Especialista diz que abuso de poder é a raiz da crise de abusos sexuais na Igreja

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27 Abril 2018

O instituto mais influente da Igreja sobre a questão dos abusos sexuais é provavelmente o Centro de Proteção à Criança na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.

Seu presidente, o jesuíta Hans Zollner, é membro da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores do Vaticano, criado pelo Papa Francisco em 2014 para aconselhá-lo sobre as políticas de proteção à criança.

O centro trabalha em relação estreita com o Vaticano para desenvolver políticas para lidar com casos de abuso sexual e oferece vários workshops para líderes religiosos do mundo todo.

É por isso que Dalla parte dei piccoli [Da parte dos pequenos, em tradução livre] certamente será discutido depois de seu lançamento, em maio.

O livro foi escrito por Angela Rinaldi, uma italiana de 28 anos que é assistente de pesquisa do Centro para a Proteção de Menores, que argumenta que o problema do abuso sexual na Igreja "é uma questão de abuso de poder".

Rinaldi trabalha no CPM desde 2014 e também é doutoranda na Universidade Gregoriana, onde estuda sobre políticas para menores desacompanhados que foram forçados a migrar para a Itália.

Depois de estudar os escândalos de abuso das últimas décadas, ela afirma que se encontra desvio de poder tanto no próprio abusador sexual como pessoa, que manipula e insulta as vítimas, quanto na Igreja como instituição, por tentar proteger sua imagem antes de qualquer coisa, em vez de cuidar dos que foram abusados.

Para Rinaldi, o fato de o Papa Bento XVI ter adotado regras universais para lidar com casos de abuso foi um divisor de águas. Ela reconhece, ainda, as medidas tomadas pelo Papa Francisco, como a criação da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores.

No entanto, sua impaciência ao responder a uma recente crise no Chile é, para ela, uma lição para o futuro.

"A Igreja precisa construir confiança e responsabilidade. O Papa Francisco prega uma Igreja responsável que admita seus erros”, relatou ao Crux.

A entrevista é de Filipe Domingues, publicada por Crux, 26-04-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla

Eis a entrevista.

Como surgiu a ideia de escrever este livro?

Escrevi sobre abuso infantil na minha dissertação de mestrado. Meu orientador, o padre Rocco D'Ambrosio, ficou satisfeito com o resultado e conseguimos publicar o trabalho. Não é um estudo experimental, mas sim reflexivo. Na Itália, as publicações geralmente se concentram em mapear os episódios, os pequenos escândalos que surgiram no país. Eu colaboro com o Centro para a Proteção de Menores desde 2013 e, portanto, lido com o tema do abuso infantil há alguns anos. Digamos que depois de uma experiência profissional na Universidade La Sapienza, onde me formei em Ciências do Desenvolvimento e Cooperação Internacional, eu me encontrei na intersecção entre a questão da proteção e da segurança dos menores e o trabalho no CPM.

Seu trabalho é uma análise ética do problema?

A reflexão do livro é ética, mais do que qualquer outra coisa. Falamos de um fenômeno social que não diz respeito apenas à Igreja, mas também a afeta. Vários autores pensam que a questão do abuso a menores deve ser estudada em sua relação com o abuso de poder, antes mesmo de ser considerada do ponto de vista físico ou sexual ou como mero problema moral.

Trata-se de uma base comum em todas as experiências. Outra questão ética diz respeito à formação dos sacerdotes.  Estatisticamente, a maioria dos casos ocorreu entre os anos 50 e 80. Nos anos 2000, a maioria dos casos que vieram à tona eram de anos anteriores. O fenômeno seguiu uma tendência, diminuindo o número de casos. É claro que depois de uma série de encobrimentos realizados pelas autoridades da Igreja, que tentaram esconder o que aconteceu, o escândalo veio a público em Boston e, a partir daí, no mundo todo.

A senhora critica o modo como a Igreja lidou com casos de abuso sexual e ao mesmo tempo reconhece as medidas que foram tomadas recentemente, certo?

Sim. Justamente porque é uma questão ética, vai além de qualquer preconceito. É impossível julgar um fenômeno a partir de preconceitos. Quando falamos de violência contra menores, falamos sobre a parcela mais vulnerável da sociedade. Mas o padre, um homem de Deus, também é um ser humano. Ele tem uma identidade sexual, como todos nós. Existem distorções na opinião pública: como um padre não pode abusar de ninguém, todos os padres podem ser considerados culpados ou abusadores em potencial. Este preconceito negativo anula a análise. Eu queria abordar o problema sem muita distorção, partindo dos princípios.

Mas criticou o abuso de poder da Igreja...

O fenômeno existe, e se a Igreja, principalmente até os anos 2000, respondeu incorretamente à prevenção ou à resolução do problema, precisamos sinalizar isso. Ao mesmo tempo, precisamos nos lembrar de qual é a posição dos outros sacerdotes e do povo de Deus, porque nem todos são abusadores na Igreja, nem todos são pedófilos, efebófilos, e assim por diante. Devem surgir críticas construtivas, para garantir, pelo menos, que o problema será abordado de forma correta.

Desde quando podemos dizer que a Igreja mudou de resposta? Desde o escândalo de 'Spotlight'?

Não tenho certeza... logo após o Spotlight, o escândalo dos Legionários de Cristo veio à tona. Foi aí que começou uma reação, mas, na minha opinião, a mudança mais importante veio no pontificado do Papa Bento XVI, ao atualizar as regras sobre delicta graviora [os crimes mais graves na celebração dos sacramentos ou contra a moralidade]. Eles já existiam no papado de João Paulo II, mas o caminho tomado pelo Papa Bento XVI os tornou irreversíveis.

Até 2010, a reação da Igreja tinha como objetivo resolver os problemas de determinados países. Depois, com as novas regras e a carta de Bento XVI ao povo da Irlanda, tornou-se realmente uma resposta universal. Isso também fica evidente na carta para as conferências episcopais escrita pela Congregação para a Doutrina da Fé, à qual nem todas as conferências responderam até hoje. Quem iniciou a política de "tolerância zero" foi o Papa Bento XVI, algo que muitas vezes não se reflete na opinião pública.

Seu livro diz que o problema da Igreja era priorizar a proteção da imagem da instituição a proteger as vítimas. Esta é a sua maior crítica?

Sim. Isso é fundamental: a dualidade entre a atitude de defender o nome da Igreja e defender a vítima. Certamente, no Centro para a Proteção de Menores, isso se encontra no contexto da prevenção. Em primeiro lugar, eticamente falando, é preciso dizer que o problema do abuso sexual na Igreja é uma questão de abuso de poder. O agressor, nesse caso, comete um abuso que é espiritual, pastoral e institucional. E depois há o abuso cometido por toda a instituição eclesiástica, porque a pessoa abusada vê a Igreja na pessoa do sacerdote. Antes do abuso físico, há um abuso de poder.

Então a raiz do problema é o abuso de poder?

Quero dizer que há um abuso que vem antes mesmo do abuso sexual, que é o abuso de poder pelo abusador e pela instituição que o encobre. O abusador deve ser preso e julgado não apenas por um tribunal eclesiástico, mas também pelo civil.

Por que esse problema causa escândalos? Porque é necessário. Se Cristo não tivesse deixado a Cruz para ser salvo por Pôncio Pilatos - que, num certo sentido, tinha o poder de fazê-lo - é porque ele queria defender a verdade, o Reino de Deus, isto é, Ele mesmo. A Igreja representa Cristo no mundo. Se a Igreja encobre o abusador quando se denuncia um abuso, ou chega a pagar pelo silêncio das vítimas, significa que prioriza a 'raison d'état' ao abuso e à pessoa.

Nossa religião é bonita porque é humana. Quando se exclui a pessoa, se exclui Cristo. Se Cristo desaparece, a mensagem cristã também desaparece.

É uma concepção errada de poder?

Com certeza. Ao conceber o sacerdote como quem dita regras que devem ser respeitadas, mas sem compreender seu significado, o abuso de poder certamente vai acontecer. No caso do abuso sexual, o abusador também manipula quando diz para a vítima não se preocupar, ficar calma.

Na cultura católica, quando alguém se acostuma a respeitar o padre da paróquia só porque é o padre da paróquia, ou a obedecer o padre só por causa da sua posição, quando ele disser a um jovem: "Vamos fazer certas coisas, Deus não vai se importar", é impossível dizer não. E esse padre também se engana na concepção de sua posição. A formação é pode frear isso. Em termos éticos, o que falta é formação humana.

Pessoas comuns muitas vezes associam o problema dos abusos com o sacerdócio celibatário. De acordo com o seu livro, não é uma associação justa.

Muitas pessoas já me disseram: "é bom para os padres se casarem, porque pelo menos assim eles liberam a sexualidade no relacionamento conjugal". Na realidade, não. O celibato é um dom, diz a Igreja. Portanto, deve ser tratado como tal, e nós precisamos educar a pessoa que aceita esta renúncia, que é o celibato. Nós precisamos treinar essa pessoa para que consiga aceitar de forma positiva. A vida de todos é feita de renúncias. Os celibatários, com boa formação humana, podem superar essa renúncia de ter relações sexuais com segurança.

A senhora escreveu que a maioria dos abusadores não é celibatária...

De acordo com a John Jay College (em Nova York), os maiores casos de abuso sexual dos Estados Unidos saíram dos times esportivos e também de igrejas onde os pastores podem casar... embora tenha sido manchada por este crime e pecado, a Igreja Católica continua sendo, em muitos lugares, um dos ambientes mais seguros para os menores. Por isso, é preconceito dizer que o celibato impede a maturação da sexualidade na sua forma mais natural. É uma visão distorcida do público.

Então como deve ser a formação de sacerdotes?

A base é a formação humana, ou seja, formar a pessoa como um todo. Abranger formação espiritual, acadêmica, apostólica, psicológica, e assim por diante. Em certo sentido, é redescobrir em si a imagem de Deus. A contínua formação humana permite que os sacerdotes adquiram todo o conhecimento e cultivem a vida interior necessária para refletir sobre sua própria vida, natureza e felicidade.

Assim, não se criam concepções de poder que acabariam em relações distorcidas. Além disso, os seminários que têm políticas sólidas de seleção de candidatos, baseadas em termos éticos, conseguem evitar 'futuros sacerdotes' que nunca vão se tornar padres ou que, se o fizerem, vão provocar estragos. O acompanhamento psicológico é fundamental para os que têm dúvidas sobre sua vocação, além do espiritual.

Como a senhora vê o comportamento do Papa Francisco? Ele criou a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, mas, no caso do Chile, reconhece que estava errado em sua primeira resposta ao problema.

A criação da comissão é um grande sinal. De 2014 até hoje eles realmente trabalharam muito. É um grande sinal porque o sustenta o fato de que a resposta da Igreja é universal. E agora a comissão é ainda mais universal.

Há mais diversidade entre seus representantes, e cada realidade é diferente. Porém, é possível dizer que o Papa Francisco também é humano e, como tal, comete erros. Graças a Deus temos um Papa que admite isso. Falando de forma direta - 'Eu não estava bem informado' [sobre os casos no Chile] -, deixa claro que vai por um caminho enquanto muitos na Igreja vão por outro. Talvez alguns estejam trabalhando contra ele.

Também é verdade que Francisco fez duras críticas aos abusadores...

É como se ele tivesse entrado na abordagem de 'tolerância zero' de Bento XVI e, neste sentido, vemos o Papa Francisco institucional. No entanto, ao mesmo tempo, no caso chileno, o uso indevido do gabinete por parte da igreja local é evidente. E, talvez, a face menos formal do Papa apareça de forma um tanto amplificada.

A senhora está dizendo que, neste caso, ele foi menos institucional em sua resposta. Isso é um problema?

Claramente, as pessoas recebem uma mensagem diferente do que ele realmente pensa, numa direção diferente do rumo que ele está tomando. Quando fala de tolerância zero e depois diz que 'não há provas' de um certo abuso, as pessoas ficam confusas. A Igreja precisa construir confiança e responsabilidade. O Papa Francisco prega uma Igreja responsável que admita seus erros. Posso dizer que, em geral, a postura do Papa Francisco é positiva. Para além da questão do Chile, as pessoas percebem que ele é duro e firme na política de 'tolerância zero'. Percebe-se do lado de fora que ele é rigoroso nisso.

Então o que falta na Igreja?

Trabalhar com as vítimas para restaurar sua fé, restaurar seu relacionamento com Deus, com certeza.
No entanto, também precisamos trabalhar com os abusadores, em termos psicológicos, humanos, espirituais, para evitar novos abusos. É paradoxal, mas certamente há pecadores na Igreja. O trabalho que precisa ser feito com a vítima é diferente do que deve ser feito com o abusador. Não é uma solução útil trancafiar o abusador num convento ou deixá-lo sozinho até morrer. E depois? A Igreja deve continuar sua autorreflexão sobre isso.

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