Contextualizando os comentários sobre “ideologia de gênero” do Papa Francisco

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15 Agosto 2016

"Especificamente podemos ouvir mais de perto a afirmação de Francisco de que os países ricos estão injustamente empurrando goela abaixo aos países pobres a ideia de escolha de gênero. Ouvimos Francisco como se ele estivesse falando unicamente sobre as questões de gênero, mas, para o papa, os verdadeiros problemas são o imperialismo cultural do norte e os efeitos ainda potentes do colonialismo" escreve Cristina Traina, professora de estudos religiosos na Northwestern University, Illinois e membro do conselho consultivo do New Ways Ministry, em artigo publicado por Bondings 2.0, 10-08-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

New Ways Ministry é um grupo de defesa e justiça voltado à comunidade católica LGBT e que busca a reconciliação deste grupo com as comunidades cristã e civil mais amplas. Bob Shine escreve frequentemente para o blog Bondings 2.0, um dos projetos do New Ways Ministry.

Eis o artigo.

Na Jornada Mundial da Juventude em Cracóvia no mês passado, o Papa Francisco novamente condenou a ideologia de gênero. A reação por parte dos defensores da comunidade LGBT era, ao mesmo tempo, previsível e compreensível. Mais uma vez, Francisco sustentou o essencialismo de gênero diante de experiências mais complexas vividas pelas pessoas LGBTs. Mais uma vez ele pareceu paternalisticamente preferir uma “fé simples” em detrimento de uma reflexão teológica sofisticada sobre o gênero. E mais uma vez, pareceu apenas repetir as máximas de João Paulo II e Bento XVI.

No entanto, seria muito ruim deixar passar despercebida uma diferença importante nessa posição de Francisco, uma diferença que precisamos compreender se quisermos ter debates sadios a respeito de questões LGBTs com pessoas com tal persuasão. Especificamente podemos ouvir mais de perto a afirmação de Francisco de que os países ricos estão injustamente empurrando goela abaixo aos países pobres a ideia de escolha de gênero. Ouvimos Francisco como se ele estivesse falando unicamente sobre as questões de gênero, mas, para o papa, os verdadeiros problemas são o imperialismo cultural do norte e os efeitos ainda potentes do colonialismo.

A história por trás do dizer “ideologia de gênero” – lema que quase sempre aparece em contexto de coerção dos países pobres – tem a ver com financiamentos para a construção de escolas aos pobres. A aprovação destes financiamentos, Francisco observa, tem estado sujeito a um ministro da educação aceitar e utilizar o livro didático que os financiadores prescrevem, onde “a teoria do gênero era ensinada”. Nas palavras de Francisco:

“Esta é a colonização ideológica: invadem um povo com uma ideia que não tem nada a ver com o povo: com grupos do povo, sim; mas não com o povo. E colonizam o povo com uma ideia que altera ou quer alterar uma mentalidade ou uma estrutura. (…) certos empréstimos, se imponham determinadas condições. (…) Porque falo de ‘colonização ideológica’? Porque agarram-se precisamente à necessidade dum povo: aproveitam-se das crianças para ali entrar e consolidar-se.”

Claro está aí que a situação era coercitiva: se quer pegar dinheiro para atender crianças em necessidade extrema de educação, você irá usar o livro que aprovamos, quer ele faça sentido ou não aos alunos em seu cenário histórico e cultural ou aborde os seus déficits educacionais mais urgentes.

Do ponto de vista de Francisco, os países do norte, que continuam a se beneficiar do colonialismo, não deveriam estar colocando condições intermináveis em quase todas as formas de subvenção e mesmo de empréstimos a juros, o que fazem ao sul global, como se os países do sul precisassem “merecer” o apoio do norte. Pelo contrário, como uma questão de justiça os países do norte deveriam compartilhar livremente a riqueza, o conhecimento acadêmico e outras vantagens que injustamente adquiriram do colonialismo com os seus vizinhos a quem injustamente empobreceram como decorrência disso. Algumas condições que o norte impõe ao auxílio oferecido parecem destinadas a minar o que o papa percebe como os últimos postos avançados de força dos países do sul, isto é, as suas redes familiares, é a última gota.

Não estou defendendo que Francisco não tenha uma visão cultural argentina tradicional de gênero humano como binário. Ele tem. Não estou defendendo que ele tenha demonstrado uma compreensão sutil das experiências de gênero LGBTs. Ele não demonstra. E não estou defendendo que todas as tradições das famílias latino-americanos estejam sempre se fortalecendo. Não é este o caso. Mas precisamos ouvir o que Francisco está dizendo: se quase nada do que o norte global forçou ao sul global tem beneficiado este último, se quase tudo o que o norte global faz está orientado pelo autointeresse e se quase tudo o que ele impôs destruiu os sistemas culturais do sul, por que o papa deveria confiar no norte global na questão do gênero?

Podemos trabalhar, escrever e rezar pela conversão de Francisco sobre esta questão. Mas, enquanto isso, aqui temos a oportunidade para uma resposta criativa à sua frustração legítima com o norte global. Podemos reconhecer que métodos ruins comprometem um conteúdo bom. Por exemplo, apesar de coercitivo, em última análise os métodos de “conversão” malsucedidos do norte, que Bartolomé de Las Casas condenava quase 500 anos atrás, era, em suas palavras, “irritar, perseguir, afligir e despertar” americanos nativos. Alguns do norte conseguiram seguir o seu conselho de empregar “o poder da gentileza, da serviço, da bondade e das palavras do Evangelho para incentivá-los incutir o jugo suave de Cristo”. Ele defendeu isso, e muito mais, defendeu tribunais europeus para os povos nativos americanos. Nem sempre venceu. Mas, graças em parte à sua crítica da coerção, o cristianismo vingou.

Da mesma forma, nós nortistas acreditamos que o Espírito de liberdade e verdade está verdadeiramente atuante entre pessoas LGBTs hoje. No entanto, os nossos governos e as nossas instituições multinacionais são justamente acusados de repetir o pecado da coerção. E se, apesar da nossa marginalização, reconhecêssemos o nosso privilégio e poder relativo? E se usássemos esse poder para fazer lobby não apenas para empréstimos, mas também para indenizações, para o sul global? E se, além de continuarmos as nossas importantes iniciativas no serviço cuidadoso, amável, compassivo a pessoas LGBTs em todo o mundo, usássemos esse poder de convencer os nossos talvez bem-intencionados porém coercitivos governos a serem menos severos? Isso pode funcionar. Como Bartolomé de Las Casas, iremos perder alguns casos. Mas a nossa mensagem também acabará por vingar.

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