10 Outubro 2019
"Para que tanta educação diante do desmonte da nossa educação? Parece-me que passa da hora de transformarmos nossa indignação em afeto, e assim dar resposta à possibilidade de mudar o curso da história. Como bem disse Paulo Freire, “não sou objeto da história, mas seu sujeito implicado em intervir na realidade”. Logo, a construção dessa realidade não pode ser outra coisa senão fruto de ato organizativo da ação coletiva", escreve Rafael dos Santos da Silva, professor da Universidade Federal do Ceará - UFC.
Eis o artigo.
Um dos mais notáveis pensadores sociais da atualidade, o português Boaventura Sousa Santos ao pensar sobre a democracia imprimiu uma frase desconcertante ao conjunto social. O sociólogo afirma que “estamos a perder a democracia democraticamente”. De forma didática, o professor se vale de uma retórica simples para falar de um problema complexo, mas vai além. O que está efetivamente dito nessa frase consiste numa profunda denúncia acerca da forma e do método que são utilizados para destruir por dentro anos de acúmulos e conquistas sociais fruto da democracia alcançada, e que agora está a ser sufocada por uma gramática imoral, porém legal. Aética, mas esteticamente aceitável. Recorro assim do expediente levantado por Boaventura para refletir sobre os profundos ataques à educação brasileira, e igualmente sentenciar: estamos a perder a educação educadamente.
Nossa reflexão se dará em duas etapas. Na primeira, contextualizo o problema que assola a educação superior no Brasil, para em seguida buscar estimular algumas reflexões-ações valendo-se de dois circuitos: um simbólico, o outro material.
Pois bem, numa manhã de intenso calor em Brasília o ministro da Educação convidou todos os reitores das Instituições de Ensino Superior - IES para “educadamente” apresentar o programa que põe fim ao modelo de educação pública e gratuita. Alguns reitores presentes narram que o Talk Show comandado pelo Abraham Weintraub se assemelhava à apresentação dessas empresas de vendas rápidas sob a pecha de promover maior autonomia financeira às IES. Contam que apinhados num ambiente de semiluz, eles foram bombardeados de informações desconexas e claramente açodadas, resultado do esforço de um educado vendedor havido por efetuar a próxima venda a qualquer custo. Não fosse o método um grande despautério, a substância da proposta intitulada “FUTURE-SE” se revelou numa verdadeira cilada que educadamente mira o fim da educação pública como a pactuada até aqui.
A todo instante o projeto confunde os limites entre o público e o privado, abandona a ideia da soberania e duvida da inteligência alheia ao fazer supor estar na iniciativa privada a resolução de todos os problemas da educação. A desfaçatez é tamanha que a proposta chega ao ponto de prever transferência do patrimônio imobiliário às Organizações Sociais - OS e, estas, valendo-se disso, realizem investimentos mercantis. O FUTURE-SE prevê ainda que, sendo o resultado de tal investimento negativo, é do Estado a tarefa de arcar com os prejuízos das OS. Traduzindo: privatiza-se o lucro, e estatiza-se o prejuízo.
Para alcançar tal esforço, o FUTURE-SE precisa modificar mais de dezoito legislações e assim ganhar laivos de “legalidade”. Ao entregar a produção intelectual brasileira e consequentemente sua soberania, não se limita em mexer nas estruturas das IES para, num só pacote, realizar uma grande oferta que vai da estrutura física ao corpo de pessoal, passando pela burocracia até chegar aos elementos didáticos. O entreguismo é tão latente que o ministro da Educação precisa eleger um inimigo comum como forma de convencimento. Nas suas fantasias não tem medido palavras para induzir a sociedade a pensar que a universidade pública é “antro de preguiçosos”, fazendo supor que há ali “oportunistas travestidos de pesquisadores, professores e técnicos”. Suas investidas contra a educação não ficam apenas no campo da semântica e age via contingenciamento, para sufocar a pesquisa pública responsável por 95% da produção nacional. Os órgãos de fomento como CNPQ e CAPES agonizam sob o doce olhar governamental, enquanto pesquisas podem ser descontinuadas a qualquer tempo. A ideia é simples: provocar um cenário de terra arrasada para no momento seguinte justificar a entrega de todo patrimônio público à iniciativa privada. Como bem disse Darcy Ribeiro, “isso não é crise, é um projeto” sutilmente articulado no MEC.
Agora quero ir à segunda parte do texto voltada a produzir reflexão-ação. Custa-me acreditar que debates complexos como o da estrutura da educação possa ser travado de forma simples. Mas não posso me dar ao luxo de escrever uma tese sob o risco de ser incompreendido pelo grande público. Por isso, gostaria de propor ao conjunto de educadores, pensadores, pais e qualquer cidadão que esteja perdendo a educação educadamente a pensar dois caminhos analíticos com vistas a libertar-se das armadilhas do FUTURE-SE. O primeiro está associado ao campo simbólico, e o segundo deve ser estabelecido no campo propositivo.
O campo simbólico exerce um poder impressionante para ajudar na compreensão popular. Age como elemento impulsionador de transformação e por isso é o berçário de qualquer mudança concreta. Nesse cenário, três importantes elementos compõem o circuito simbólico que se acionado pode revelar-se mobilizador. São eles: a indignação, o afeto e a res-ponsabilidade. A indignação é o primeiro gesto de quem ama. Ela pressupõe uma mobilização, característica do ser humano que resolve ir contra a corrente. Ao enfrentar o status quo e deparar-se com alguma injustiça, aceita que algo precisa ser feito imediatamente. Nesse momento, a dimensão afetiva entra em cena para determinar o grau de envolvimento do indignado, ou seja, se a participação será mínima, ou concreta, efetiva ou causal. O grau de afeto, por assim dizer, mobilizará a terceira esfera do campo simbólico: o senso de res-ponsabilidade, ou como bem diz L. Boff “uma resposta à possibilidade”. Em síntese, a capacidade de afetar indicará se o individuo dará ou não resposta à possibilidade ao seu protagonismo. Esses três elementos dinamizam o campo simbólico do revolucionário que possui o direito de ofuscar ou fazer fluir sua constituição histórica.
Caso a opção seja deixar fluir, então o indivíduo não aceita outro caminho senão aquele elaborado pelo circuito material, que pressupõe envolvimento, organização e ação. Nesse momento a primeira percepção é que nenhum ato heroico será sustentável, por isso o envolvimento com outros indignados faz-se em ato contínuo. Há uma ação inteligente? Certamente, pois tomar partido é o resumo de um ato organizativo capaz de executar as ações necessárias à mudança pretendida. O agora partidário, tem assim condições de influir na sociedade e tornar-se o construtor da própria dinâmica histórica.
Por isso, há uma ligação direta entre os circuitos simbólico e material. Quero dizer, uma liga umbilical entre a indignação e o envolvimento; o afeto e a organização e, sobretudo, entre a res-ponsabilidade e a ação.
Uma boa síntese vem da poesia de Cazuza que já se perguntava “pra que usar de tanta educação, para destilar terceiras intenções?” Ao fazê-lo o poeta nos indicava a chave para encontrar os circuitos simbólico e material. Para que tanta educação diante do desmonte da nossa educação? Parece-me que passa da hora de transformarmos nossa indignação em afeto, e assim dar resposta à possibilidade de mudar o curso da história. Como bem disse Paulo Freire, “não sou objeto da história, mas seu sujeito implicado em intervir na realidade”. Logo, a construção dessa realidade não pode ser outra coisa senão fruto de ato organizativo da ação coletiva.
Assim, finalizo com uma pergunta e uma convocação. A pergunta mobilizadora que deixo é: você vai perder a educação educadamente? E a depender da sua resposta convoco a fazer da educação a trincheira da resistência, espaço que sempre foi, posto que se não emancipar, renova as forças para continuar a luta em busca da libertação.
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Estamos perdendo a educação educadamente para o Future-se - Instituto Humanitas Unisinos - IHU