que não tem uma organização oficial.

Nesse quadro, o trumpismo é apenas um substituto para a luta de longa data desse tipo de catolicismo contra aquilo que eles veem como um establishment liberal ou ordem liberal onipotentes e avassaladores.

Esse movimento neotradicionalista católico tem uma história que precede e difere do movimento de Trump. A fim de entender o contexto, é útil mencionar o artigo inovador publicado em julho de 2017 pela revista jesuíta La Civiltà Cattolica, de coautoria do editor, Antonio Spadaro SJ, que falou sobre a aliança “ecumênica” político-teológica muito peculiar entre o fundamentalismo evangélico protestante e o integralismo católico nos Estados Unidos.

Na teologia católica de língua inglesa, nessas últimas duas-três décadas, pelo menos, vimos o desenvolvimento de diferentes tipos de antiliberalismo e pós-liberalismo teológicos: de uma forma muito simplificada, poderíamos dizer que existe um pós-liberalismo radical-progressista e um antiliberalismo tradicionalista e neomedieval.

A minoria neotradicionalista no catolicismo estadunidense hoje tem muito mais a ver com o último, embora também haja nessa cultura católica alguns elementos da crítica radical-progressista ao liberalismo (por exemplo, contra o sistema econômico neoliberal) junto com uma corrente que recorre à “teologia da prosperidade”.

Esse antiliberalismo ideológico é uma minoria na Igreja Católica, mas não é apenas uma das muitas alas religiosas dentro da sociedade estadunidense. Você pode encontrá-lo – em versões diferentes que variam muito em termos de visão de mundo e de fervor – no comentarista católico do The New York Times, Ross Douthat; em bastiões da cultura conservadora, como a National Review e o The American Conservative; na revista The Week; em respeitados professores universitários que lecionam em importantes universidades católicas, como a Notre Dame, e universidades da Ivy League, como Harvard.

A expressiva cultura católica estadunidense neotradicionalista (que não é um remanescente de velhas gerações de católicos: ela está recrutando entre as gerações jovens) está travando uma guerra intelectual contra a ordem internacional liberal.

Essa crítica da globalização se transforma em uma crítica radical da modernidade e da modernidade política – não apenas uma impaciência com os extremos às vezes grotescos da correção política pós-modernista. Ela é contra o neoliberalismo econômico (que muitas vezes impossibilita que os jovens casais formem uma família – um ponto-chave para essa mentalidade religiosa), mas também contra o liberalismo teológico (a abordagem dialógica em relação ao mundo moderno típico do Concílio Vaticano II, mas, mais em geral, os desdobramento teológicos no século XX, com uma exceção para João Paulo II e Bento XVI, que são interpretados a partir de um ponto de vista neotradicionalista) e contra o liberalismo político, no sentido das democracias liberais constitucionais.

Os neotradicionalistas católicos que se enfurecem com a ordem liberal desejam o retorno de um forte papel da religião e especialmente do catolicismo na vida pública. Essa raiva muitas vezes deriva de uma forte postura pró-vida, impulsionada pela rejeição moral do aborto legalizado.

O extremismo das leis e da cultura do aborto nos Estados Unidos faz com que esses católicos vejam todos os tipos de sistemas políticos seculares e liberais como moralmente ilegítimos e cúmplices da “cultura da morte”.

Junto com esse lema pró-vida, há também uma ansiedade civilizacional em relação à ascensão dos direitos LGBT, à pluralização religiosa do mundo ocidental, ao alvorecer de uma América pós-cristã e a visões sobre outras religiões (incluindo o judaísmo, mas especialmente o Islã) que tendem a descartar completamente 50 anos de diálogo inter-religioso e de ensino oficial da Igreja Católica sobre o assunto.

O programa teológico-político que flui deste tipo particular de elite católica estadunidense nos Estados Unidos (geralmente bem relacionado com ricos doadores e patrocinadores católicos) é levado em frente totalmente em nome do “povo contra as elites liberais”. Seu programa está atualmente parado nos Estados Unidos com a presidência de Trump, que entregou algumas vitórias simbólicas para a frente pró-vida (com a nomeação do juiz da Suprema Corte Neil Gorsuch), mas também outros momentos mais embaraçosos como a “proibição muçulmana” [Muslim ban] e as políticas extremamente duras contra os imigrantes da América Latina (como a separação de filhos e pais na fronteira).

Mas a visão de mundo neotradicionalista não se limita aos Estados Unidos. É a partir dessa visão de mundo que procedem as suas profundas simpatias ideológicas por Le Pen na França, Orban na Hungria, Putin na Rússia e pelo governo Salvini-Di Maio na Itália.

Essa paixão por Salvini e Di Maio não é apenas um “casamento forçado” na ausência de melhores alternativas. As visões desses antiliberais e pós-liberais católicos estadunidenses coincidem em grande medida com o desejo desse tipo de católicos de voltarem à ordem mundial pré-globalização, pré-liberal e pré-1960.

Seu ódio moral dirigido às consequências políticas e religiosas dos anos 1960 é acompanhado pela sua indiferença histórica e teológica em relação aos alinhamentos político-ideológicos entre o catolicismo antiliberal e os regimes totalitários na Europa nos anos 1920-1930.

Em uma reversão daquilo que Luigi Sturzo e Jacques Maritain fizeram a partir dos Estados Unidos pela democratização da Europa entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, essa cultura católica neotradicionalista estadunidense olha agora para a Europa para uma reversão da ordem liberal ocidental. Alguns dos argumentos do catolicismo antiliberal parecem mais próximos do catolicismo nacionalista e integralista de Maurras do que de Maritain.

O plano não é apenas defender o cristianismo nas costas estadunidenses, mas também “invadir” a Europa com essa narrativa que ecoa o “choque de civilizações”. Isso também implica, após a mudança de governo com partidos populistas de direita no comando, algum tipo de transplante transatlântico das “guerras culturais” estadunidenses ao Velho Continente.

Minha opinião é de que isso não vai funcionar. Quando se trata de Itália, aqueles que querem arrastar o país para as “guerras culturais” estadunidenses deveriam ter em mente que a Itália nunca terminou uma guerra mundial do mesmo lado em que começou.

Além disso, existem diferenças entre as culturas católicas italiana e estadunidense que dificultam imaginar uma guerra cultural teológica no Bel Paese. Lembremos que as tentativas de implantar o catolicismo como uma “religião civil” na Itália depois do 11 de setembro e da guerra do Iraque – e durante o pontificado de Bento XVI – não funcionaram.

O movimento da “direita alternativa” está agora em movimento em direção à Europa e com a Itália em seu horizonte, e a religião faz parte dessa marcha: a radicalização da direita na Europa tem um componente teológico em relação ao qual os líderes da extrema direita europeus e italianos podem ser surdos ou cínicos demais para se preocupar, mas que é muito claro para seus conselheiros estadunidenses.

Não é coincidência que esses mesmos círculos católicos neotradicionalistas são exatamente os mesmos que trabalharam duro desde 2013 para deslegitimar o Papa Francisco – mais ou menos o que Matteo Salvini fez quando disse que seu papa era o “Papa Emérito Bento XVI, e não o Papa Francisco.

Reverter a cultura dos católicos em relação a uma cultura política neomedievalista teria custos significativos no mundo da religião globalizada: esse neotradicionalismo católico é uma minoria, mas tem a sua importância sobre a teologia das “minorias criativas”. E, de fato, elas são criativas.

Apenas alguns meses atrás, alguns intelectuais católicos estadunidenses públicos acharam uma boa ideia afirmar as ações de Pio IX no famoso caso Mortara, naquele que se tornou um revival impressionante da teologia pré-Vaticano II e antijudaica.

Tudo isso não deveria ser apenas uma preocupação para os católicos ou para os teólogos profissionais. O endosso católico da democracia constitucional na segunda metade do século XX desempenhou um papel nos sucessos da democratização do mundo após a Segunda Guerra Mundial e durante a descolonização. Esse foi um desenvolvimento teológico possibilitado também pela contribuição intelectual e teológica dos católicos estadunidenses e dos católicos europeus que voltaram dos Estados Unidos após a guerra.

Nestes últimos 70 anos, na luta global pela implementação das democracias constitucionais e pelo respeito aos direitos humanos, o catolicismo tem sido parte da solução. Agora, ele poderia se tornar parte do problema.

Assista às conferências que Massimo Faggioli concedeu ao XVIII Simpósio Internacional IHU: A virada profética de Francisco

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