"Bonhoeffer soube estar e viver no limite e na contradição, em solidariedade com os irmãos sofredores, sem virar o rosto para o outro lado, sem se fechar, sem ignorar os seus gritos. E, por isso, foi enforcado no campo de Flossenbürg no dia 9 de abril de 1945".
O comentário é de Nicoletta Capozza, filósofa italiana especialista em Bonhoeffer e professora do Instituto Superior de Ciências Religiosas (ISSR, na sigla em italiano), em Verona. O artigo foi publicado por L’Osservatore Romano, 09-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Já se passaram 66 anos desde que o teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer foi executado no campo de concentração de Flossenbürg, condenado à forca em um processo sumário, poucas semanas antes da sua libertação.
A execução ocorreu poucos dias antes do fim da guerra e daquele regime que ele contribuíra a combater, porque, como escreve o amigo Bethge na notícia sobre os “Últimos dias de Bonhoeffer”, ele pertencia ao grupo daqueles “que absolutamente não deviam sobreviver”.
Porém, o nome de Bonhoeffer sobreviveu. E ainda tem muito a testemunhar no novo milênio, não menos do que no século XX.
Dietrich Bonhoeffer nasceu em 1906 em Breslau (Breslávia), filho de Karl Bonhoeffer, professor de psiquiatria e neurologia na Universidade de Berlim, e Paula von Hase, descendente da nobreza prussiana. Sexto de oito filhos e gêmeo de Sabine, ele respirou desde a primeira infância uma atmosfera de grande abertura e laicidade.
A sua escolha de fazer os estudos em teologia, com uma particular atenção à dimensão pastoral, certamente não foi obstaculizada, mas foi bastante singular para os seus familiares.
Depois de concluir o doutorado com apenas 21 anos de idade e de obter a habilitação para o ensino universitário aos 24, iniciou-se uma carreira universitária segura e promissora. Em 1933, porém, Adolf Hitler tornou-se chanceler, e o jovem teólogo deixou a cátedra universitária para não ter que colaborar com o novo governo, que perseguia explicitamente uma política militarista e antissemita.
Bonhoeffer em 1924 (Foto: https://www.livinglutheran.org/)
Bonhoeffer exigiu com força uma ruptura com aquela ala da Igreja luterana propensa a um compromisso com a ideologia nazista. Em particular, nos primeiros meses de 1933, estava em discussão a introdução de um “parágrafo ariano”, ou seja, de uma cláusula que excluía do ministério todos aqueles que tinham origens judaicas. Bonhoeffer denunciou a natureza herética dessa proposta e queria um posicionamento mais decidido por parte do establishment eclesial e teológico, mas isso não ocorre, e no dia 23 de julho de 1933 os Deutsche Christen (os “cristãos alemães”), defensores do nacional-socialismo, levaram a melhor. Bonhoeffer deixou a Alemanha e assumiu a direção de uma paróquia da comunidade alemã em Londres.
Essa retirada temporária, no entanto, não foi total: Bonhoeffer continuou muito ativo no movimento ecumênico, no qual levou em frente a batalha pela condenação tanto daquela que ele definia como “heresia” nacional-socialista dentro da Igreja Protestante alemã, quanto dos ventos de guerra que estavam se levantando na Europa.
Em 1934, nasceu a Igreja Confessante alemã, em oposição à Igreja do regime, e Bonhoeffer foi chamado para dirigir o Predigtseminar de Finkenwalde, perto de Stettin, ou seja, o seminário que devia formar os pastores da Igreja Confessante.
A experiência de Finkenwalde, que apresenta uma inovadora caracterização comunitária, está na base de duas obras fundamentais de Bonhoeffer: “Discipulado” (Ed. Sinodal), e “Vida em comunhão” (Ed. Sinodal), impressas respectivamente em 1937 e 1939. São obras dirigidas a um público intraeclesial, como era absolutamente intraeclesial a resistência de Bonhoeffer ao nacional-socialismo até 1937, quando o Predigtseminar de Finkenwalde foi fechado pela polícia.
Depois, as coisas mudaram. Ainda em 1934, em uma carta ao amigo pastor Erwin Sutz, Bonhoeffer escrevia: “... embora eu colabore com todas as forças da oposição, está claríssimo para mim, no entanto, que esta oposição é apenas um estágio de passagem transitório para uma oposição totalmente diferente” (Scritti, p. 387). Ele não estava errado.
Uma vez que o seminário da Igreja Confessante foi fechado, Bonhoeffer tentou continuar a formação dos jovens pastores por meio dos vicariatos coletivos, ou seja, encontros recorrentes realizadas em paróquias amigas da Igreja Confessante. A experiência não funcionou. Em janeiro de 1938, a polícia interveio para dissolver o encontro dos treinadores, e Bonhoeffer foi proibido de ficar em Berlim.
Reduzido ao silêncio e à inação, o teólogo cultivou a ideia de se mudar para os Estados Unidos, onde uma cátedra em Nova York estava pronta para ele. Ele foi para lá em junho de 1939, pouco antes do início da guerra, mas depois recusou. E voltou para a Alemanha.
Bonhoeffer em Londres (Foto: https://www.dietrich-bonhoeffer.net/leben/london/)
“Não terei nenhum direito de participar da reconstrução da vida cristã depois da guerra na Alemanha se eu não compartilhar as provações deste tempo com o meu povo”, escreveu ele em uma carta ao teólogo Reinhold Niebuhr.
Compartilhar as provações do seu povo significava, para ele, participar da resistência ao nacional-socialismo. Quase toda a sua família estava envolvida na conspiração do almirante Canaris, e Bonhoeffer aceitou colaborar para derrubar o regime nazista, que, enquanto isso, começou as deportações em massa para os campos de extermínio e fez eclodir a Segunda Guerra Mundial.
Oficialmente, Bonhoeffer continuou membro da Igreja Confessante, mas, ao mesmo tempo, secretamente se alistou no serviço secreto do Abwehr (o exército alemão), verdadeiro covil dos resistentes. A sua tarefa era a de levar informações aos países inimigos sobre o desenvolvimento de uma resistência interna, utilizando os seus conhecimentos ecumênicos.
Entre 1940 e 1943, Dietrich Bonhoeffer viajou muito: Noruega, Suíça, Roma, Veneza... e residiu temporariamente no mosteiro beneditino de Ettal, na Baviera, onde trabalhou em uma obra que ele sabia que não poderia publicar naquele momento: a “Ética” (Ed. Sinodal), uma obra que ficou incompleta, que colocava a questão do bem no coração da história ou, melhor, de quem age na história e não se recusa a fazer as contas com ela.
Na base dessas páginas, publicadas pela primeira vez pelo amigo Bethge em 1949, está a pergunta que um prisioneiro italiano fez ao teólogo alemão na prisão de Tegel: por que um cristão deveria participar da resistência contra Hitler? Tal escolha não envolve um irremediável “sujar-se as mãos”? Essa é a questão de fundo da reflexão bonhoefferiana na “Ética”.
A resposta icástica de Bonhoeffer ficaria famosa: “Quando um louco joga o seu carro sobre a calçada, eu não posso, como pastor, contentar-me em enterrar os mortos. Se eu me encontrar naquele lugar, devo pular e agarrar o motorista ao volante”.
Em outras palavras: não posso, como cristão, eximir-me do fato de assumir a responsabilidade de realmente combater o mal do mundo, não posso adiar a ação na história à intervenção de um deus ex machina, não posso ficar indiferente diante do grito de quem é pisoteado.
Com efeito, Bonhoeffer assumiu a responsabilidade pela ação e a sustentou até o fim: ele foi preso em abril de 1943 e, na prisão, conseguiu resistir aos interrogatórios e não revelar as tramas da conspiração contra Hitler, da qual tinha conhecimento e que levaria, no dia 20 de julho de 1944, ao atentado de Stauffenberg em Rastenburg. O fracasso do atentado marcaria a derrota dos conspiradores e o fim de Bonhoeffer.
Transferido para a prisão da Gestapo de Prinz-Albrecht-Strasse em outubro de 1944 e para o campo de concentração de Buchenwald em 7 de fevereiro de 1945, ele foi executado no dia 9 de abril de 1945 no campo de concentração de Flossenbürg.
As cartas e os escritos compostos durante o cárcere em Tegel seriam publicados postumamente pelo amigo Bethge com o título “Resistência e submissão” (Ed. Sinodal).
Recordar a vida e a obra, as escolhas e o pensamento de Bonhoeffer, hoje, no meio de uma pandemia que parece se colocar quase como um divisor de águas entre duas épocas, não pode e não deve ser um exercício puramente celebrativo. O testemunho do pastor e teólogo alemão faz parte daquela memória da Igreja e da civilização, cristã e humana, que temos o dever de recolher, conservar e transmitir na fluida era pós-moderna.
Deixar esta história de testemunho cair no esquecimento ou reduzi-la a um ícone sem implicações reais significaria nos tornar todos mais vazios e desenraizados, como escreve o Papa Francisco na Fratelli tutti a propósito do “fim da consciência histórica” (n. 13).
É claro que ler Bonhoeffer em 2021 não é o mesmo que lê-lo nos anos 1960 ou 1970, nem nos anos 1980 ou 1990. Operando uma simplificação notável, talvez se possa dizer que, nos anos 1960 e 1970, o nome de Bonhoeffer esteve associado à chamada “teologia da morte de Deus” ou teologia da secularização, com a atenção voltada sobretudo à ideia do “cristianismo não religioso”.
Nos anos 1980 e 1990, redescobriu-se a dimensão profundamente cristológica da reflexão bonhoefferiana, cujo desenvolvimento é revisto na sua profunda unitariedade como teologia da encarnação e da cruz, aberta à questão da relação com o outro e da implicação responsável na história.
E hoje? Quais são hoje as palavras deste fascinante testemunho que mais nos interpelam? Longe de querer dar uma resposta exaustiva, gostaria de propor três palavras que eu considero iluminadoras.
Descentramento, acima de tudo. Na época da busca pela identidade, quando o mantra mais difundido é “realizar-se”, quando o imperativo categórico parece ter se tornado “aproveite todas as possibilidades que a vida oferece para desenvolver todas as suas potencialidades”, Bonhoeffer, com as suas escolhas e os seus escritos, propõe o exemplo de uma vida despedaçada, cortada, que permaneceu “em potência”, tanto na esfera pessoal dos afetos, porque Bonhoeffer jamais conseguiria levar a cumprimento o casamento com a noiva Maria von Wedemeyer, tanto na esfera profissional, porque o teólogo não poderia elaborar completamente as intuições dos últimos anos e colher os seus frutos.
Bonhoeffer propõe uma vida que permaneceu como fragmento, na qual o ponto focal não está na própria identidade, mas, precisamente, no descentramento, não naquilo que realizou para si, mas naquilo que deixou, não naquilo que alcançou, mas naquilo do qual se desligou (a carreira universitária, a segurança econômica e social, a família e o amor, a liberdade, a vida…) não por uma vontade dolorista, mas apenas para ser fiel ao seguimento de Cristo.
Na carta da prisão de 21 de julho de 1944, um dia após o atentado fracassado contra Hitler, quando o fim que o esperava já se perfilava claramente, ele escreveu assim ao amigo Bethge: “Quando renunciamos completamente a fazer algo de nós mesmos – um santo , um pecador arrependido ou um homem da Igreja (uma assim chamada figura sacerdotal), um justo ou um injusto, um doente ou um sadio – (...) então jogamo-nos completamente nos braços de Deus, então não levamos mais a sério os próprios sofrimentos, mas os sofrimentos de Deus no mundo, então vigiamos com Cristo no Getsêmani, e, creio eu, esta é a fé, está a metanoia/μετάνοια, e assim nos tornamos homens, nos tornamos cristãos”.
Tornamo-nos plenamente homens e mulheres quando renunciamos a fazer algo de nós, quando aceitamos abandonar o modelo de sucesso que a sociedade mais ou menos nos impõe, quando não olhamos para as próprias dores e para os próprios sofrimentos, mas conseguimos afastar o olhar de nós mesmos para orientá-lo ao mundo, para a dor dos outros; e nos tornamos cristãos quando, dessa dor, reconhecem-se os sofrimentos de Deus no mundo (Mt 25,31-46). A realização da própria vida se dá no êxodo de si mesmo. Este é o ensinamento de Bonhoeffer.
A segunda palavra, depois, é: coragem. Trata-se de uma palavra que está sofrendo uma grande crise nos últimos anos: estamos na era dos seguros (seguro de vida, seguro do carro, patrimonial, seguro-saúde...), seguros mais ou menos obrigatórios, que tem como finalidade afastar cada vez mais a linha do perigo, até quase apagá-la. E, junto com o perigo, também se apaga a coragem.
No início do terceiro milênio, a coragem parece uma virtude fora de moda: não se pede aos jovens a coragem de enfrentar a vida, mas sim as competências adequadas para se defenderem dos desafios do mundo. A educação e a escola visam, em primeiro lugar, a “armar” as crianças e os adolescentes para uma batalha em que as variáveis devem ser o máximo possível controláveis.
Na realidade, como escreve o psicanalista argentino Miguel Benasayag, em “Funzionare o esistere?” [Funcionar ou existir?], “em cada constelação da existência, se não houver um mínimo de coragem, afunda-se no nada”. Não é possível eliminar o medo do escuro simplesmente acendendo a luz. Chega um momento em que a escuridão deve ser enfrentada, simplesmente, com coragem e sem garantias. Sem coragem, não se pode assumir responsabilidades e, portanto, não é possível se tornar homens e mulheres adultos, maduros, capazes de estar de pé, apesar e junto com todas as próprias fragilidades.
O que acontece hoje, ao se substituir de modo tácito e generalizo a coragem pela busca de garantias em todos os campos, tem no fundo alguma correspondência com aquilo que Bonhoeffer observava na Alemanha do seu tempo, quando a obediência à autoridade substituíra a coragem da liberdade de ação.
A falta de coragem, hoje como naquela época, é condição para a adequação das pessoas ao sistema, um sistema ideológico no caso de Bonhoeffer; consumista no nosso caso. Onde falta a coragem, de fato, falta a possibilidade da liberdade, a menos que se entenda a liberdade como uma mera possibilidade formal de escolhas, e não como escolha concreta, destinada sempre a fazer as contas com os limites da realidade.
Sem a coragem, os limites da realidade não são enfrentados, e, se os limites não são enfrentados, a realidade também não é enfrentada.
A terceira palavra que Bonhoeffer nos entrega e que nos interpela particularmente é “o olhar a partir de baixo”. Em um texto redigido pouco antes da sua prisão, o teólogo resistente escreveu: “Continua sendo uma experiência de valor excepcional o fato de ter aprendido, enfim, a olhar para os grandes eventos da história universal a partir de baixo, da perspectiva dos excluídos, dos suspeitos, dos maltratados , dos impotentes, dos oprimidos e dos ridicularizados, em uma palavra, dos sofredores”.
Também neste caso, a assunção da perspectiva de baixo não ocorre com base em uma humilhação voluntarista, mas, em vez disso, é fruto dos eventos, consequência da assunção de responsabilidade na história. Isso levou Bonhoeffer e os seus companheiros conspiradores, crentes e não crentes, a mudarem a sua posição de prestígio e poder social e, enfim, se encontrarem entre os perdedores, entre os últimos.
Hoje, em uma sociedade que se divide entre vencedores e perdedores, colocando estes últimos certamente entre os descartes inúteis, as palavras de Bonhoeffer adquirem uma força inédita.
Como lembrou o Papa Francisco na bênção Urbi et Orbi do dia 27 de março de 2020, se “estamos todos no mesmo barco”, o testemunho de Bonhoeffer, e com ele de todos os mártires, nos diz que não é a partir da primeira classe que se pode entrever a direção que o navio toma, mas sim da posição do mastro, que está no alto, como a cruz para os cristãos.
É a kenosis da encarnação e da cruz (Fl 2,5-11) que revela o sentido da história e da existência, que não pode se resolver, portanto, no melhor desempenho possível, mas em saber estar e viver no limite e na contradição, em solidariedade com os irmãos sofredores, sem virar o rosto para o outro lado, sem se fechar na própria cabine, sem ignorar os seus gritos.
Foi isso que fez o teólogo Dietrich Bonhoeffer. E, por isso, foi enforcado no campo de concentração de Flossenbürg no dia 9 de abril de 1945. Mártir do nosso tempo.