“O neoliberalismo é uma perversão da economia dominante”. Artigo de Dani Rodrick

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21 Dezembro 2017

“Os neoliberais certamente não estão errados quando argumentam que esses ideais preciosos são mais propensos a ser alcançados em uma economia vibrante, forte e em expansão. No entanto, eles se enganam quando pensam que existe uma receita única e universal para melhorar o desempenho econômico, à qual eles teriam acesso. O erro fatal do neoliberalismo é que ele se engana sobre o que é a economia em si. Este deve ser rejeitado em seus próprios termos pela simples e boa razão de que é uma economia ruim”. A reflexão é de Dani Rodrik, professor de economia política internacional na Escola de Governo John F. Kennedy na Universidade de Harvard, em artigo publicado por Alternatives Économiques, 12-12-2017. A tradução é de André Langer.

Eis o artigo.

Mesmo os críticos mais contumazes reconhecem: é difícil definir o neoliberalismo. Em geral, este termo sugere uma preferência pelos mercados e não pelo Estado, pelos incentivos econômicos, em vez das normas culturais, e pelas empresas privadas em detrimento da ação coletiva. De Augusto Pinochet a Margaret Thatcher ou Ronald Reagan, dos democratas estadunidenses ao novo Partido Trabalhista britânico, da abertura econômica chinesa até a reforma do Estado-providência na Suécia, a palavra tem sido usada para descrever uma grande variedade de situações.

Assim, a palavra “neoliberalismo” é usada como um coringa que qualifica qualquer coisa relativa à desregulamentação, à liberalização, à privatização ou à austeridade fiscal. Hoje, ele é rotineiramente difamado e equiparado a todas as ideias e práticas que contribuíram para o aumento da insegurança econômica e das desigualdades, o que nos levou à perda de nossos valores e de nossos ideais políticos e, finalmente, precipitou o surgimento de movimentos populistas.

Onde estão os neoliberais?

Aparentemente, nós vivemos na era do neoliberalismo. Mas quem são, no final das contas, os seguidores e os disseminadores dessa corrente de pensamento – os próprios neoliberais? Curiosamente, teríamos que voltar quase ao início dos anos 1980 para encontrar alguém que tenha abraçado explicitamente o neoliberalismo. Em 1982, Charles Peters – que durante muitos anos dirigiu a revista política Washington Monthly – publicou um “Manifesto Neoliberal”, que constitui ainda hoje, passados 35 anos, uma leitura interessante, pois o neoliberalismo que ele descreve tem pouca semelhança com o alvo de escárnio de hoje. De acordo com Peters, os políticos que encarnam o movimento neoliberal não seriam semelhantes a Thatcher ou Reagan, mas liberais – no sentido estadunidense da palavra – que, após se decepcionarem com os sindicatos e a onipresença dos governos centrais, abandonaram seus preconceitos contra os mercados.

O uso do termo “neoliberal” explodiu na década de 1990, quando foi associado a dois fenômenos, nenhum dos quais foi mencionado no artigo de Peters. O primeiro deles é a desregulamentação financeira, que culminaria na crise financeira de 2008 e na ainda atormentada fragilidade da zona do euro. O segundo fenômeno é a mundialização econômica, que se acelerou graças à livre circulação de capitais e a um novo e mais ambicioso tipo de acordos comerciais. A financeirização e a globalização tornaram-se as manifestações mais visíveis do neoliberalismo no mundo de hoje.

Entre ciência e ideologia

O fato de que o neoliberalismo é um conceito escorregadio e maleável e que não dispõe de um lobby explícito de defensores, não significa que seja insignificante ou irreal. Quem pode, com efeito, contestar que o mundo não experimentou uma mudança decisiva em relação aos mercados desde a década de 1980? Ou o fato de que os políticos de centro-esquerda – os democratas nos Estados Unidos, os socialistas e os social-democratas na Europa – abraçaram com entusiasmo alguns dos credos centrais do thatcherismo ou do reaganismo, como a desregulamentação, a privatização, a liberalização financeira ou a iniciativa privada? Grande parte das nossas discussões políticas contemporâneas está imbuída de princípios baseados no conceito de homo œconomicus, um ser humano perfeitamente racional que procura maximizar o interesse próprio e que constitui um elemento central de muitas teorias econômicas.

Mas a elasticidade do termo “neoliberalismo” também significa que as críticas que são direcionadas a essa corrente econômica erram muitas vezes o alvo. Não há nada de errado nos mercados, na iniciativa ou na empresa privada quando esses princípios são aplicados adequadamente. As conquistas econômicas mais importantes do nosso tempo também resultaram do uso judicioso desses últimos. E ao esquivar o neoliberalismo, corremos o risco de privar-nos de algumas de suas ideias úteis.

O verdadeiro problema é que a economia mainstream cai muito facilmente na ideologia, restringindo as escolhas que parece oferecer-nos e fornecendo soluções de “cortador de biscoitos”. Uma compreensão adequada dos fenômenos econômicos que fundamentam o neoliberalismo nos permitiria identificar a ideologia e rejeitá-la quando se disfarçasse de ciência econômica. Finalmente – e isso certamente é o mais importante –, isso nos ajudaria a enriquecer a imaginação institucional que precisamos desesperadamente para reconstruir o capitalismo do século XXI.

Experiência de pensamento

Nós pensamos, de modo geral, o neoliberalismo como a soma de princípios chaves da ciência econômica dominante. Para poder estudar estes princípios sem ideologia, considere uma experiência de pensamento.

Suponhamos que um economista bem conhecido e muito respeitado desembarca pela primeira vez em um país, sobre o qual não sabe nada. Ele é convocado para participar de um encontro com os líderes políticos do país em questão. “Nosso país está com sérios problemas”, disseram-lhe então. “A economia está estagnada, o investimento é baixo e não há perspectivas de crescimento à vista”. Os líderes se voltam para ele, cheios de esperança: “Diga-nos qual é o caminho para que a nossa economia volte a crescer”.

O economista reconhece sua ignorância e explica que seu pouco conhecimento sobre a economia do país o impede de fazer qualquer recomendação. Ele precisaria estudar a história da economia, analisar dados estatísticos e viajar pelo país antes de poder dizer qualquer coisa.

Mas seus anfitriões insistem: “Nós entendemos sua reticência, e gostaríamos que tivesse tido tempo para tudo isso”, dizem eles. “Mas a economia não é uma ciência, e você não é um dos seus praticantes mais proeminentes? Mesmo que você não conheça muito bem a nossa economia, certamente há algumas teorias gerais e algumas diretrizes que nos ajudariam a orientar as nossas políticas econômicas e as reformas que queremos implementar”.

O economista encontra-se num impasse. Por um lado, ele não quer imitar esses gurus econômicos que há muito criticou por venderem seus conselhos políticos favoritos. Mas ele se sente desafiado por esta questão. Existem verdades universais na economia? Ele pode dizer algo válido (e possivelmente útil)?

Que princípios?

Então ele começa a sua exposição. A eficiência com que os recursos de uma economia são alocados é um determinante crucial do desempenho dessa economia, diz ele. A eficiência exige, por sua vez, alinhar os incentivos domésticos e das empresas com os custos e os benefícios sociais. Os incentivos aos empresários, investidores e produtores são particularmente importantes para o crescimento econômico. O crescimento precisa de um sistema bem-sucedido de direitos de propriedade e execução de contratos capaz de garantir que os investidores mantenham os retornos de seus investimentos. Finalmente, a economia deve estar aberta a ideias e inovações do resto do mundo.

Mas um período de instabilidade macroeconômica pode descarrilar a economia, prossegue o nosso economista visitante. Os governos devem, portanto, conduzir uma política monetária rigorosa, o que significa restringir o crescimento da liquidez ao aumento da procura monetária nominal até um nível razoável de inflação. Eles devem garantir a sustentabilidade das finanças públicas, de modo que a dívida pública não exceda a renda nacional. E devem realizar uma regulamentação prudencial dos bancos e outras instituições financeiras para evitar que o sistema financeiro como um todo se aproxime de riscos excessivos.

Na sequência, o economista aborda um tema que lhe é caro: “A economia não se restringe apenas à eficiência e ao crescimento”, acrescenta. Os princípios econômicos também incluem questões de política social e de equidade. A economia tem, certamente, pouco a dizer sobre o nível de redistribuição que uma sociedade deve buscar. Mas defende que a base tributária deve ser a mais ampla possível e que os programas sociais devem ser concebidos de forma a não encorajar os trabalhadores a abandonarem o mercado de trabalho.

No momento em que o economista termina sua apresentação, parece que ele estabeleceu uma verdadeira agenda neoliberal. Um ouvinte crítico, da plateia, reconhecerá uma série de “palavras-chave”: eficiência, incentivos, direitos de propriedade, política monetária saudável, prudência fiscal e financeira. No entanto, os princípios universais que o economista acabou de descrever são muito vagamente definidos: eles presumem uma economia capitalista – em que as decisões de investimento são feitas por agentes e corporações privadas – mas não muito além disso. Na realidade, eles admitem – e até mesmo requerem – uma incrível variedade de arranjos institucionais.

Então, o economista acabou de fazer uma análise neoliberal? Nós nos enganaríamos acreditando nisso; nosso erro consistiria em associar cada termo abstrato – incentivos, direitos de propriedade, política monetária sólida – com uma contrapartida institucional predeterminada. E nisso reside a reivindicação central e o principal erro do neoliberalismo: a crença de que os princípios econômicos de primeira ordem correspondem a um único conjunto de políticas, próximo de uma agenda ao estilo de Thatcher ou de Reagan.

Tomemos os direitos de propriedade. Eles são importantes porque permitem a distribuição dos retornos sobre os investimentos. Um sistema ideal conferiria os direitos de propriedade àqueles que fariam o melhor uso possível de seus ativos, e ofereceria, ao contrário, uma proteção contra aqueles que correm o risco de se apropriar de todos os benefícios. Assim, os direitos de propriedade são benéficos quando protegem os inovadores de passageiros clandestinos, mas são prejudiciais quando os protegem da concorrência. Dependendo do contexto, um regime jurídico que fornece os incentivos adequados pode ser bastante diferente do regime padrão de direitos de propriedade privada ao estilo estadunidense.

“Neoliberalismo” ao estilo chinês?

Isso pode parecer um parêntese semântico sem nenhum interesse prático. Mas o espetacular sucesso econômico da China deve-se em grande parte ao seu processo institucional que desafia toda a ortodoxia. A China voltou-se para os mercados, mas não copiou as práticas ocidentais de direitos de propriedade. As reformas realizadas no país produziram incentivos baseados no mercado através de uma série de novos arranjos institucionais mais adaptados ao contexto local.

Ao invés de passar diretamente da propriedade estatal para a propriedade privada, por exemplo, o que teria sido limitado em todos os casos pela fraqueza das instituições, o país passou a se apoiar sobre formas mistas de propriedade. Isso provou fornecer aos empresários direitos de propriedade mais eficazes. O Township and Village Enterprises (Programa de Empresas de Municípios e de Aldeias), que liderou o crescimento chinês na década de 1980, era de propriedade coletiva e controlado pelos governos locais. Embora essas empresas pertencessem ao Estado, os empresários receberam a proteção contra o risco de expropriação de que precisavam. Os governos locais estavam diretamente interessados nos lucros das empresas e, portanto, não tinham motivos para matar essas galinhas de ovos de ouro.

A China usou uma variedade dessas inovações; cada uma traduzindo os princípios econômicos de primeira classe para arranjos institucionais incomuns. As reformas chinesas ajudaram a proteger o setor público chinês da concorrência global ao estabelecer zonas em que as empresas estrangeiras poderiam seguir regras diferentes do resto da economia. Em vista desses desvios dos padrões ortodoxos, qualificar as reformas chinesas como neoliberais – como alguns críticos estão inclinados a fazer – distorce a realidade em vez de esclarecê-la. Se nós quiséssemos chamar isso de neoliberalismo, certamente deveríamos ser mais indulgentes com as ideias que subjazem à mais espetacular redução da pobreza na história.

Alguns podem retorquir dizendo que as inovações institucionais chinesas são puramente transitórias: o país, talvez, tenha que convergir para um modelo de instituições ocidentais para apoiar o seu crescimento econômico. Mas essa maneira de pensar negligencia a diversidade dos arranjos capitalistas que ainda prevalecem nas economias avançadas, apesar da relativa homogeneidade de nossos discursos políticos.

Um roteiro vazio

O que são, afinal, as instituições ocidentais? O peso do setor público varia muito nos países da OCDE, de um terço do PIB na Coreia do Sul para quase 60% na Finlândia. Na Islândia, 86% dos trabalhadores são membros de uma organização sindical, em comparação com apenas 16% na Suíça. Nos Estados Unidos, as empresas podem demitir trabalhadores quase à vontade, enquanto a legislação trabalhista francesa sempre impôs aos empregadores várias etapas preliminares. Os mercados de ações representam hoje quase uma vez e meia o PIB dos Estados Unidos, ao passo que na Alemanha, sua importância é três vezes menor, cerca de 50% do PIB.

A ideia de que qualquer um desses modelos de tributação, de direito do trabalho ou de organização financeira pode ser intrinsecamente superior aos demais é desmentida pela alternância de períodos de prosperidade e recessão experimentados por essas economias desenvolvidas em décadas recentes. Os Estados Unidos passaram por vários períodos de turbulências em que suas instituições econômicas foram julgadas inferiores às da Alemanha, Japão, China e hoje, provavelmente, da Alemanha novamente. Certamente, níveis comparáveis de riqueza e produtividade podem ser alcançados através de modelos muito diferentes de capitalismo. Poderíamos até dar um passo adiante: todos esses modelos ainda estão longe de esgotar o campo do que poderia ser possível e desejável no futuro.

O economista em visita da nossa experiência de pensamento conhece todos esses exemplos, ele sabe que os princípios que enunciou precisam ser alimentados por soluções institucionais antes de se tornarem operacionais. Direitos de propriedade? Sim, mas como? Política monetária sólida? Sim, mas como? Talvez seja mais fácil criticar esta lista de princípios por seu vazio do que denunciá-la como um programa neoliberal.

Mesmo assim, esses princípios não são inteiramente desprovidos de conteúdo. A China e, de um modo geral, todos os países que conseguiram se desenvolver rapidamente, demonstram a utilidade desses princípios uma vez adaptados ao contexto local. Por outro lado, muitas economias se voltaram contra os líderes políticos que tentaram violar esses princípios. Não precisamos ir muito longe – basta olhar para os nossos regimes populistas da América Latina ou para os regimes comunistas da Europa Oriental para apreciar a relevância de uma política monetária sólida, de uma sustentabilidade fiscal e de incentivos privados.

Certamente, a economia não pode ser reduzida a uma lista de princípios abstratos, em grande parte do senso comum. Grande parte do trabalho dos economistas consiste em desenvolver modelos estilizados de como funcionam as economias reais e, em seguida, confrontar esses modelos com a realidade. Os economistas, portanto, tendem a descrever seu trabalho como um aperfeiçoamento progressivo de sua compreensão do mundo: seus modelos devem se tornar cada vez mais eficientes à medida que são testados e revisados. Na realidade, os progressos na economia acontecem de forma diferente.

Um modelo, mas qual modelo?

Os economistas estudam uma realidade social que é totalmente diferente do universo físico dos cientistas naturais. Ela é inteiramente criada pelo homem, altamente maleável e opera de acordo com regras que variam ao longo do tempo e do espaço. A economia não avança, portanto, pela escolha do modelo certo ou da teoria certa para responder às questões que se podem fazer, mas melhorando a nossa compreensão da diversidade de relações causais. O neoliberalismo e seus remédios habituais – sempre mais mercados, sempre menos Estado – são de fato uma perversão da economia dominante. Os bons economistas sabem que a resposta correta para qualquer questão em economia é: “depende”.

Um aumento do salário mínimo é prejudicial ao emprego? Sim, se o mercado de trabalho é competitivo e os empregadores não têm controle sobre os salários que devem pagar para atrais os trabalhadores; mas não o contrário. A liberalização do comércio incentiva o crescimento econômico? Sim, se melhorar a rentabilidade das indústrias onde a maior parte da inovação e investimento ocorre; mas não o contrário. Um aumento nas despesas públicas melhora o emprego? Sim, se não há tensões na economia e os salários não aumentam; mas não o contrário. Uma situação de monopólio afeta a inovação? Sim e não: dependendo de uma série de condições do mercado.

Na economia, os novos modelos raramente suplantam os antigos. Os modelos do mercado concorrencial que remontam a Adam Smith foram modificados ao longo do tempo pela inclusão – mais ou menos cronologicamente – de questões de monopólio, de externalidades, de economias de escala, de incompletudes e de assimetria de informações, de comportamento irracional dos agentes e muitos outros aspectos do mundo real. No entanto, os modelos antigos permaneceram úteis. Para entender o funcionamento dos mercados, é necessário visualizá-los através de diferentes prismas em diferentes momentos.

Um bom economista é um bom cartógrafo

Talvez a analogia mais apropriada para essa situação seja encontrada nos mapas. Assim como os modelos econômicos, os mapas são representações altamente estilizadas da realidade. Eles são úteis precisamente porque abstraem muitos detalhes do mundo real que poderiam dificultar a compreensão. Mapas em grande escala realistas seriam artefatos irremediavelmente impraticáveis, como descreveu Jorge Luis Borges em uma breve história que continua a ser a melhor e mais sucinta explicação do método científico. Mas essa abstração também implica que precisamos de mapas diferentes dependendo das nossas necessidades de viagem. Se, por exemplo, eu ando de bicicleta, preciso de um mapa que indica as trilhas para bicicletas. Se eu decido ir a pé, escolho um mapa que mostra as trilhas para caminhadas. Se uma nova linha de metrô for construída, eu certamente preciso de um novo mapa do metrô, sem precisar descartar todos os mapas antigos que eu tenho.

Os economistas são excelentes na elaboração de mapas, mas não são bons o suficiente para escolher o que é o mais adequado para a tarefa em questão. Quando são confrontados com questões de política econômica – como aquelas a que o economista que visita esse país desconhecido teve que enfrentar –, muitos economistas recorrem a modelos de referência que privilegiam o “laissez-faire”. As respostas automáticas e a arrogância substituem a riqueza das discussões que podem ocorrer em um seminário. John Maynard Keynes definiu a economia como “a ciência que pensa em termos de modelos combinada com a arte de escolher os modelos relevantes para o mundo contemporâneo”. Os economistas normalmente têm dificuldades com a parte “artística” da disciplina.

Eu também ilustrei isso com uma parábola: um jornalista telefona para um professor de economia para perguntar-lhe se, do seu ponto de vista, o livre comércio é uma coisa boa. O professor responde com entusiasmo a ele afirmativamente. Fazendo-se passar por estudante, o jornalista participa, em seguida, do seminário de economia internacional ministrado pelo mesmo professor em uma universidade. Ele faz a mesma pergunta: “O livre comércio é benéfico?” Desta vez, o professor parece envergonhado: “O que você quer dizer com ‘benéfico’? E benéfico para quem?”, pergunta-lhe.

O professor mergulha, então, em uma exaustiva explicação, para finalmente concluir com um balanço muito mais matizado: “Se a longa lista de premissas que eu acabo de fazer for satisfatória e assumindo que podemos tributar os beneficiários para compensar os perdedores, então o livre comércio pode potencialmente melhorar o bem-estar de todos”. Se estiver bem humorado, o professor pode até acrescentar que o impacto do livre comércio sobre o crescimento a longo prazo de uma economia não é fácil de determinar e que depende também de uma série de condições.

Os guardiões das joias

O professor que o jornalista descobriu durante este seminário é, portanto, bem diferente daquele com quem ele pôde conversar por telefone. No primeiro encontro, ele estava muito confiante e não tinha reservas sobre a política a ser adotada. Só haveria um modelo a ter em conta, pelo menos no debate público; uma única resposta correta, independentemente do contexto. Curiosamente, o professor acredita que os conhecimentos que ele transmite aos seus alunos não são adequados – são inclusive perigosos – para o público em geral. Por quê?

Os fundamentos de tal comportamento estão profundamente ancorados na sociologia e na cultura da profissão de economista. Mas uma das principais razões reside na ânsia deste último de apresentar as joias da coroa da profissão como sendo irrepreensíveis – a eficiência dos mercados, a mão invisível, as vantagens comparativas – para protegê-las dos ataques de bárbaros guiados pelo seu interesse pessoal, nomeadamente os protecionistas. Infelizmente, esses economistas tendem a ignorar os bárbaros do lado contrário: os financistas e as multinacionais, cujos motivos não são mais puros e que estão tão prontos quanto os protecionistas para sequestrar essas ideias para seu próprio benefício.

Por conseguinte, a contribuição dos economistas para o debate público é, muitas vezes, tendenciosa em uma direção: a favor de mais comércio, mais finanças e menos governo. É por esta razão que os economistas desenvolveram uma reputação de defensores incondicionais do neoliberalismo, mesmo que a economia dominante esteja longe de ser um hino à glória do laissez-faire. Os economistas que dão rédeas soltas ao seu entusiasmo pelos mercados liberalizados não estão sendo de fato muito fiéis à sua própria disciplina.

Repensando a mundialização

Como, então, podemos pensar na mundialização se quisermos liberá-la das garras das práticas neoliberais? Devemos começar pela compreensão do potencial positivo dos mercados globalizados. O acesso aos mercados internacionais de bens, de tecnologias e de capital tem desempenhado um papel importante em praticamente todos os milagres econômicos do nosso tempo. A China é o lembrete mais recente e poderoso desta verdade histórica; mas não é o único caso. Antes da China, milagres semelhantes ocorreram na Coreia do Sul, Taiwan, Japão e vários países não-asiáticos, como as Ilhas Maurício. Todos esses países abraçaram a mundialização em vez de virarem as costas para ela, e eles se beneficiaram generosamente.

Os defensores da ordem econômica existente sempre acabam invocando esses exemplos quando a mundialização é questionada. O que eles esquecem de dizer, no entanto, é que a maioria desses países se juntou à economia mundial violando restrições neoliberais. A Coreia do Sul e Taiwan, por exemplo, subsidiaram fortemente seus exportadores, respectivamente, através do sistema financeiro e concedendo-lhes vantagens fiscais. E, em geral, todos esses países levantaram a maior parte de suas barreiras à importação muito depois do seu crescimento econômico ter decolado.

Mas nenhum – com a única exceção do Chile de Pinochet na década de 1980 – seguiu a recomendação neoliberal de uma rápida abertura às importações. A experiência neoliberal do Chile produziu a pior crise econômica da América Latina. Embora as circunstâncias sejam diferentes de país para país, em todos os casos os governos desempenharam um papel ativo na reestruturação de suas economias e protegendo-as de um ambiente externo altamente volátil. As políticas industriais, as restrições aos fluxos de capital e os controles cambiais – tudo proibido pela cartilha neoliberal – tornaram-se comuns.

Por outro lado, os países que se limitaram ao modelo de mundialização neoliberal ficaram muito desapontados. O México fornece um exemplo particularmente triste. Após uma série de crises macroeconômicas em meados da década de 1990, o México adotou políticas macroeconômicas ortodoxas, liberalizou fortemente a sua economia, desregulou o seu sistema financeiro, reduziu drasticamente suas barreiras à importação e assinou o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA). Essas políticas permitiram alguma estabilidade macroeconômica e um aumento significativo no comércio externo e no investimento interno. Mas, onde mais importa – a produtividade geral e o crescimento econômico –, o experimento foi um fracasso. Desde que o México empreendeu essas reformas, sua produtividade geral estagnou e sua economia tem sido contraproducente, mesmo diante dos padrões relativamente pouco exigentes da América Latina.

Não existe um plano único

Estes resultados não são surpreendentes do ponto de vista de uma abordagem econômica lógica. No entanto, há ainda uma outra manifestação da necessidade de que as políticas econômicas sejam ajustadas às deficiências enfrentadas por cada mercado e adaptadas às especificidades nacionais de cada país. Não existe nenhum plano que seja adequado para todos os lugares e de maneira indiferente.

Como atesta o Manifesto de Peters (1982), a definição de neoliberalismo evoluiu consideravelmente ao longo do tempo, ao mesmo tempo em que a conotação do termo tornou-se cada vez mais radical em sua relação com a desregulamentação, a financeirização ou a mundialização. Mas há um fio comum que liga as diferentes versões do neoliberalismo: a importância atribuída ao crescimento econômico. Em 1982, Peters escreveu que essa ênfase era justificada por causa do papel vital que o crescimento desempenha na consecução de todos os nossos objetivos sociais e políticos – comunidade, democracia e prosperidade. O empreendedorismo, o investimento privado e a remoção de todos os obstáculos (como por exemplo, uma excessiva regulamentação) que impedem o caminho são todos instrumentos necessários para o crescimento econômico. Se um manifesto neoliberal semelhante fosse escrito hoje, provavelmente avançaria no mesmo ponto.

No entanto, os críticos do neoliberalismo muitas vezes apontam que essa ênfase no crescimento degrada e sacrifica outros importantes valores sociais e políticos, como a igualdade, a inclusão social, a deliberação democrática ou a justiça. Valores cuja realização é, no entanto, essencial e que, em certos contextos, são mais importantes do que os outros. No entanto, nem sempre podem ser alcançados por meio de políticas econômicas tecnocráticas; a política tem um papel central a desempenhar.

Os neoliberais certamente não estão errados quando argumentam que esses ideais preciosos são mais propensos a ser alcançados em uma economia vibrante, forte e em expansão. No entanto, eles se enganam quando pensam que existe uma receita única e universal para melhorar o desempenho econômico, à qual eles teriam acesso. O erro fatal do neoliberalismo é que ele se engana sobre o que é a economia em si. Este deve ser rejeitado em seus próprios termos pela simples e boa razão de que é uma economia ruim.

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