Ciência e questões de gênero

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24 Abril 2015

"Os estudos de gênero concordam com o senso comum: pode-se pertencer a determinado sexo e “sentir-se” do outro sexo. Há pessoas com um corpo masculino que se sentem mulheres e vice-versa.", escreve Pietro Greco, laureado em química, jornalista especializado em assuntos científicos, escritor de livros de divulgação científica, em artigo publicado na revista Rocca, nº. 8, 08-04-2015. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o artigo.

Se existe ou não uma “teoria do gênero” (uma ideologia de gênero) é questão muito controversa. Uma coisa é certa: não existe nenhuma “teoria científica do gênero”. Existem, ao invés – há pelo menos sessenta anos – “gender studies” , ”estudos do gênero”: ou seja, estudos interdisciplinares sobre a “identidade de gênero” e sobre a “representação de gênero” que, quase sempre, se sobrepõem aos estudos sobre a sexualidade. Os “gender studies” dizem respeito à análise científica da identidade e da representação de gênero, mas também da sexualidade, feminina, masculina e LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgênero).

Não é fácil reconstruir a origem destes estudos. Alguns os fazem remontar a Sigmund Freud e outros às críticas feitas à teoria psicanalítica pelo austríaco (por exemplo, aquelas de Jacques Lacan). Há quem os considera nascidos em âmbito filosófico, com a publicação, em 1949, da parte de Simone de Beauvoir, de ‘Le Deuxième Sexe’ (O segundo sexo), livro no qual a existencialista francesa sustenta: “Mulher não se nasce, mulher a gente se torna”.

Há quem atribui seu nascimento ao psicólogo e sexólogo John William Money, o qual, em 1955, definiu uma distinção entre sexo biológico e papel de gênero, introduzindo a palavra “gender” (gênero, precisamente) no âmbito da psicologia e da sociologia.

A dificuldade de definir a origem (ou seja, a pluralidade das origens) não e casual. Os “estudos de gênero” são, de fato, muito heterogêneos. Às vezes eles se entrelaçam, mas frequentemente correm em paralelo sem encontrar-se. De modo que, como dissemos, não existe nenhuma teoria unificadora.

Todavia, há um geral acordo em considerar os complexos comportamentos que, de modo direito ou indireto, concernem à esfera sexual como o fruto de pelo menos quatro dimensões diversas, embora não de todo independentes e por sua vez complexos: o sexo biológico, a identidade de gênero e a orientação sexual.

O sexo biológico

No passado era (relativamente) simples distinguir a humanidade em dois sexos bem definidos: o feminino e o masculino. As evidências eram (e são) macroscópicas: dado como eram (e são) órgãos sexuais. Por certo a natureza apresenta ambiguidades. Há espécies de animais nas quais os dois sexos são confusos. E, embora raramente, também entre os Homo sapiens há alguma ambiguidade. Não por acaso, entre os personagens da mitologia grega há um filho de Hermes e de Afrodite, Hermafrodita, que manifesta genitais tanto masculinos como femininos. Hoje a diferença entre os dois sexos é confirmada em nível molecular: são femininos os indivíduos que têm dois cromossomos X e são masculinos aqueles que têm um cromossomo Y e outro X.

Alguém poderia fazer parecer esta como a prova absoluta da existência de dois e somente dois sexos. A dupla de cromossomos sexuais é a essência da diversidade sexual. Mas, a natureza talvez faça blefe das nossas atitudes taxonômicas. Malgrado a clareza da linguagem cromossômica – XX, mulher; XY, homem [macho] – a manifestação dos órgãos sexuais não só cobre um espectro muito amplo por formas e tamanho, mas também pelas qualidades consideradas essenciais.

Em suma, nem sempre é fácil atribuir univocamente as características de um indivíduo a um e a um só dos dois sexos. O espectro vai de qualidades consideradas secundárias (machos sem pelos e fêmeas com pelos) a caracteres considerados primários. Neste segundo caso se fala de hermafroditismo. Um tema que concerne à biologia é aquele dos determinantes genéticos da homossexualidade.

Nasce-se homossexual ou a gente se torna tal? O tema é controverso. Porque não há provas definitivas da existência de genes da homossexualidade. É provável, todavia, que exista um componente genético que predispõe à homossexualidade, o qual se ativa somente em presença de outros cofatores, de natureza ambiental e cultural.

Em suma, já em nível biológico a natureza humana (e não só a humana) manifesta uma dose não banal de ambiguidades. Talvez não seja por acaso. Na natureza a ambiguidade e a diversidade são quase sempre fatores positivos, selecionados no decurso da evolução para melhor sobreviver às mudanças ambientais.

A identidade de gênero

Os estudos de gênero concordam com o senso comum: pode-se pertencer a determinado sexo e “sentir-se” do outro sexo. Há pessoas com um corpo masculino que se sentem mulheres e vice-versa. A identidade de gênero é uma percepção e se refere, portanto, à esfera psicológica. Isso não tolhe que a identidade de gênero tem (pode ter), seja determinantes biológicas, seja determinantes sociais. O entrelaçamento destes fatores não é jamais determinístico.

Como o demonstra a história que teve como coprotagonista John William Money e como protagonista David Reimer.

David nascera homem em Winneping, no Canadá. Mas, por uma circuncisão mal sucedida, havia perdido o seu pênis. A ideia que bastasse somente a presença do órgão genital masculino para definir a identidade masculina levou a família e os médicos a criarem, no corpo de David, um simulacro de órgão genital feminino. Money, depois, como psicólogo e sexólogo, trabalhou para “convencê-lo” a “sentir-se” mulher. Porém, mais tarde, outro sexólogo, de nome Milton Diamond, entendeu que David não se sentia de fato mulher. E assim, o rapaz, na idade de 15 anos, voltou a perceber-se como macho. O epílogo da história – David morreu suicidando-se em 2004, na idade de 39 anos – demonstra quão complexo e dramático seja a relação entre ‘soma’ [corpo] e psique. Naturalmente, há muitos outros casos nos quais a identidade de gênero se encontrou (e se encontra) conflitando com a identidade biológica e com o papel de gênero: ou seja, com aquilo que os outros esperam de ti.

O papel de gênero

O papel de gênero é, realmente, uma construção social. Te comportas como os outros esperam que tu faças. Te comportas como macho porque, tendo os caracteres masculinos prevalentes, as pessoas esperam que tu te comportes como macho, mesmo que tu te sintas mulher. E vice-versa.Ou, ao contrário, reages ao “papel de gênero” que te é impingido, não sem obstáculos e sofrimentos, e afirmas tua “identidade de gênero”.

O papel de gênero, preciso dizê-lo, se refere à dimensão sociológica da pessoa. Mas, certamente não é preciso transcurar os determinantes biológicos e psicológicos. No papel de gênero incidem os estereótipos de gênero: do tipo ‘o macho é caçador’ e a mulher é submissa. O papel de gênero é tão forte que com frequência determina a identidade de gênero. A gente se força a si mesmo, a gene se “sente” de um sexo quando os outros o esperam de ti e a gente se comporta como os outros o esperam de ti. Eis porque Simone de Beauvoir dizia que “não se nasce mulher, mas se torna tal”.

A orientação sexual

Todas as pessoas têm (ou não têm) atração, afeto e amor pelas outras pessoas. Se esta orientação é por pessoas do outro sexo, ela é de tipo heterossexual. Se for para pessoas do mesmo sexo, é de tipo homossexual. Se for para pessoas de ambos os sexos, é bissexual.

Há, enfim, uma orientação que não prevê atração e/ou amor por ninguém.

Na luz de tudo o que dissemos, a orientação sexual pode corresponder ou não ao sexo biológico, à identidade de gênero e ao papel de gênero. E tudo isto com ou sem estresse e até sem sofrimento. Os “estudos de gênero” não dão juízos morais. Não definem o que é “segundo” ou “contra” a natureza.

A boa ciência ajuda os homens, não os julga: e isso em relação a qualquer sexo biológico, identidade de gênero, papel de gênero e orientação sexual. Os juízos morais dizem respeito a outra dimensão, e não àquela estritamente científica. Para juízos morais, vale o que disse o Papa Francisco: quem sou eu, para julgar?

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