Por uma Igreja livre das amarras sistêmicas. Entrevista especial com Paulo Suess

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24 Mai 2015

"Está na lógica de uma 'Igreja em saída' às periferias e fascinada pela 'alegria do Evangelho' nos meios populares, que ela traz algo de volta, aprendizados de simplicidade, alegria, abertura. O Papa Francisco nos mostra essa reciprocidade do 'ir e vir' a cada dia", afirma o teólogo. 

Foto:eccevenio.wordpress.com
Para o Papa Francisco a missão da Igreja não é de convencer ninguém a ser católico, mas ir ao encontro do outro. “Vais convencer o outro a tornar-se católico? Não, não, não! Vais encontrar-se com ele, é o teu irmão! E isto é o suficiente. E você vai ajudá-lo; o resto é feito por Jesus, o Espírito Santo faz”, parafraseia Paulo Suess, ao lembrar a videomensagem enviada pelo Papa aos seus patrícios por ocasião da Festa de São Caetano.

Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Suess destaca que o papel dos missionários e das missionárias não é salvar almas, mas vidas. Nesse sentido traz à discussão que Francisco faz sobre uma certa racionalidade baseada na “eficiência” contemporânea. “Vivemos numa época de aceleração de todos os processos produtivos. Também os processos pastorais, que se concentram nas mãos de poucos, são marcados por essa aceleração que dificulta o encontro e acompanhamento pastoral. O mundo acelerado valoriza mais a chegada e o resultado final que o caminho e o processo”, pontua.

No final de 2015 será iniciado o “Ano Santo da Misericórdia” no dia 8 de dezembro, data que marca o encerramento do Concílio Vaticano II. “O Ano Santo será iniciado com a abertura da Porta Santa na Basílica de São Pedro. A porta será aberta para que a Igreja se torne uma ‘Igreja em saída’, uma Igreja que se arrisca a um novo encontro com os povos indígenas e supera a recepção morna do Vaticano II com audácia e coragem”, acentua. “Igreja em saída significa também Igreja em saída das amarras sistêmicas, significa Igreja profética que arrisca suas adaptações sistêmicas porque se põe ao lado daqueles aos quais no sistema não há lugar.”

Paulo Suess nasceu na Alemanha. É doutor em Teologia Fundamental com um trabalho sobre Catolicismo popular no Brasil. Em 1987 fundou o curso de Pós-Graduação em Missiologia, na Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, onde foi coordenador até o fim de 2001. Recebeu o título de Doutor honoris causa, das Universidades de Bamberg (Alemanha, 1993) e Frankfurt (2004). É assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia, no Instituto Teológico de São Paulo – ITESP. Entre suas publicações, citamos Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007). Em 2012 publicou o livro Impulsos e intervenções. Atualidade da Missão (São Paulo: Paulus, 2012).

A entrevista que reproduzimos a seguir, foi publicada na revista IHU On-Line, no. 465, que tem como título E sopra um vento de ar puro... Os dois anos de Papa Francisco em debate


Paulo Suess participou do II Colóquio Internacional IHU que teve como tema O Concílio Vaticano II: 50 anos depois, realizado na Unisinos, nos dias 19 a 21 de maio de 2015.

Confira a entrevista.

Foto: xaverianos.org.br
IHU On-Line - Qual a leitura que faz do pontificado de Francisco até agora?

Paulo Suess - Depois do inverno eclesial, com Francisco começou a primavera, mudou o clima. Para a colheita precisa esperar o outono que Francisco não vai alcançar. Os profetas são semeadores, abrem caminhos, descortinam horizontes. Se foram colocados em lugares de comando e poder, como o Papa, e permanecem profetas, podem suspender proibições institucionais secundárias, dar sinais radicais em nível pessoal, abrir gaiolas. Mas sair das gaiolas e retomar o voo desaprendido no decorrer dos anos não pode ser uma ordem de cima. O que o Papa quer, pelos seus próprios princípios, não pode impor. Tampouco pode contar com subordinados ainda alinhados aos pontificados anteriores. Precisa de voluntários. Quem são e onde se encontram esses voluntários com os quais Francisco pode contar na missão pela qual foi eleito? Os que abrem mão de uma eventual carreira eclesiástica pela sua fala adulta e profética geralmente são minoria.

Nós, na América Latina, tivemos três times eclesiais que jogaram em campos diferentes, uns navegando com os ventos que a colonização trouxe às Américas, outros encostados na praia e ainda outros navegando contra os ventos: os adaptados às posturas neoconservadoras dos últimos pontificados, os confessores em off, que na calada da noite admitiram seu descontentamento com a condução da Igreja, e a minoria dos comprometidos com a ruptura do constantinismo eclesial, que aconteceu durante o Vaticano II, conciliando continuidade doutrinal elementar e ruptura na organização institucional.

Solidão

Francisco vive uma solidão institucional muito grande. Seus críticos na Cúria já não falam mais em off, mas em público, como o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé que numa entrevista ao periódico La Croix, no início de abril, declarou que sua Congregação deve dar a devida “estruturação teológica” ao magistério do Papa Francisco. Em qualquer repartição pública esse funcionário seria imediatamente afastado.

A força deste pontificado está no apoio popular e no reconhecimento da sociedade civil mundial, conquistados pelos gestos simbólicos e reais, humanos e evangélicos, pela linguagem simples e direta e o horizonte pastoral relevante para toda a humanidade. Francisco restabeleceu o primado da pastoral sobre a teologia, não contra a teologia. A teologia permanece pano de fundo, ancilla Domini, serva do Senhor.

Diálogo monológico

Quantas vezes Francisco deve ter repetido o diálogo entre a estátua de bronze de Pedro do Vaticano e o Senhor, escrito pelo poeta espanhol Rafael Alberti:

“Diz, Jesus Cristo

Por que me beijam tanto os pés?

Sou São Pedro aqui sentado,

em bronze imobilizado,

não posso olhar para o lado

nem dar um pontapé,

pois tenho os pés

gastados, como vês.

Faz um milagre, Senhor!

Deixa-me descer ao rio

voltar a ser pescador

que é o que sou”.

IHU On-Line - Em que consiste a proposta missionária de Francisco?

Paulo Suess - Teologia, eclesiologia, pastoral e itinerário pessoal se entrelaçam na vida e na obra missionária do Papa Francisco numa coerência evangélica e relevância sociocultural. A misericórdia de Deus nos abre os olhos para a realidade na qual o pobre é roubado e o outro desprezado. A misericórdia como justiça maior e amor maior nos faz lutar pela redistribuição dos bens e pelo reconhecimento do outro. Nessa luta encontramos o Senhor crucificado e ressuscitado. Ele nos lembra que a vida dos crucificados na história pode ser transformada através do Evangelho, que não é “doutrina estruturada”, mas compaixão, solidariedade e militância.

A responsabilidade para com a realidade, que através do Evangelho pode ser transformada, nos compele a sair e descobrir no modelo de uma Igreja “em saída” a chave de uma Igreja que vai ao encontro e faz do caminho e do encontro, do acompanhamento e da presença o lugar teológico da missão. O discípulo missionário, segundo Francisco, não é o protagonista da missão. O protagonista é Jesus. O missionário é interlocutor a partir de uma mensagem que recebeu em vasos de barro. O missionário interlocutor é enviado a interlocutores e não a destinatários da missão, porque ele mesmo é destinatário. A saída exige “prudência e audácia” (EG), “coragem” e “ousadia” (EG). O modelo dessa missionariedade é a itinerância do próprio Jesus que nos envia, como ele mesmo foi enviado pelo Pai.

Em resumo: A missionariedade de Francisco costura as seguintes palavras-chave: A misericórdia reparadora como graça de Deus, anunciada pela Igreja povo de Deus “em saída” ao encontro dos pobres e dos outros na realidade ambivalente do mundo. “Em saída” significa inserção num processo permanente de transformação e presença, e presença significa interlocução e não protagonismo. O protagonista da missão é Jesus crucificado e ressuscitado, caminho e verdade na história e além dela.

IHU On-Line - Hoje, para a Igreja, o que é o trabalho missiológico?

Paulo Suess - Desde Aparecida (2007) e ainda reforçado pelo Papa Francisco, a missiologia tornou-se Teologia Fundamental. Todos os tratados teológicos são ramos da Missiologia. Por isso “a atividade missionária «ainda hoje representa o máximo desafio para a Igreja» e «a causa missionária deve ser (…) a primeira de todas as causas». […] Nesta linha, os Bispos latino-americanos afirmaram que «não podemos ficar tranquilos [...] em nossos templos», sendo necessário passar «de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária»” (EG). Se “a causa missionária é a primeira de todas as causas” então a missiologia é a teologia primeira de todas as teologias.

Cabe à missiologia estabelecer os contornos de uma disciplina teológica que não pode ser confundida com a antiga apologética nem com uma missiologia genericamente secularizada cujos mandamentos as empresas modernas colocam no seu hall de entrada, portanto, nem caçadora de almas nem geradora de lucros através de promessas de um “bem-viver” escatológico.

Encontro

Em videomensagem aos seus patrícios, por ocasião da Festa de São Caetano, o Papa Francisco questiona o discurso de convencimento com a finalidade proselitista e pergunta: “Vais convencer o outro a tornar-se católico? Não, não, não! Vais encontrar-se com ele, é o teu irmão! E isto é o suficiente. E você vai ajudá-lo; o resto é feito por Jesus, o Espírito Santo faz. [...] Quando te encontrares com quem tem maior carência, o teu coração começará a aumentar, a crescer, a dilatar-se! Pois esse encontro multiplica a capacidade de amar”.

Francisco é avesso ao “assédio espiritual”, a verdades cristalizadas e à redução da religião a prescrições, acompanhados de castigos pelo não cumprimento das “obrigações”. No encontro, dia 29 de agosto de 2014, com jovens da diocese italiana de Piacenza-Bobbio, o Papa Francisco deu também à verdade essa dimensão da atratividade e do encontro: “A gente não tem a verdade, não a carregamos conosco, mas a gente vai ao seu encontro. É o encontro com a verdade, que é Deus, mas precisamos procurá-la”.

Podemos aprofundar a atração da missão e a atratividade da Igreja com uma metáfora. Os missionários e as missionárias não são caçadores de borboletas, mas zeladores das flores de um jardim que atrai as borboletas. Não salvam almas, mas vidas. Optamos por uma “missiologia jardineira” que atrai as borboletas pela beleza de suas flores e pelo odor de suas plantas.

Missão

Essa dimensão da “atratividade” da Missão está enraizada no próprio Deus-Amor. Para que todos possam tornar-se discípulos e discípulas de Deus, o Deus-Amor sai de si mesmo, desce, abraça e atrai: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrair” (Jo 6,44). Nos três movimentos, no da descida, da atração e do abraço se realiza o dom de Deus: “Deus revela a sua face precisamente na figura do Servo sofredor” (Spe salvi 43; Is 53). Ao abraçar o leproso, São Francisco se converteu. A conversão é uma consequência desta atratividade de Deus. Na entrada messiânica de Jesus em Jerusalém, a unidade entre o Nazareno e o Deus-Amor é tão grande, que Jesus pode exclamar: “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). A atração de Deus se manifesta no “ir ao encontro” e no “deixar-se encontrar” e é explicitada nas parábolas do Bom Samaritano e da Ovelha Perdida.

Documento

O “Documento de Aparecida” assumiu esse tópico da “atração” oriunda da força do amor (DAp 159; cf. 268, 361s). Em seu discurso aos bispos brasileiros, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude - JMJ, o Papa Francisco confirma o tópico da atração como uma atitude de encantamento missionário fundamental para toda a Igreja: “Uma Igreja que dá espaço ao mistério de Deus; uma Igreja que alberga de tal modo em si mesma esse mistério, que ele possa encantar as pessoas, atraí-las. Somente a beleza de Deus pode atrair. O caminho de Deus é o encanto que atrai” (JMJ, 27-07-2013) pelo dom do amor.

IHU On-Line - Quais são os maiores desafios missiológicos para a Igreja? E como a fala do Papa incide sobre o trabalho missionário?

Paulo Suess - O Papa Francisco revalidou o “Documento de Aparecida” para a Igreja universal. Observa-se, portanto, entre o magistério latino-americano e o magistério universal de Francisco uma grande afinidade no pensamento missiológico e na proposta do trabalho missionário. Ambos, Aparecida e Roma, são herdeiros do Vaticano II e do seu axioma fundamental que a Igreja é por sua natureza missionária (DAp; AG). Essa herança aponta à passagem de uma missão territorial para uma missão em que a responsabilidade do ser missionário é de todos os batizados. No Documento de Aparecida, a missão tornou-se o paradigma síntese em dois sentidos: primeiro, assume a caminhada das quatro conferências latino-americanas anteriores com seus paradigmas de descolonização, opção pelos pobres e libertação, participação e inculturação; segundo, sintetiza as múltiplas propostas do próprio documento sob o prisma da missão.

Documento de Aparecida

O Documento de Aparecida, que é um precursor da Evangelii Gaudium, pensa a operacionalização da natureza missionária da Igreja em três círculos concêntricos como missão paroquial, continental e ad gentes:

- As paróquias devem ser “comunidades de comunidades” (DAp) e transformar-se de uma comunidade de manutenção em “centros de irradiação missionária em seus próprios territórios” e em “lugares de formação permanente” (DAp).

- Na Missão Continental todo o continente “quer colocar-se em estado de missão” (DAp). Ela se dirige aos católicos batizados, porém pouco ou não evangelizados (DAp).

- “Missão ad gentes”, significa “missão universal” da Igreja: “Somos testemunhas e missionários: nas grandes cidades e nos campos, nas montanhas e florestas de nossa América, em todos os ambientes da convivência social, nos mais diversos “areópagos” da vida pública das nações, nas situações extremas da existência, assumindo ad gentes nossa solicitude pela missão universal da Igreja” (DAp).

Reestruturação

Francisco assume a reestruturação da missão no Documento de Aparecida e aponta para uma metodologia com cinco pilares que marcam a pastoral em chave missionária (EG):

(a) abandonar o cômodo critério pastoral: “fez-se sempre assim”, que exige que todos sejam “ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades” (EG);

(b) “ouvir a todos”, que às vezes, exige caminhar “à frente para indicar a estrada e sustentar a esperança do povo” (EG), outras vezes é mais indicado manter-se “no meio de todos com a sua proximidade simples e misericordiosa, e, em certas circunstâncias, deverá caminhar atrás do povo, para ajudar aqueles que se atrasaram e, sobretudo, porque o próprio rebanho possui o olfato para encontrar novas estradas” (EG);

(c) “sair de si ao encontro do outro” aponta para uma Igreja missionária, uma Igreja “em saída”. Ela aprendeu essa saída de figuras bíblicas, como Abraão e Moisés, de profetas e apóstolos. “Naquele «ide» de Jesus, [...] todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20, cf. 30). “A Igreja «em saída» é uma Igreja com as portas abertas” (EG) e despojada. A missão é o antídoto da mundanidade espiritual que cultiva “o cuidado da aparência” e se coloca num círculo de giz da autorreferencialidade (EG). A autorreferencialidade é o oposto da alterreferencialidade que põe os interesses de Jesus Cristo na frente dos próprios interesses (EG 93).

(d) encarnar-se (inculturar-se) no universo do outro, porque nele “está o prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós” (EG). Está na lógica da encarnação na diversidade cultural pensar o cristianismo pluricultural.

(e) Quando a pastoral assume a prioridade da missão, “o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário” (EG). “Por que complicar o que é tão simples? As elaborações conceituais hão de favorecer o contato com a realidade que pretendem explicar, e não afastar-nos dela” (EG).

Imperativos missiológicos

Nos verbos acima mencionados encontram-se os imperativos missiológicos:

- no “abandonar” será enfrentado o desafio do tradicionalismo e do “apegar-se” ao sobrepeso de culturas hegemônicas;

- no “ouvir” será contestado o desafio do autoritarismo que é incapaz de ouvir os outros, e a reserva contra a participação do povo de Deus;

- no “sair” será invocada a abertura de portas, caminhos e novos estilos de encontro;

- no “encarnar-se” será desafiado o colonialismo que impõe o próprio como normativo e trata o outro como tutelado;

- no “concentrar-se” ao essencial, a Igreja vai ao encontro do povo simples, contestando atitudes que procuram substituir o Evangelho pela Lei e que fazem do direito canônico e do conhecimento de todos os meandros doutrinários, os pré-requisitos preferenciais para a escolha dos seus quadros de comando.

IHU On-Line - No que consiste o processo de missão depois do Concílio Vaticano II e quais as distinções desse processo antes do Concílio?

Paulo Suess - Para continentes, cuja primeira evangelização foi hipotecada pela proximidade com o sistema colonial, o Vaticano II permitiu iniciar processos de descolonização na transmissão da fé. Os documentos conciliares permitiram um deslocamento na compreensão dos sujeitos e objetivos, dos meios e fins do conceito “missão”, abriram caminhos. Na complexa realidade da teologia da missão e das atividades missionárias se cruzam até hoje todas as questões teológico-pastorais, disputadas à época do Vaticano II: a compreensão da “natureza missionária” e do macrossujeito “povo de Deus”, a relação entre o “sacerdócio comum dos fiéis”, o “sacerdócio ordenado” e a missão dos leigos, a questão do ecumenismo e do pluralismo religioso, a missão ad gentes acoplada a um envio específico além-fronteiras dos chamados “arautos da missão”, a relação entre “evangelização explícita” e “evangelização testemunhal” nos serviços e na diaconia das diferentes periferias do mundo.

Vaticano II

O Vaticano II contemplou a atividade e o ser missionário da Igreja basicamente nas constituições Lumen gentium (LG) e Gaudium et spes (GS) e nos decretos Ad gentes (AG) e Apostolicam actuositatem (AA); o diálogo e as relações entre católicos e cristãos não católicos, no decreto Unitatis redintegratio (UR), e o diálogo e as relações com as religiões não cristãs, na declaração Nostra aetate (NA). Esses documentos permitiram assumir novas perspectivas na teologia da missão e reorientar os rumos das atividades missionárias. Resumidamente pode-se considerar cinco passos dados pelo Vaticano II:

1 - Da exclusividade salvífica à partilha universal da graça da salvação

Até a primeira metade do século XX, os arautos da missão eram obrigados, em nome da Igreja, a negar a possibilidade de salvação aos não cristãos. Vale lembrar nesse contexto a Bula Cantate Domino, do Concilium Florentinum, de 1442, e sua afirmação de que ninguém que vive fora da Igreja Católica seria capaz de participar da vida eterna (Denzinger-Schönmetzler, n. 1351). E Francisco Xavier, ainda no ano 1552, não tinha nenhum consolo aos seus interlocutores do Japão a respeito de seus antepassados que, segundo a doutrina da época, estariam todos no inferno. Ao comparar a Bula do Florentinum com textos do Vaticano II, percebe-se facilmente a descontinuidade: “O plano da salvação abrange também aqueles que reconhecem o Criador” (LG), muitas vezes, em religiões não cristãs que “refletem lampejos daquela Verdade que ilumina todos os homens” (NA). De ninguém, que procura “o Deus desconhecido em sombras e imagens, Deus está longe” (LG).

2 - Do eclesiocentrismo à centralidade do Reino

Jesus constituiu os doze “para enviá-los a pregar o Reino de Deus” (LG). A comunidade missionária vive no interior da Igreja Povo de Deus, comunidade constituída por comunidades que vivem sua missão na luta pela vida, enviadas “a pregar o Reino de Deus” (LG), procurando “por toda a parte e em tudo a justiça do reino de Deus” (AA).

A estrutura teológica dessa Igreja-Missão é trinitária porque é "Povo de Deus", "Corpo do Senhor" e "Templo do Espírito Santo" (LG). Por ser essencialmente missionária, ela não vive para si. Converter-se ao Reino é tarefa cotidiana dessa Igreja povo de Deus “para que venha o Reino de Deus e seja instaurada a salvação de toda a humanidade” (GS). Meta e prioridade da Igreja é o Reino de Deus (LG; GS). O anúncio do Reino é historicamente relevante para além da história: “suspira unir-se ao seu Rei na glória” (LG; DAp).

3 - Do território missionário à natureza missionária

O Vaticano II iniciou processos eclesiológicos e pastorais que livraram a missão da Igreja de fixações a territórios geográficos. Desde seu batismo, os cristãos participam da “natureza missionária” como “adeptos do caminho” (At) e seguidores de Jesus Cristo. Ele é o primeiro missionário, enviado por Deus Pai ao mundo (cf. Jo 5,36s). A partir de sua “natureza missionária”, a Igreja procurou assumir o deslocamento de uma Igreja que tem missões territoriais sob a responsabilidade da Congregação pela Propagação da Fé (Propaganda Fide) ou de Ordens Religiosas, missões pelas quais os fiéis fazem coletas e orações, para uma Igreja na qual a missionariedade representa a orientação fundamental de todas as suas atividades e do seu ser, em nível local (nas comunidades), regional (nas dioceses e Conferências Episcopais) e universal (Cúria Romana).

4 - Da “missão ad gentes” à “missão inter gentes”

A expressão “missão ad gentes” pode apontar em duas direções: na dos antigos pagãos, considerados sem verdadeira religião e que seriam hoje os que se declaram ateus, ou na direção de povos de outros continentes ou países nas mais diversas modalidades religiosas.

Hoje, a “missão ad gentes”, de fato, é “missão inter gentes”, missão entre povos e continentes, entre Igrejas locais e comunidades. O paradigma da “missão inter gentes” corresponde ao espírito do Vaticano II porque:

- leva em conta a situação do pluralismo religioso e da diáspora crescente da Igreja;

- enfatiza a responsabilidade da Igreja local para a missão;

- quebra o monopólio de uma Igreja que envia missionários e uma Igreja que os recebe;

- admite a reciprocidade e conversão mútua entre agentes e destinatários da missão e da Igreja em cinco continentes e valoriza o diálogo intercultural e inter-religioso;

- sublinha a missão não como uma atividade entre indivíduos, mas entre comunidades.

5 - Da supervisão à inculturação

Os arautos da missão aprendem a trabalhar e conviver com o cultural e materialmente disponível e reconhecer “nos pobres e sofredores a imagem de seu Fundador pobre e sofredor” (LG). Meios sofisticados e lugares de comando são, muitas vezes, um contratestemunho para a missão. O passo da supervisão à inculturação faz parte da substituição do método dedutivo pelo método indutivo.

Na época conciliar ainda não se usava o conceito “inculturação”. Termos semanticamente próximos do “aggiornamento” e da “adaptação” (SC 37; GS) eram: “autonomia da realidade terrestre” (GS 36; 56) e da cultura, “sinais do tempo” (GS) e “diálogo” (CD; UR), “encarnação” e “solidariedade” (GS). A palavra precursora da inculturação era “assunção”: “Os Santos Padres proclamam constantemente que não foi sanado o que não foi assumido por Cristo” (AG). “Aggiornamento” nas macroestruturas da modernidade e “inculturação” na microestrutura traduzem o conceito “assunção” para hoje. O passo da supervisão, da distância pastoral da realidade do povo de Deus, à inculturação visa mais proximidade e relevância de estruturas, doutrinas, símbolos e liturgias ao povo de Deus. A escassez dos ministérios ordenados da Igreja ainda é uma dificuldade grande para realizar essa proximidade.

IHU On-Line - Como Francisco aborda o processo de missão?

Paulo Suess - Em vez de “aggiornamento”, mas em continuidade com o significado desse paradigma, o Papa Francisco fala de “processos” que representam um aggiornamento permanente e a longo prazo. Os processos da missão obedecem à lógica do crescimento orgânico. Palavras-chave da Evangelização como “acompanhar”, “inserir”, “inculturar”, “evangelizar” apontam sempre a processos de crescimento. Precisamos distinguir entre os processos de mudança cultural, que são lentos (cf. 129), os medos que atrasam “toda a ousadia” (EG) e a urgência da caridade de Cristo (cf. 2 Cor 5,14).

Vivemos numa época de aceleração de todos os processos produtivos. Também os processos pastorais, que se concentram nas mãos de poucos, são marcados por essa aceleração que dificulta o encontro e acompanhamento pastoral. O mundo acelerado valoriza mais a chegada e o resultado final que o caminho e o processo. Mas para a construção de um povo, “o tempo é superior ao espaço” (EG). E Francisco pergunta: “Quais são as pessoas que, no mundo atual, se preocupam realmente mais em gerar processos que construam um povo do que em obter resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis, rápidos e efêmeros?” (EG). A opção pelos processos, que exige desaceleração e participação, “permite trabalhar em longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. […] É um convite a assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo” (EG). A comunidade missionária “acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam” (EG 24) e não abrevia o tempo de sua presença por causa de compromissos acumulados.

Missão

A missão aposta em processos muito além do âmbito estritamente eclesial. A redistribuição da renda, que é uma exigência da justiça, e “o crescimento equitativo exige(m) algo mais do que o crescimento econômico” (EG). Exigem intervenções, freios de emergência e “processos especificamente orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo” (EG). As contradições da vida social sempre geram conflitos. Nossa pedagogia pastoral nos ensina que é necessário transformar o conflito “no elo de ligação de um novo processo” (EG). Para seguir nesta longa estrada, precisamos “adotar os processos possíveis” (EG) e nos lembrar: “A diversidade é bela, quando aceita entrar constantemente num processo de reconciliação até selar uma espécie de pacto cultural que faça surgir uma «diversidade reconciliada»” (230). Ao assumir o processo como categoria histórica da pastoral missionária, a Evangelii Gaudium consegue sintetizar a vida ativa e a gratuidade do dom da vida como horizonte dinâmico de esperança.

IHU On-Line - Em 2014, pela primeira vez na história, foi celebrada a missa criolla na Basílica de São Pedro, no Vaticano. O que significa esse acontecimento?

Paulo Suess - No final da tarde do dia 12 de dezembro de 2014, Festa de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América Latina, o Papa Francisco celebrou a chamada “Misa Criolla” na Basílica de S. Pedro. O Papa não celebrou a “Missa Criolla”; presidiu uma Missa em rito romano, animada pelos cantos da Missa Criolla do compositor argentino Ariel Ramírez cuja apresentação foi dirigida pelo filho, Facundo Ramirez, com seu grupo musical argentino. Participaram na animação musical desta celebração como solista, a cantora argentina Patricia Sosa, e o coro romano Musica Nuova, todos vestidos a rigor. A “Misa Criolla” é a tentativa de síntese entre a música sacra, popular e folclórica, de 1963.

Novo inquilino

Está na lógica de uma “Igreja em saída” às periferias e fascinada pela “alegria do Evangelho” nos meios populares, que ela traz algo de volta, aprendizados de simplicidade, alegria, abertura. O Papa Francisco nos mostra essa reciprocidade do “ir e vir” a cada dia. Ele vai para Lampedusa e recebe migrantes em casa, ele manda construir banheiros para os moradores de rua e os recebe na Capela Sistina. Faz parte da normalidade que assistimos com o novo inquilino do Vaticano.

A Igreja latino-americana, em sua liderança autorizada por Roma, sempre foi uma Igreja de descendentes das migrações europeias, ou dos crioulos que declararam a independência. Nunca foi uma Igreja indígena ou afro-americana. Uma “Misa Criolla” na Basílica de S. Pedro não indica avanços espetaculares de inculturação. Mas, se comparamos a manchete “A emoção do Sanctus da Misa Criolla na Missa do Papa Francisco” com esta outra que nos entristeceu: “Vaticano proibiu a Missa da Terra-sem-Males” sentimos os primeiros resultados de uma “Igreja em saída”. Ainda estamos engatinhando embaixo da mesa da inculturação.

IHU On-Line - Qual a especificidade da atuação de um religioso em comunidades mais distantes? Como a atuação religiosa em comunidades distantes se relaciona ou é feita a partir da ideia de inculturação na perspectiva abordada por Francisco?

Paulo Suess - Depende como se faz a pergunta. Posso perguntar também: “Qual é a atuação de uma comunidade cristã cujo ministro ordenado vive muito distante dela e faz poucas vezes por ano uma visita? Como a atuação religiosa dessas comunidades se relaciona com seus Pastores de Fórmula 1, a partir do paradigma de inculturação segundo Francisco? Eu vivi essa situação 50 anos atrás no interior da Amazônia. Para muitas comunidades faziam-se duas visitas por ano: a viagem de desobriga, perto da Páscoa e, em junho, a viagem de esmolação, perto da Festa da Padroeira (“Na. Sra. da Saúde”, 2 de julho). Na primeira, que no Chile se chama apropriadamente “Correria Apostólica”, o povo devia desobrigar-se de seus pecados, e na segunda, por ocasião da Festa da Padroeira, pedimos esmolas, que representavam a única renda para sustentar o serviço social da paróquia.

As comunidades com Ministros Ordenados de F1 precisam romper a solidão sacramental e tornar-se consciência crítica de uma Igreja que não cumpriu sua própria exigência de construir comunidades com a Eucaristia no centro de sua vida cristã nem cumpriu suas promessas de “presença”, “proximidade”, “acompanhamento” e “encontro”. Inculturação, nessa situação, significaria ordenar “viri probati”, líderes de comunidades para celebrar Eucaristia; significaria lembrar-se do apóstolo Paulo que, quando o labor missionário o levou mais adiante, nunca deixou uma comunidade sem Eucaristia. A multiplicação de ministros ordenados pode ser uma contribuição aos processos de inculturação.

Propostas corajosas

O próprio Papa Francisco pede nessa questão propostas corajosas que devem surgir das regiões e apoiadas pelos bispos locais. Vivemos uma situação rara na Igreja, na qual o Papa é, pastoralmente, mais aberto e sensível que muitos dos seus ministros. A “Misa Criolla” cantada na Catedral de S. Pedro parece caviar para o povo que clama por arroz e feijão: “Nesta linha, se pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6,37), que envolve tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos” (EG). As comunidades sem ministros ordenados reclamam ao lado da solidariedade social e cultural a solidariedade eucarística. E nessa perspectiva devemos também entender a advertência de Francisco: “Não podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adotadas pelos povos europeus num determinado momento da história, porque a fé não se pode confinar dentro dos limites de compreensão e expressão de uma cultura. É indiscutível que uma única cultura não esgota o ministério da redenção de Cristo” (EG).

IHU On-Line - Para Francisco, o que significam os conceitos “cultura” e “povo”?

Paulo Suess - “Culturas” e “povos” apontam para o lugar da subjetividade e criatividade na pluriformidade do mundo e da Igreja. Os dois conceitos que são em si diferentes, são também diferentes em seu uso eclesial que se reflete na fala e escrita de Francisco. Mas as duas noções, às vezes, também se cruzam, por exemplo, quando a Evangelii Gaudium fala do pluralismo dos modelos culturais acolhidos na diversidade dos povos que constituem a Igreja: “Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura, a Igreja exprime sua genuína catolicidade” (EG). Povo é sujeito coletivo e as culturas são criações desses povos (cf. EG).

O conceito “cultura” de Francisco é uma síntese do caleidoscópio cultural que se encontra nos documentos eclesiais nos quais cultura pode ser o projeto histórico de vida de determinada etnia ou de um povo e ao mesmo tempo o projeto de vida de uma nação ou de um continente. Na Evangelii Gaudium, Francisco fala da “noção de cultura” como de “um instrumento precioso para compreender as diversas expressões da vida cristã que existem no povo de Deus. [...] Cada povo, na sua evolução histórica, desenvolve a própria cultura com legítima autonomia (cf. GS 36). [...] O ser humano está sempre culturalmente situado: «natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas» (GS). A graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe” (EG).

Mas a palavra “cultura”, no linguajar eclesial e bergogliano, pode também denominar valores e fenômenos interculturais que se encontram em todos os povos. Assim Francisco fala da cultura dos simples (EG), da cultura profissional (EG) e midiática (EG), da cultura materna (EG), da cultura do «descartável» (EG) e globalizada (EG).

Conflitos

Como muitos documentos eclesiais, também a Evangelii Gaudium propõe, para remediar conflitos macro ou microculturais, a evangelização e a purificação das culturas, como se a própria evangelização não fosse também impregnada de culturas que, por serem históricas, necessitam de purificação.

Também o conceito “povo” tem os múltiplos rostos da tradição eclesial, sobretudo da tradição latino-americana. Para Francisco, povo pode significar povo de Deus que é Igreja e evangeliza (EG) e é evangelizado. “Ser Igreja significa ser povo de Deus” (EG), que “se encarna nos povos da Terra, cada um dos quais tem a sua cultura própria” (EG). Francisco está muito próximo à Teologia do Povo de Deus, desenvolvida pelo Vaticano II. Todos os tópicos relevantes do “Capítulo II: O povo de Deus”, da “Constituição Dogmática Lumen gentium”, encontram-se em seus textos (LG).

Mas, para Francisco, “povo” pode também significar “povo simples”, “povo pobre”, “povo católico” (EG), “povo fiel” (EG), e rebanho (EG). Os direitos individuais devem sempre servir aos direitos coletivos dos povos, sobretudo dos povos pobres que têm um lugar privilegiado no povo de Deus (EG). Nos povos indígenas devemos hoje “reconhecer Cristo sofredor” (EG): “Como São Francisco de Assis, todos nós, cristãos, somos chamados a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos” (EG) e a colaborar na “construção de um povo em paz, justiça e fraternidade” (EG). Nessa construção, Francisco enfatiza, em certo contraste com o individualismo europeu, princípios da teologia latino-americana (EG). Provavelmente sentindo a possibilidade de confundir suas frases de efeito com afirmações populistas, o Papa se distancia: “Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno” (EG).

IHU On-Line - De que forma o Ano Santo da Misericórdia pode contribuir para a luta de povos como os indígenas? Qual seu significado?

Paulo Suess - A pergunta implica a necessidade de fazer a leitura política de um conceito religioso e de aferir a sua “convivência” com o conceito “justiça”. Na vida do Papa Francisco, a misericórdia tem um lugar axial, como mostra seu lema episcopal: “Olhou-o com misericórdia e o escolheu” (miserando atque eligendo). É na casa de Mateus, cobrador de impostos e marginal social, que Jesus defende a misericórdia para com publicanos e pecadores contra o rigorismo dos fariseus. A escolha desse lema tem um vínculo biográfico importante. Foi na festa litúrgica de São Mateus, dia 21 de setembro de 1954, Dia dos Estudantes e do início da primavera, que Jorge Mario Bergoglio sentiu de um modo especial o chamado misericordioso daquele Deus, que “saiu ao seu encontro e o convidou a segui-lo”. Mais tarde, em sua última entrevista radiofônica antes de ser eleito Papa, diria sobre essa experiência que fez nascer sua vocação sacerdotal: “Deus me priorizou. [...] Senti como que se alguém me agarrasse por dentro e me levasse ao confessionário”.

Misericórdia

O Evangelho da misericórdia tem seu lugar na Igreja que prioriza os pobres e que, “pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças” (EG 188). Com Tomás de Aquino, Francisco considera a misericórdia a maior de todas as virtudes: “Em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e [...] remediar as misérias alheias. [...] É por isso que se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua onipotência” (37). Pode-se pensar em três degraus: a injustiça como relação desigual e não recíproca, a justiça como reciprocidade e a misericórdia como gratuidade. A misericórdia amplia a reciprocidade da justiça pela gratuidade. Assim torna-se justiça da ressurreição. Seguindo esse raciocínio podemos dizer: o “Ano Santo da Misericórdia” potencializa a justiça em duas direções: na direção do perdão da dívida do mais fraco e na direção da cobrança da justiça que vai além da mera cobrança da lei que favorece a classe dominante.

O “Ano Santo da Misericórdia” será iniciado no dia 8 de dezembro de 2015, dia do encerramento do Concílio. Parece como um ritual dos Bororo, do Mato Grosso, cujos ritos do encerramento de uma vida sempre são ritos de iniciação festiva e prolongada de um grupo de jovens na vida do povo. O Ano Santo será iniciado com a abertura da Porta Santa na Basílica de São Pedro. A porta será aberta para que a Igreja se torne uma “Igreja em saída”, uma Igreja que se arrisca a um novo encontro com os povos indígenas e supera a recepção morna do Vaticano II com audácia e coragem. “Igreja em saída” significa também Igreja em saída das amarras sistêmicas, significa Igreja profética que arrisca suas adaptações sistêmicas porque se põe ao lado daqueles aos quais no sistema não há lugar.

Por João Vitor Santos e Ricardo Machado

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Por uma Igreja livre das amarras sistêmicas. Entrevista especial com Paulo Suess - Instituto Humanitas Unisinos - IHU