O declínio do cristianismo: possibilidade de um novo começo para a fé cristã? Artigo de Francesco Cosentino

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12 Julho 2021

 

"Retornar à centralidade do Evangelho nos oferece a possibilidade de nos libertarmos do conservadorismo de um cristianismo de normas e regras, de fórmulas estéreis e áridas, de um sobrenatural explicado de modo intelectual ou apresentado como separado da vida. Hoje é necessário que as pessoas sejam novamente alcançadas pelo frescor surpreendente do Evangelho, por uma proclamação cristã que, antes das definições, desperta com inquietude as perguntas sobre Deus e sobre a vida humana", afirma Francesco Cosentino, teólogo, professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma e trabalha na Secretaria de Estado do Vaticano.

A tradução é de Luisa Rabolini.

Francesco Cosentino proferirá a conferência "O declínio do cristianismo: possibilidade de um novo começo" no dia de hoje, 12-07-2021. A conferência faz parte do XX Simpósio Internacional IHU. A (I) Relevância pública do cristianismo num mundo em transição.

 

Francesco Cosentino concluiu seu doutorado em Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana com a tese: “Oltre la ‘morte di Dio’: cristianesimo, immaginazione, immagini di Dio. Verso una risposta teologica all'ateismo contemporaneo” (Em tradução livre: "Além da" morte de Deus ": Cristianismo, imaginação, imagens de Deus. Para uma resposta teológica ao ateísmo contemporâneo", que foi publicada posteriormente.

Nos anos seguintes trabalhou no desenvolvimento do tema da indiferença religiosa e da crise do cristianismo na pós-modernidade, ministrando cursos sobre o significado teológico da secularização e sobre os novos desafios da evangelização. Ele publicou vários artigos e livros sobre esses tópicos, incluindo:


- Immaginare Dio. Provocazioni postmoderne al cristianesimo, (Cittadella 2010); (Em tradução livre: Imaginar Deus. Provocação pós-moderna ao cristianismo);

- Sui sentieri di Dio. Mappe della nuova evangelizzazione (San Paolo 2012) (Em tradução livre: Nas trilhas de Deus. Mapas da nova evangelização); 

- “Incredulità”, (Cittadella 2017);

- Lievito in pasta. Evangelizzare la città postmoderna (con Domenico Cravero), (EMP 2018) (Fermento na massa. Evangelizando a cidade pós-moderna.)  

Recentemente, o tema das falsas imagens de Deus em relação à crise do cristianismo foi tratado em um pequeno livro mais popular, que teve grande ressonância: "Non è quel che credi. Liberarsi dalle false immagini di Dio" (Dehoniane 2019) ("Não é isso que você acredita. Liberte-se das falsas imagens de Deus"). Seu último texto trata da relação entre crise e fé cristã, a partir da pandemia e leva o título "Quando finisce la notte. Credere dopo la crisi" (Dehoniane 2021). ("Quando a noite acabar. Acreditar depois da crise").

 

Eis o artigo.

 

Em suas famosas cartas escritas na prisão, Dietrich Bonhoeffer fotografou a crise do cristianismo, em um mundo atravessado pelas grandes mutações da modernidade e da secularização, com estas palavras:

 

"O que me preocupa continuamente é a questão do que realmente é para nós, hoje, o Cristianismo, ou mesmo quem é Cristo. Já passou o tempo em que isso podia ser dito aos homens por meio de palavras - sejam elas teológicas ou piedosas -; assim como já passou o tempo da interioridade e da consciência, ou seja, o tempo da religião em geral. Estamos caminhando para um tempo completamente antirreligioso; os homens, como são agora, simplesmente não podem mais ser religiosos" [1].

 

Hoje, em muitas partes do mundo, assistimos a um declínio, quase uma decomposição, da experiência cristã, nas formas em que a conhecemos e transmitimos durante séculos. Nossas comunidades eclesiais estão passando por uma crise profunda; muitas pessoas sentem dificuldades para integrar a palavra libertadora do Evangelho nos desafios cotidianos de sua existência, com o risco de que o poder da fé se reduza à fraqueza de um crer superficial, puramente religioso ou folclórico; muitas pessoas abandonaram a fé, não por causa de uma ideia e de um pensamento contrário e hostil, mas por apatia e indiferença à indagação sobre Deus; outras pessoas se afastaram da Igreja, embora conservando um certo sentido de Deus; os bancos das nossas Igrejas estão cada vez mais vazios e em tantos lugares do mundo algumas paróquias são suprimidas; as vocações ao sacerdócio ordenado, em algumas regiões do mundo, escasseiam a ponto de ser possível que em algumas décadas não haverá mais sacerdotes.

 

E apesar disso - queremos refletir sobre isso - mais importante do que a crise é sempre a indagação sobre ela. As crises simplesmente aparecem, tanto em nossa vida como em nosso caminho de fé pessoal e eclesial. Não só isso: a crise, além de inevitável, é sempre um sinal de vitalidade. Significa, paradoxalmente, que a fé cristã está viva, tão presente no mundo e na história a ponto de ser ferida por ela, ser pressionada por provocações e desafios sempre novos ou mesmo ser contestada ou rejeitada. A ausência de crise seria o sinal de um verdadeiro declínio do Cristianismo, ao passo que a presença da crise, como nos ensinam as Escrituras e em particular os Evangelhos, é sempre uma grande oportunidade de "realizar uma passagem" para a outra margem, para o que ainda não foi explorado, para aquele além do cristianismo que, por medo ou por conveniência, ainda não quisemos descobrir. As grandes crises também são sempre grandes convites para a mudança.

 

Por isso, somos chamados a saber enfrentar este tempo, saber habitar o tempo com aquela preciosa indicação que o Papa Francisco nos deu na Evangelii gaudium: “animo todas as comunidades a ‘uma capacidade sempre vigilante de estudar os sinais dos tempos’” (EG no. 51). A crise, aquela espiritual e eclesial como qualquer outra crise, nos desestabiliza, isto é, tira a estabilidade de nossas seguranças simplesmente para nos dizer que Deus, a história, a própria vida são sempre maiores do que podemos perceber, conhecer e imaginar. Há um Além para o qual caminhamos e que exige a capacidade vigilante de escrutinar os sinais do tempo e dos tempos, a criatividade para abrir novos caminhos, para cavar poços no deserto.

 

Em sua famosa obra Caminhos de Floresta, o filósofo Martin Heidegger afirma: "Talvez se aproxime agora a noite do mundo da sua meia-noite. Talvez a era do mundo se torne completamente um tempo indigente. Por outro lado, pode ser que não, talvez ainda não, sempre ainda não, apesar da miséria incomensurável, apesar de todos os sofrimentos, apesar do sofrimento sem nome, apesar da propagação da ausência de paz, apesar da confusão crescente. [...] Estamos às vésperas de uma noite que é prelúdio para uma nova manhã?" [2].

 

Cada noite pode ser o início de um novo dia. Por isso, mais importante do que a crise é a pergunta com que nos colocamos diante dela. Como estamos enfrentando a crise? Qual é a mensagem que a crise traz consigo? Que lição podemos aprender? Estas perguntas, que nos convidam à inquietude da procura e da escuta profunda do que está ocorrendo na história e no nosso tempo, ajudam-nos a apreender uma perspectiva de fé dentro da qual podemos ler e interpretar a crise: todo declínio pode ser também um renascimento, cada crise é uma nova possibilidade de transformação e de mudança.

 

Por isso, gostaria de lhes propor esta leitura "teológica" da crise, procurando olhar de perto a crise do cristianismo, mas também aqueles caminhos que essa mesma crise nos indica como oportunidade de transformação do próprio cristianismo.

 

1.    Secularização e imaginação espiritual

 

Vivemos em uma época secular, ainda que a secularização tenha uma face diferente de acordo com os contextos: na Europa é diferente da América Latina. Nas décadas de 1960 e 1970, falar em secularização significava imediatamente referir-se ao declínio da religião e a uma sociedade que, num futuro próximo e não distante, ficaria definitivamente sem religião.

 

O paradigma da secularização, no entanto, precisa ser interpretado. Trata-se, de fato, de um vocábulo que é um exemplo de "grande metamorfose", ou seja, que no tempo mudou muitas vezes de significado [3]. De fato, o que foi anunciado na década de 1970, ou seja, um inexorável declínio das religiões, não aconteceu. Devido a várias circunstâncias históricas, mas sobretudo devido ao avanço das sociedades pós-modernas da incerteza, o sentido do sagrado e do religioso no cenário público do mundo está longe de desaparecer. Aliás, a desorientação e o desconforto causados pela incerteza pós-moderna despertou a busca pelo sagrado, ainda que seja principalmente de uma experiência religiosa buscada para enfrentar o esforço cotidiano da busca por identidade e de significados e, portanto, uma jornada espiritual que funciona como uma terapia psicológica, um remédio para as próprias repressões [4] ou para evitar que a rotina e o estresse possam tornar pesada a vida [5].

 

 

No entanto, o que o Cristianismo precisa é de uma leitura teológica do fenômeno, como aquela tentada pela teologia da secularização do século XX, para tentar superar o nível puramente sociológico; quero dizer que, quando falamos da crise ou declínio do Cristianismo, talvez também devido à secularização, devemos ter o cuidado de parar simplesmente nos dados numéricos ou na relevância social, pública e política da fé cristã.

 

Uma leitura sociológica é insuficiente e não pode abarcar o todo do fenômeno religioso, que continua seguindo diferentes variantes e variáveis, estritamente ligadas à interioridade da pessoa e aos caminhos da própria história e da própria vida.

 

 

A sociologia oferece uma fotografia, inclusive bastante confiável; mas não pode medir de forma precisa o desejo, a interrogação insuprimível de um “além”, que às vezes refloresce de dentro da nossa vivência.

 

É necessário, portanto, ir além do sentido "primeiro" da secularização, que lê o fenômeno na perspectiva da sociologia das religiões e, portanto, como aquele processo pelo qual o pensamento, a prática e as instituições religiosas perdem significado social [6]; este é apenas um aspecto do fenômeno, que hoje, ao contrário dos anos 1970, parece justamente superado. Na realidade, a secularização não tem a ver apenas com um dado empírico, que diz respeito à força e à visibilidade social das religiões e de suas instituições, mas com os significados mais profundos da vida das pessoas, com as imagens e os símbolos por meio dos quais desenvolvemos uma visão da nossa existência.

 

 

Charles Taylor, que é certamente o maior estudioso existente sobre o fenômeno, afirma que a abordagem sociológica é redutiva porque se detém no plano das mudanças visíveis da sociedade e mede a prática cristã e a relevância pública da fé, mas não consegue ir além e apreender o que a secularização produziu no mundo mais profundo da interioridade das pessoas, na sua sensibilidade espiritual. O problema não é o enfraquecimento sociocultural do cristianismo, aquele da influência religiosa na sociedade ou uma certa marginalização social e cultural de suas instituições e de sua voz; este é apenas o primeiro produto da secularização, é o aspecto, por assim dizer, político. O verdadeiro tema a ser apreendido é que as mudanças decorrentes do progresso moderno, da urbanização, da mudança dos ritmos de vida, do advento de novas liberdades modernas e pós-modernas, mudaram radicalmente a forma de interpretar a vida e o estar no mundo, também mudando efetivamente o modo e a forma de relação com Deus e de filiação religiosa. Uma certa linguagem, um certo universo religioso aos poucos foi aparecendo, cada vez mais, como um velho mundo tradicional que nada mais tem a dizer e, portanto, é irrelevante. Não é importante para a vida. De acordo com Taylor, então, são as velhas linguagens da fé que foram ultrapassadas e não a fé em geral. Isso significa que a secularização mudou as motivações para o assentimento à fé, a própria possibilidade de crer:

 

“precisamos nos concentrar nas condições de fé. Aqui, a passagem para a secularização consiste, entre outras coisas, na transição de uma sociedade em que a fé em Deus era incontestada e, aliás, não problemática, para outra em que é considerada como uma opção entre outras, e muitas vezes não como a mais fácil a abraçar" [7].

 

O que está em crise e determina a crise de relevância do Cristianismo é sobretudo a mudança nas condições de possibilidade do crer, devido à secularização. Como afirma Michael Paul Gallagher: “O combate se transferiu para uma profundidade muito maior, invadindo o terreno da disposição humana para a fé e envolvendo o nível existencial” [8]. Em outras palavras, o fenômeno diz respeito a um aspecto ainda muito negligenciado inclusive na reflexão teológica, que é a imaginação espiritual. A indiferença ao problema de Deus e o abandono cada vez mais massivo da prática religiosa dizem respeito a uma "ferida" da imaginação: hoje a secularização restringe o nosso desejo e apequena o nosso eu, condicionando o nosso imaginário interior, isto é, a nossa forma de ser e de pensar, a nossa interpretação da vida, os desejos que cultivamos e as esperanças que acalentamos.

 

 

A visão de vida inspirada na secularização tem a ver com a forma como as pessoas imaginam a si mesmas, à sua existência, à sua relação com os outros, com o mundo e com o que nos transcende. Isso tem a ver com o imaginário simbólico, cultural e espiritual do ser humano, ou seja, com o modo pessoal de ser, de pensar, de interpretar a vida, de orientar em um sentido ou outro a busca profunda de significado da existência. Muitas pessoas deixaram de acreditar ou sua fé se arrefeceu e se reduziu a um costume de circunstâncias, porque as linguagens e práticas da fé não mais respondem às suas esperanças mais profundas; mas, ao mesmo tempo, as pessoas, fechadas no estreito horizonte da secularização, alimentam suas esperanças e desejos de forma "diminuída": o teólogo alemão Metz fala de "secularização da consciência", existe uma prisão que impede as pessoas de ter um contato real consigo mesmas e as impele sempre para o exterior, para a compulsividade do consumismo, para uma vida fragmentada e insatisfeita, para uma impetuosa aceleração que não permite mais visões meditadas sobre a vida; e, assim, o princípio da mercadoria de troca já atingiu as bases da consciência humana, esvaziando o homem de sonhos, desejos e esperanças e tornando-o um analfabeto feliz e adaptado à rotina [9]. Isso não mais gera uma batalha entre fé e ateísmo, mas, mais sutilmente, a perda da capacidade de se reconhecer e, consequentemente, de se abrir a Deus e a um sentido espiritual da vida [10].

 

2.    Uma crise "providencial"?

 

Como mencionamos no início, no entanto, toda grande crise também pode representar uma grande oportunidade de mudança. A crise é um sinal de alarme, uma voz inquieta contra a ilusão de que tudo continua a correr bem simplesmente por repetir as mesmas coisas de sempre.

 

As crises surgem, tanto na nossa vida como na Igreja, para evitar que nos aconteça o pior: isto é, para evitar que mesmo a surpreendente viagem de fé e a paixão pelo Evangelho se tornem um hábito desgastado, uma rotina, algo que se arrasta e vai se apagando. E então são o Evangelho e a própria realidade da vida, que muitas vezes nos obrigam a parar e repensar; a vida nos coloca diante de novos desafios, nos apresenta questionamentos, às vezes nos pede para entrar na escuridão, para sair mais purificados e mudados. Estes são os lugares de passagem, os pontos cruciais, os espaços nos quais a nossa existência pode mudar, crescer, nos transformar. Sem crise não pode haver nenhum crescimento nem transformação.

 

 

Devemos aceitar e ler a crise do cristianismo na lógica evangélica de "perder a própria vida", que aqui significa renunciar a si mesmos, como tivemos nestas décadas de interpretar a fé, às linguagens que a representaram no mundo, à forma eclesial que a sustentou. Perder toda essa vida, morrer como um grão de trigo na terra, para dar vida a algo novo, na escuta do Espírito. Nesse sentido, como afirma o Cardeal Kasper,

 

a palavra "crise" tem apenas um som negativo para a consciência média. Crise de fé aqui significa apenas ruína da fé. No sentido originário, entretanto, crise significa situação de decisão. Em uma situação crítica, as estruturas e formas dadas até agora não são mais óbvias. E com isso, espaço é dado à liberdade e à possibilidade de ação. O futuro assim se torna aberto. É por isso que uma crise pode levar tanto à ruína quanto pode se tornar um kairòs [11].

 

Como nos lembrou o Papa Francisco, a crise “é uma ocasião propícia para uma breve reflexão sobre o significado da crise, que pode ajudar a todos”. Também do ponto de vista da vida espiritual e eclesial, somos chamados a nos perguntar: a crise pode ser um momento providencial? Que lição podemos aprender? Qual é a mensagem a ser acolhida neste declínio do Cristianismo? E se esse fim pudesse vir a ser o começo de algo novo, de uma nova figura do Cristianismo?

 

3.    A crise e os desafios da mudança

 

Procuremos identificar algumas razões da irrelevância cristã e do declínio da fé, para detectar alguns desafios possíveis e uma nova figura possível de cristianismo.

 

A questão Deus.

 

Em primeiro lugar, devemos sair de uma leitura redutiva da crise, relegando-a ao âmbito sociológico, aos números, à influência sociopolítica da religião na sociedade. Na realidade, a crise hoje se tornou uma "crise de Deus". Grande número de pessoas hoje deixou de acreditar em Deus, com motivações que muitas vezes não são explícitas, mas todas teologicamente relevantes. A primeira certamente diz respeito às falsas imagens de Deus que um determinado tipo de cristianismo, com suas linguagens e práticas, difundiu por tempo demais. Para muitos Deus ainda é apresentado - numa catequese inicial e num primeiro anúncio que deveriam ser totalmente renovados - como um Deus "pré-moderno", colocado numa transcendência que "salta" a vida, a ciência e o progresso humano das coisas, a respeito da qual é preciso sempre renunciar um pouco à razão, ao pensar, à aventura da descoberta e do desenvolvimento. Um Deus para almas fracas, para espíritos medrosos e renunciantes, como diria Nietzsche. Para algumas pessoas, a fé se tornou "impossível" não por fatores "externos", mas por ter amadurecido, no curso da vida, uma imagem de Deus opressora e sufocante. Deus lhes foi apresentado como um contador severo, um juiz que castiga, um policial que exige uma moral perfeita, e assim desenvolveram uma atitude religiosa alimentada pelo medo, centrada no pecado, muitas vezes rígida, moralista ou perfeccionista.

 

Algumas dessas pessoas tiveram que se livrar de Deus para poder respirar. Diante de sua história ferida e de todas as imagens falsas de Deus produzidas pela história das religiões e do cristianismo, devemos nos perguntar: Em qual Deus continuar a crer? Reconciliar-nos com Deus, de fato, é o primeiro desafio espiritual de nossos dias. Enfim, não se pode negar que uma "crise de Deus" sempre provém da teodiceia: diante do mistério do mal, das injustiças e da violência, das feridas dos pobres, da dor inocente, retorna o grito de : Onde está Deus? Essa pergunta já interessou à teologia depois daquela página obscura da nossa história que foi Auschwitz.

 

Mas hoje, especialmente depois da pandemia que nos marcou profundamente e que fez muitas vítimas em todo o planeta, ela retorna. É uma pergunta que a teologia da América Latina tem enfrentado, oferecendo-nos um "avesso da história", isto é, convidando-nos a olhar a história da perspectiva das vítimas e não dos vencedores, imitando o olhar e o coração do Deus de Jesus Cristo, que é o Deus da compaixão pelos últimos. É necessário voltar a falar de Deus a partir das vítimas, portanto a partir do sofrimento, do mistério da dor e do mal e, sobretudo, dos sofredores e oprimidos. Precisamos daquela que o teólogo alemão Metz chama de "mística dos olhos abertos", que é a única mística cristã: não um ascetismo como fim em si mesmo, uma fuga intimista para uma religiosidade pacífica e consoladora, mas um acolhimento do mistério de Cristo crucificado e ressuscitado que se torna "memória perigosa" para o presente e que implementamos através da compaixão e da solidariedade.

 

Olhando para a Cruz de Cristo, podemos redescobrir o rosto de Deus a ser anunciado e depois traduzido no estilo da Igreja e na prática pastoral: o Deus que está do lado da derrota; o Deus compassivo que se comove, recolhe as lágrimas, desce na história para fazer-se oferta de libertação, se deixa ferir e tocar pela nossa dor. O Deus crucificado, que vem na carne de Jesus e por meio de sua morte, inaugura uma história de nova criação e de libertação em meio à história de sofrimentos de um mundo abandonado [12], e nos chama a colocar no mundo sinais de libertação e justiça para aqueles que sofrem. E então a crise de Deus pode se tornar uma grande oportunidade para fazer redescobrir seu verdadeiro rosto, como de um Deus amigo, apaixonado pela nossa vida, profundamente tocado pela nossa dor:

 

Tudo isso comporta uma verdadeira revolução. Devemos imprimir em nossos corações e transmitir aos outros uma imagem nova de Deus. Não um Deus de onipotência arbitrária e abstrata, que poderia nos libertar do mal, não o faz, e o faz apenas às vezes e em favor de alguns privilegiados, mas um Deus solidário conosco até ao sangue do seu Filho [...] Deus está no nosso mal, partilha-o, está conosco, não estamos sozinhos na insondável prova da existência. Um Deus amigo e amante, apaixonado "ao extremo" de cada ser, humilde servidor de suas criaturas [...] Um Deus que não está em nenhuma religião ou Igreja porque habita o coração de cada ser humano e acompanha cada estar em sua desgraça; um Deus que sofre na carne dos famintos e miseráveis da terra; um Deus que ama o corpo e a alma, a felicidade e o sexo; um Deus que está conosco para "buscar e salvar" o que nós arruinamos e destruímos [...] Um Deus que nos livra dos medos e desde já quer a paz e a felicidade para todos [...] Um Deus por quem cada um possa se apaixonar [13].

 

Ser Igreja de uma nova maneira

 

A segunda questão certamente diz respeito ao nosso modo, estilo, forma de ser Igreja. Muito descontentamento com o Cristianismo hoje depende da perda de autoridade e credibilidade da Igreja aos olhos de muitos de nossos contemporâneos. Não se trata apenas da questão dos escândalos, mas de uma certa dificuldade em perceber a comunidade eclesial como um espaço verdadeiramente acolhedor, onde cada um não só possa chegar com a sua própria vivência, mas também ter o direito e a liberdade de expressão, onde cada um possa encontrar o seu próprio caminho para chegar a Deus sem ter que seguir um padrão preestabelecido. A "questão Igreja" deve ser abordada por muitas frentes diferentes: há a questão das nossas estruturas, que muitas vezes se tornaram o centro da ação pastoral a ponto de sacrificar a criatividade do anúncio do Evangelho, pelo que despende-se demasiada energia e tempo para manter de pé as coisas de sempre, numa pastoral totalmente conservadora, mas sem atingir mais a vida das pessoas.

 

O cristianismo não morre; as formas e instituições cristãs são todas relativas e contextuais aos tempos: podem mudar e até morrer. A questão da celebração dos sacramentos insere-se neste contexto, com alguma preocupação pela sacramentalização massiva em detrimento da evangelização; qual paróquia é possível hoje no contexto de uma grande urbanização e de uma mobilidade da vida metropolitana perante a qual a estabilidade da ideia de paroquia resulta antiquada e ultrapassada; porque por vezes, a igreja institucional oferece de si a imagem de uma Igreja que quer defender a própria identidade e estruturas, mesmo em detrimento das pessoas ou das mudanças da sociedade. O Papa Francisco colocou em crise o cristianismo da conservação de estruturas e colocou de volta ao centro a importância de proclamar o Evangelho.

 

 

Mas a "questão Igreja" diz respeito também a uma nova reflexão urgente sobre a ministerialidade: sobre identidade e papéis dos ministros ordenados e sobre as reais possibilidades futuras do seu ministério e, ao mesmo tempo, sobre o quanto ainda seja parcialmente desatendida aquela forma de Igreja delineada pelo Concílio Vaticano II, realmente ministerial, que gera batizados adultos, conscientes e formados e que coloca no centro, protagonista da missão evangelizadora, todo o Povo de Deus como sujeito missão, para além de qualquer deriva clerical.

 

Além disso, a questão Igreja impõe uma reflexão sobre o papel ainda marginal da mulher e, de um modo mais geral, sobre como ser Igreja, portadora de uma mensagem de salvação, num mundo que se tornou plural e multicultural no qual somos chamados a ser uma minoria criativa, e não mais o centro da sociedade. Uma igreja que não se pensa mais como único e absoluto depósito da verdade, fora da qual se está excluído da salvação; uma Igreja que não propõe mais de si mesma “a figura da fortaleza sitiada que deve ser defendida, como uma espécie de partido da sociedade” [14].

 

 

Hoje os novos desafios pedem à Igreja que abandone a preocupação com a relevância social e a visibilidade organizacional, para se tornar uma comunidade humilde [15] e hospitaleira no respeito à diversidade, capaz de habitar o tempo e as tribulações da existência sem se impor do alto nem se limitar a dar indicações morais; uma Igreja que se configura como comunidade de iniciação à relação com Deus, de autêntica fraternidade e construção de vínculos, de acompanhamento e interpretação dos processos de existência, livre do ônus do poder e dos privilégios. Uma Igreja que já não se concebe mais a partir de si mesma, mas que, como indica o Papa Francisco, está em saída, é uma Igreja de portas abertas, que corre para o mundo, que prefere sujar-se por ter saído pelas ruas em vez de adoecer pelo fechamento sobre si mesma [16].

 

Finalmente, eu diria, retornar à paixão do Evangelho

 

Aqui, gosto de recuperar a lição extraordinária de Paul Tillich sobre a relevância e irrelevância do Cristianismo; o teólogo se pergunta como é possível comunicar a mensagem cristã em uma época pós-cristã e identifica algumas razões da irrelevância cristã. A primeira é a irrelevância da linguagem cristã: a repetição da linguagem bíblica, litúrgica e catequética não tem mais nenhum significado para as pessoas de hoje e para seus questionamentos existenciais, e até mesmo os símbolos cristãos perderam eficácia e poder:

 

A impossibilidade da pessoa moderna de compreender a linguagem da tradição diz respeito a quase todos os símbolos cristãos. Eles perderam o poder de trespassar a alma: de tornar inquietos, ansiosos, desesperados, alegres, extáticos, receptivos ao significado. Destaca-se o exemplo do Jesus de voz flautada, emaciado, sentimental, cuja imagem está pendurada nas salas de catecismo e nas paredes laterais das igrejas. Este Jesus sentimental não tem nada a dizer aos fortes da nossa época [17].

 

Não se trata de uma simples atualização na comunicação. O Papa Francisco quis colocar de volta ao centro o conteúdo essencial da missão da Igreja: anunciar a alegria do Evangelho. Devemos ter a coragem de abrir mão de muitas outras coisas na nossa ação pastoral, para voltar a anunciar o Evangelho com paixão, concentrando todas as energias para um anúncio renovado da Palavra e, acima de tudo, para tentar colocar as pessoas em contato com a figura de Jesus, homem livre, apaixonado, crítico e solidário. Por algum tempo - é uma provocação - suspender todas as atividades pastorais e fazer com que, desde as crianças até os idosos, todos possam dedicar-se, na oração e no estudo, ao Evangelho. Temos que recomeçar daí. E recolocar o Evangelho no centro nos permite realizar um passo importante, este também descrito por Tillich: passar do tradicionalismo a um cristianismo vivo e vivente. Uma razão da irrelevância cristã de acordo com Tillich, de fato,

 

é a atitude tradicionalista em relação à tradição cristã, que encontra ampla aceitação entre os leigos e os ministros. A tradição é boa. O tradicionalismo é ruim A atitude tradicionalista em relação à tradição impede buscar o significado vivente de seus elementos. Estes são dados como certos e não são mais colocados e discussão [...] Algo que favorece e encoraja o tradicionalismo é a expectativa, presente em muitos leigos, de que as igrejas devem ser uma pedra angular do conformismo e, de forma mais geral, do conservadorismo [18]

 

Retornar à centralidade do Evangelho nos oferece a possibilidade de nos libertarmos do conservadorismo de um cristianismo de normas e regras, de fórmulas estéreis e áridas, de um sobrenatural explicado de modo intelectual ou apresentado como separado da vida. Hoje é necessário que as pessoas sejam novamente alcançadas pelo frescor surpreendente do Evangelho, por uma proclamação cristã que, antes das definições, desperta com inquietude as perguntas sobre Deus e sobre a vida humana.

 

A crise e o declínio do cristão, portanto, também podem representar um novo começo. O teólogo canadense Tillard apresenta a seguinte indagação:

 

Somos os últimos cristãos? Uma coisa é certa. Somos inexoravelmente as últimas testemunhas de uma certa forma de ser cristãos, católicos. Envolvidas nas grandes mudanças das sociedades humanas nas quais elas se encarnam, as igrejas locais estão inevitavelmente destinadas a mudar de rosto e certas novidades já estão tomando forma. Não é necessário ser profetas para imaginar que, em comunidades cristãs necessariamente reduzidas, as relações entre ministros e leigos não serão mais as mesmas, com um consequente impacto profundo sobre as próprias formas de ministério. Pode-se prever também, sem grande risco de erro, que se tentará recuperar (em modalidades renovadas) a osmose entre o empenho nas tarefas civis importantes e o testemunho explícito prestado a Cristo. Porque será necessário falar de Cristo não apenas do alto da cátedra [...] Em um mundo cada vez mais leigo, pelo menos no Ocidente, as igrejas reduzidas a pequenos restos de crentes convictos e praticantes de sua fé provavelmente serão induzidas, pela força das coisas, a se reunir em torno do essencial [19].

 

À pergunta se somos realmente os últimos cristãos, Tillard respondia novamente: “Somos certamente os últimos de todo um estilo de cristianismo” [20].

 

 

Devemos acolher e saudar o fim de um certo estilo de cristianismo e garantir que ele não sufoque aquela nova figura de cristianismo que o Espírito Santo já está fazendo brotar aqui e agora.

 

Notas:

[1]. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, Sinodal, 2003.

[2]. M. Heidegger, Caminhos de Floresta, 249, Fund. Calouste Gulbenkian, 1998.

[3]. Cf. G. Marramao, Cielo e terra. Genealogia della secolarizzazione, Roma-Bari 1994, 13.

[4]. A literatura sobre o tema é bastante ampla: Z. Bauman, O mal estar da pós-modernidade, Zahar, 1998; A. N. Terrin, “Risveglio religioso e ritorno del sacro. Criteri per una lettura critico-pastorali. Istanze che ne derivano”, in Credere Oggi 61 (19919, 5).

[5]. Cf. G. VattimoC. Dotolo, Dio: la possibilità buona. Un confronto sulla soglia tra filosofia e teologia, org. G. Barbaglio, Rubbettino, Soveria Mannelli 2009, 31.

[6]. Cf. B. R. WILSON (1966), Religion in Secular Society, Watts, London 1966.

[7]. C. TAYLOR, L’età secolare, Feltrinelli, Milano 2009, 13.

[8]. M. P. GALLAGHERG. PALASCIANO, Credere e non credere. Le fragilità della fede nel mondo di oggi, EDB, Bologna 2017, 66.

[9]. A reflexão, que merece ser aprofundada, encontra-se em J.B. Metz, Memoria Passionis, Queriniana, Brescia 2009, 81-82.

[10]. Abordamos amplamente o tema na última parte de F. Cosentino, Incredulità, Cittadella, Assisi 2017.

[11]. W. KASPER, Introduzione alla fede, Queriniana, Brescia 2003, 16.

[12]. Cf. J. Moltmann, O Deus crucificado, Academia Cristã, 2020

[13]. J. A. Pagola, Annunciare Dio come buona notizia, EDB, Bologna 2017, 36-37.  Ibidem, 37

[14]. B. Sesboüé, Credere. Invito alla fede cattolica per le donne e gli uomini del XXI secolo, 402.

[15]. Consultar as belas reflexões de R. Repole, L’umiltà della Chiesa, Qiqajon, Magnano 2010; mas também o terceiro capítulo de Id., Il pensiero umile, Città Nuova, Roma 2007.

[16]. Papa Francisco, Exort. Ap. Evangelii Gaudium, n. 46; 49.

[17]. P. Tillich, L’irrilevanza e la rilevanza del messaggio cristiano per l’umanità di oggi, Queriniana, Brescia 2021,51-52.

[18]. Ibidem, 54-55.

[19]. J.-M. Tillard, Siamo gli ultimi cristiani? Lettera ai cristiani del Duemila, Queriniana, Brescia 1999, p 17-19

[20]. Ibidem, 33.

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

 

No dia 12 de julho 2021, às 14h, o Prof. Dr. Francesco Cosentino – Pontifícia Università Gregoriana – Roma ministrará a conferência O declínio do cristianismo: possibilidade de um novo começo para a fé cristã?. A atividade integra o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.

 

XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição

 

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