Bonhoeffer: Uma Igreja cristocêntrica, koinônica e diaconal: “estando-aí-para-outros”. Entrevista especial com Gerson Lourenço

O teólogo luterano "foi mártir não porque morreu, mas por ter vivido os princípios do Evangelho de Cristo com paixão e ousadia", afirma o pesquisador

Dietrich Bonhoeffer, mártir do nosso tempo Vitral de Dietrich Bonhoeffer, na Polônia | Foto: Tomasz Kmita-Skarsgård - Wikimedia Commons

Por: Patricia Fachin | 11 Abril 2022

 

No atual momento histórico, em que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia contribui para aumentar as incertezas em relação ao futuro e agrava ainda mais a disseminação da pobreza, das desigualdades e da violência, a teologia desenvolvida pelo teólogo luterano Bonhoeffer, mas também sua própria existência, podem jogar luz aos desafios contemporâneos. "Talvez Bonhoeffer fale, sobretudo às pessoas cristãs envolvidas neste conflito, convidando-as ao discernimento da justiça e à resistência, sem cruzar os braços, pautados nos princípios do Reino de Deus, vencendo o medo e as incertezas pela fé", diz Gerson Lourenço na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Segundo Lourenço, Bonhoeffer defendia uma Igreja "imersa na vida concreta", “estando-aí-para-outros”, contemplando a realidade “a partir de baixo”. Em outras palavras, "uma Igreja cristocêntrica, koinônica e diaconal". Ele explica a interrelação entre esses três pontos: "A comunhão (koinonia) seria a consubstanciação de Cristo na realidade humana (cristocentrismo) pelo amor, solidariedade, entrega e serviço ao próximo e a Deus (diaconia). Tratar-se-ia da ideia “de uma Igreja secularizada, porém não secularista; integrada com a realidade, sem, contudo, perder sua identidade; vicária e ao mesmo tempo redentora; silenciosa, mas presente pela ação responsável, levedando a massa".

 

Crítico da relação e da subordinação da Igreja ao Estado, tal como foi proposto durante o nazismo, o papel da Igreja, enquanto corpo de Cristo, na avaliação do teólogo, deveria ocorrer, "através da práxis, do envolvimento nas lutas por causas (em partidos, associações, ONGs etc.) relacionadas à justiça social, bem como da inclusão, considerando a diversidade étnica, de gênero, religiosa. Bonhoeffer esteve atento ao antissemitismo que ocorria em seu tempo, assim como ao nacionalismo xenofóbico e a ascensão perigosa de uma liderança messiânica. Por isso contestou, lutou, foi perseguido, preso e martirizado".

 

Para enfrentar essas questões, o desafio, contudo, pontua Gerson Lourenço, consiste em "retomar uma concepção integrada do humano, sem dissociação das dimensões que constituem sua existência, como a corpórea e a espiritual, indo um pouco mais além: compreendendo que a militância e a oração, por exemplo, são ações conjugadas fruto de uma profunda experiência mística e espiritual, não havendo contradição alguma com as narrativas bíblicas e princípios doutrinários cristãos".

 


Gerson Lourenço (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Gerson Lourenço é graduado em Teologia pelo Instituto Metodista Bennett - PBAT e pelo Seminário César Dacorso Filho, mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio.

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Quais foram as questões teológicas centrais na vida de Bonhoeffer e como elas determinaram suas escolhas e a vivência de sua própria vida?

 

Gerson Lourenço - Dietrich Bonhoeffer se destaca como um importante teólogo do século XX, atento aos acontecimentos que marcaram o contexto histórico no qual viveu. Sua trajetória biográfica, desde quando inicia seus estudos formativos e posterior carreira acadêmica, findando com a sua participação na resistência contra o regime nazista e consequente martírio em 1945, esteve imbricada com o desenvolvimento de suas reflexões teológicas. Estudiosos sobre sua vida e pensamento, como Eberhard Bethge, John D. Godsey, Mary Bosanquet, André Dumas e Prócoro Velasques, demarcam fases desse desenvolvimento, correspondendo a etapas de sua vida, cada qual pontuando ênfases e questões relacionadas aos questionamentos que a realidade lhe despertava.

 

Podemos dividi-las em pelo menos três etapas:

 

• a primeira, que corresponde à iniciação teológica, perpassando pelas primeiras designações pastorais e passagem pelos EUA (1923-1931);

• a segunda, na qual exerce a docência e prática acadêmica em Berlim, atua no movimento ecumênico, inicia as contestações ao nazismo, atua e participa da Igreja Confessante, assume o Seminário de Finkewalde, é exilado, retorna e integra a resistência contra o regime (1931-1940); e

• a terceira, marcada pela atuação militante que culmina com o seu martírio (1940-1945).

 

 

Eclesiologia

 

Ao longo de uma breve carreira, com intensidade e paixão, Bonhoeffer tematizou sobre o cristocentrismo, seguimento (discipulado), ética cristã, secularização e cristianismo arreligioso. Pessoalmente, considerando tanto os escritos e trabalhos da primeira e segunda fase (Comunhão dos santos, Ato e ser, Essência da Igreja, Discipulado, Vida em comunhão), como os que se seguiram na última, publicados postumamente (Ética, Resistência e Submissão), defendo a tese de que o alicerce no qual ergueu tais reflexões fora a eclesiologia. Seu olhar, tal como André Dumas observou, ocupou-se em buscar uma igreja, em sua dimensão latente (utilizando uma categoria de Paul Tillich), para não-religiosos, imersa na vida concreta, “estando-aí-para-outros”, contemplando a realidade “a partir de baixo”: reflexões dispostas e propostas na última etapa da trajetória bonhoefferiana, denominada por Eberhard Bethge como Nova Teologia, precisamente em um esboço para uma obra manuscrita na prisão, em 1944. Eu diria se tratar do ponto convergente de uma concepção eclesiológica com a fase derradeira e mais amadurecida do seu pensamento.

Em um ensaio de síntese, Bonhoeffer concebeu um conceito de Igreja calcado na comunhão dos santos, compreendida enquanto lugar da revelação, representação de Cristo e imersa no mundo. Portanto, uma Igreja cristocêntrica, koinônica e diaconal. A comunhão (koinonia) seria a consubstanciação de Cristo na realidade humana (cristocentrismo) pelo amor, solidariedade, entrega e serviço ao próximo e a Deus (diaconia). Tratar-se-ia da ideia “de uma Igreja secularizada, porém não secularista; integrada com a realidade, sem, contudo, perder sua identidade; vicária e ao mesmo tempo redentora; silenciosa, mas presente pela ação responsável, levedando a massa”.

 

 

IHU - Em que consistiu a oposição de Bonhoeffer ao Terceiro Reich e como ele pode inspirar os cristãos diante dos governos totalitários atuais?

 

Gerson Lourenço - Quando Adolf Hitler foi designado chanceler do III Reich, em 30 de janeiro de 1933, Dietrich Bonhoeffer se opôs radicalmente por algumas razões. Uma fora a vinculação das denominações cristãs (protestantes e católica) na Alemanha com o Estado, levando-o a integrar a Igreja Confessante constituída por clérigos e leigos evangélicos que não aprovavam o chamado “Princípio do Líder” (Führerprinzip), ou seja, a incorporação das igrejas no projeto do Nacional Socialismo Alemão. É importante salientar que esse movimento eclesiástico foi duramente perseguido, alguns pastores encarcerados, até o seu fim em 1937. Outro motivo foi o antissemitismo, já prefigurado com a promulgação da “Lei Ariana”, em 7 de abril de 1933, que decretou a demissão de todos os servidores públicos não-arianos (judeus de fé, de descendência e seus respectivos cônjuges) das repartições do Estado.

Em 1938, se exilou nos EUA, mas retornou no ano seguinte, passando a integrar o círculo de conspiração da Abwer, liderada pelo Almirante Wilhelm Canaris. Em 1940, Bonhoeffer foi proibido de lecionar e discursar em território alemão, militando em favor da resistência através da busca pelo apoio do movimento ecumênico para a rendição da Alemanha na Segunda Grande Guerra, entre 1941 e 1942. Em 1943, após falharem dois atentados contra Hitler, dos quais consentiu e participou da articulação, foi encarcerado, sendo mantido sob a custódia do Estado Alemão até sua execução, em 9 de abril de 1945.

 

Caminho da luta

 

Há quem indague sobre essa participação direta de Bonhoeffer em um círculo de conspiração contra um regime político. Creio que seja pertinente avaliar, em primeiro lugar, que não fora um regime baseado na democracia e na governança justa, sendo antes totalitário e genocida. Em segundo lugar, como alternativa ao exílio, quiçá passivo, em outro país, enquanto as injustiças e perseguições ocorriam na Alemanha de Hitler, Bonhoeffer preferiu o caminho da luta como a última alternativa para frear as rodas da opressão.

 

Esse engajamento foi prenunciado antes, no mesmo ano da ascensão de Hitler, em 1933, quando frente ao antissemitismo e à aliança eclesiástica com o Estado, adotando os mesmos princípios supremacistas no que foi denominado como “Parágrafo Ariano”, ele discursou a respeito sobre que papel a Igreja deveria desempenhar, sustentando que esta deveria indagar sobre a legitimidade do Estado, sobre o seu compromisso com as vítimas da tirania do regime e a responsabilidade de cuidar não somente das “vítimas da roda, mas de atirar nos raios dessa roda”.

 

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Nesse sentido, identifico seu testemunho como uma forte e luminosa inspiração para a militância como voz e atuação proféticas em contestação a qualquer forma de governo que, na atualidade, assuma pautas tirânicas, antidemocráticas, negacionistas e excludentes. Por vezes é preciso ir além da assistência como Igreja, se envolvendo e partindo para a participação ativa, direta e concreta na transformação da realidade.

 

 

IHU - Hoje, o mundo está presenciando mais uma guerra, agora entre Ucrânia a Rússia. O que a teologia, o testemunho e a vida de Bonhoeffer podem dizer aos cristãos envolvidos neste conflito neste momento?

 

Gerson Lourenço - Acredito que em um conflito internacional há sempre pautas que convençam os envolvidos sobre sua legitimidade. O ponto chave é, em um contexto de pluralidade de ideias, definir e discernir os critérios que tornem uma declaração de guerra legítima. O testemunho de Bonhoeffer, somado ao que propunha e tematizava teologicamente à Igreja, ressaltam os princípios de justiça e igualdade cristãos pelos quais se vive até as últimas consequências, assumindo o que chamou de “custo da graça”. A defesa desses princípios seria o critério de discernimento para o envolvimento em determinada causa social e política.

 

Guerra

 

Particularmente, em se tratando da guerra deflagrada entre a Ucrânia e Rússia, devemos tomar o cuidado com as precipitações para uma análise conjuntural. O contexto é bem distinto daquele da Segunda Grande Guerra, podendo ser identificado um rastro herdado pela geopolítica dos tempos da Guerra Fria, com uma série de aspectos particulares e agravantes entre as nações do Leste Europeu após o fim do que ficou denominado como “socialismo real”. Contudo, o que em última instância podemos cogitar sobre o que é justo e legítimo e que justificaria a dizimação de pessoas cidadãs, a invasão e destruição de uma nação? Nem sempre o justificável é justo e legítimo. Por outro lado, haveria sempre a alternativa do caminho do diálogo e consenso, porém suplantado muitas vezes pelos interesses e sede de poder hegemônico, gerando incertezas e medo.

Talvez Bonhoeffer fale, sobretudo às pessoas cristãs envolvidas neste conflito, convidando-as ao discernimento da justiça e à resistência, sem cruzar os braços, pautados nos princípios do Reino de Deus, vencendo o medo e as incertezas pela fé, tal como registrou em uma de suas orações:

Deus, a ti clamo de manhã bem cedo. Ajuda-me a orar e concentrar meus pensamentos; não consigo fazer isso sozinho. Dentro de mim está escuro, mas em ti há luz. Estou só, mas tu não me abandonas. Eu estou desanimado, mas em ti há luz. Estou só, mas tu não me abandonas. Eu estou desanimado, mas em ti há auxílio, eu estou inquieto, mas em ti há paz. Em mim há amargura, mas em ti há paciência. Não entendo os teus caminhos, mas tu conheces o caminho certo para mim.

 

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IHU - Em sua atuação política, muitos cristãos tomam partido em relação a governos, defendendo-os a qualquer custo. Que luzes Bonhoeffer joga na Igreja a fim de inspirá-la em sua práxis política e social e na sua relação com o poder político?

 

Gerson Lourenço - Pois bem, conforme ressaltei acima, seria necessário o discernimento segundo os critérios de justiça, igualdade, inclusividade e democracia que inspiraram Bonhoeffer para lançar luzes sobre a atuação pública (social e política) da Igreja na atualidade, fundamentalmente no cenário político no nosso país, hoje também palco de associações entre representantes de instituições eclesiásticas com o poder vigente. Há uma participação ativa e partidária de evangélicos e católicos nos parlamentos municipais, estaduais e federal. Essa atuação estaria alinhada a quais princípios? Qual seria a adjetivação do envolvimento político partidário das representações eclesiásticas: conservadora e retrograda ou profético-libertadora?

 

 

Igreja X Estado

 

Não vejo problema na defesa de um governo que exerça o poder de maneira democrática, a favor da vida, garantido o acesso de todos à saúde, moradia, ao trabalho, com inclusividade e justiça. Contudo, para Bonhoeffer a Igreja não deveria estar associada ao Estado. Em uma de suas palestras, A essência da Igreja, realizada na Universidade de Berlim, em 1932, pontuou que a Igreja não é o Estado e o Estado não é a Igreja. A fronteira da obediência ao Estado estará onde a Palavra for ameaçada. A crítica à Igreja e ao Estado provém apenas do Evangelho. Essa dissociação é fundamental como garantia de isenção de qualquer compromisso espúrio com governos totalitários e antidemocráticos, ao mesmo tempo que crítica a outras formas de governo que se pautem pelo princípio democrático. Esse seria, em parte, o papel político cristão.

 

 

Práxis

 

Outra parte do desempenho desse papel, além de crítica das ações do Estado, seria através da práxis, do envolvimento nas lutas por causas (em partidos, associações, ONGs etc.) relacionadas à justiça social, bem como da inclusão, considerando a diversidade étnica, de gênero, religiosa. Bonhoeffer esteve atento ao antissemitismo que ocorria em seu tempo, assim como ao nacionalismo xenofóbico e a ascensão perigosa de uma liderança messiânica. Por isso contestou, lutou, foi perseguido, preso e martirizado. Será que a defesa partidária ou de determinadas lideranças por parte de muitos cristãos, atentando para as ideologias e projetos necropolíticos e aporofóbicos (ou ausência destes) como distorcionantes dos princípios do Evangelho, não destoa de uma práxis libertadora? Novamente vejo aqui uma luminosa inspiração e discernimento lançados por Bonhoeffer à atuação cristã política e social nos tempos hodiernos, convidando a abraçar as causas e lutas por justiça e igualdade.

 

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IHU - Quais são os desafios das igrejas cristãs hoje em sua missão de assumir uma postura que conjugue a confissão de fé e o compromisso social?

 

Gerson Lourenço - Fundamentalmente seria assumir as pautas da luta pela justiça social e dos Direitos Humanos como testemunho cristão na sociedade, tais como da igualdade étnico-racial, dos sem-teto, dos sem-terra, da igualdade de gênero, da população LGBTQIA+, dos imigrantes compreendidos como a imanência de Cristo revelada na concreção da realidade. No âmbito da política, sobretudo no Brasil, vejo como outro grande desafio da superação do messianismo que, conjugada com o projeto de poder em determinados segmentos cristãos, conduz a associações espúrias, conforme mencionei, distanciados dos ideais de justiça e paz do Evangelho.

Entendo que, da mesma forma que a voz profética de Dietrich Bonhoeffer clamou no contexto da Segunda Grande Guerra, nos tempos atuais a Igreja seria instada a ser uma voz de quem se encontra à margem, das vítimas da engrenagem que fabrica a desigualdade, exclusão e morte.

 

A Vida Religiosa Consagrada no mundo (pós)pandêmico. Presença solidária onde a vida clama

 

 

IHU - Muitos cristãos ainda compreendem a vivência da sua espiritualidade como algo separado, à parte da própria prática social e militante, ou até como algo secundário. A que atribui essa desconexão e como a conjugação desses dois elementos pode inspirar a vivência da vida cristã?

 

Gerson Lourenço - Eu tive a oportunidade de contar com um grande mestre da antropologia teológica, Alfonso Garcia Rúbio, da PUC-Rio, que continuamente evidenciava o dualismo legado ao cristianismo ocidental como extremamente comprometedor para a nossa espiritualidade. Talvez aqui esteja a raiz da desconexão entre militância e vivência da espiritualidade de muitos cristãos. O desafio seria retomar uma concepção integrada do humano, sem dissociação das dimensões que constituem sua existência, como a corpórea e a espiritual, indo um pouco mais além: compreendendo que a militância e a oração, por exemplo, são ações conjugadas fruto de uma profunda experiência mística e espiritual, não havendo contradição alguma com as narrativas bíblicas e princípios doutrinários cristãos.


Em Bonhoeffer encontramos essa conjugação, podendo afirmar ter sido ele portador de uma profunda experiência espiritual kenótica, militante e vicária-martirial. Quando propõe uma Igreja para não-religiosos, propõe na verdade um mergulho na realidade secularizada, sem um “rótulo denominacional”, como expressão da vivência de fé e dedicação ao Evangelho, resgatando a “disciplina arcana”, ou seja, as fontes primitivas das experiências de fé cristã. Nesse sentido, seria importante apreender uma noção de espiritualidade para além do lugar privilegiado da instituição religiosa, como fenômeno presente em todo gênero humano fomentador do encantamento pela vida e engajamento nas causas em prol da transformação das realidades.

 

 

IHU - Em 1932, Bonhoeffer participou da Conferência Internacional da Juventude, em Gland, na Suíça, cujo tema de sua palestra foi “A Igreja está morta”. Qual é o conteúdo desta conferência? Em que sentido ele fez esta afirmação?

 

Gerson Lourenço - No ano anterior, em 1931, na Conferência de Cambridge, Inglaterra, Bonhoeffer foi eleito Secretário para a Juventude da Aliança Mundial, ramo do movimento ecumênico que se formou no contexto da Primeira Grande Guerra e seguiu se fortalecendo, se tratando de uma das iniciativas embrionárias do que se constituiu mais tarde, em 1947, no Conselho Mundial de Igrejas - CMI. A partir de então participou das conferências que seguiram, sendo a de Gland, Suíça, a segunda.

O teor desse discurso é a denúncia da falência do discurso e ação das igrejas diante do contexto mundial da época marcado por conflitos, ódio entre as nações cristãs, recrudescimento das desigualdades, da fome, da pobreza e da aliança das denominações religiosas com os poderes do Estado, preocupadas tão somente com a sua preservação institucional. Bonhoeffer enfatizou a retomada do cristocentrismo e o testemunho da fé em Cristo como essenciais:

Em tudo o que dizemos e fazemos, não estamos preocupados com nada além de Cristo e sua honra entre as pessoas. Que ninguém pense que estamos preocupados com nossa própria causa, com uma visão particular do mundo, uma teologia definida ou mesmo com a honra da igreja. Estamos preocupados com Cristo e nada mais. Deixe Cristo ser Cristo.

Finalizando, atento ao contexto conflituoso que a Igreja vivenciava, afirmou:

A igreja também sabe que não há paz a menos que a justiça e a verdade sejam preservadas. Uma paz que prejudica a justiça e a verdade não é paz, e a igreja de Cristo deve protestar contra tal paz. Pode haver uma paz que é pior do que a luta. Mas deve ser uma luta por amor ao outro, uma luta do espírito, e não da carne.

 

 

Longe de propor o divórcio ou apostasia eclesial, Bonhoeffer criticou o testemunho cristão em seu tempo, tanto em seu país, como ao redor do mundo, de forma profética. Talvez embebido pelo que defendeu em sua tese A comunhão dos santos, seu clamor fora no sentido de que a Igreja deveria ser Cristo vivendo em comunidade. A Igreja falhava nesse testemunho e apostolado, alheia ao custo da graça preciosa e envio ao mundo.

 

Crer em Deus. A fé cristã num mundo pós-teísta

 

 

IHU - Qual é a atualidade desta afirmação hoje?

 

Gerson Lourenço - Não estaria a Igreja atravessando uma crise em sua missão profética e enquanto testemunha da graça hoje em dia? Em um contexto de pluralismo e diversidade, também marcado pelo signo dos conflitos, acrescido pelas atitudes e posturas intolerantes, discriminadoras, xenofóbicas e aporofóbicas, em que medida as igrejas cristãs estão envolvidas com ardor e paixão como mediações da graça transformadora ou comprometidas com poderes vigentes antagônicos aos princípios do Reino de Deus, ocupadas tão somente com sua autopreservação?

Institucionalmente, em sua dimensão eclesiástica (visível, na concepção de Lutero), burocrática, a assunção do discurso da prosperidade e a adoção de uma religiosidade mercadológica por alguns segmentos cristãos, históricos ou de movimentos religiosos mais recentes, somado aos projetos de poder e alianças com o ultraconservadorismo de alguns setores da política, emolduram uma crise de identidade e ética da Igreja. Ela sinaliza sua falência e morte, não respondendo aos desafios e aflições dos sujeitos caros para uma teologia que segue o caminho do “olhar a partir de baixo”, a saber: os pobres, excluídos e necessitados.

Essa Igreja está morta hoje, mas viva em experiências comuniais, eclesiais, pautadas na expectativa da construção de uma nova realidade através de movimentos religiosos ou não que clamem por justiça e dignidade.

 

 

IHU - Qual era a posição de Bonhoeffer sobre o que é chamado de "ética cristã"?

 

Gerson Lourenço - Postumamente publicado, em 1948, Bonhoeffer desenvolveu uma reflexão a respeito na obra Ética, tratando-se de fragmentos manuscritos esboçados, iniciados, desenvolvidos e interrompidos entre os anos de 1940 e 1943 que exprimem suas inquietações a respeito da ética cristã despertadas após a conclusão de Discipulado. Seu projeto consistia preliminarmente, conforme o sumário datado de 1940, em duas partes: a primeira, que estabelecia o embasamento teológico como o desenvolvimento dos temas ética como formação, herança e decadência, culpa e justificação, Igreja e mundo, Cristo e os mandamentos, as penúltimas e as últimas coisas e o novo ser humano; a segunda, ocupada com a estrutura relacionando-a com a vida pessoal, as classes e ministérios, as comunidades, a Igreja e a vida cristã no mundo.

Em resumo, Bonhoeffer apresenta como princípio supremo e fundamento a vontade de Deus que se estabelece na forma de Jesus Cristo, entendendo que Cristo toma a forma da Igreja, tornando o corpo de Cristo o ponto de partida para a ética cristã. O desafio dessa ética seria fazer que a realidade da Revelação de Deus em Jesus Cristo, suprema revelação do seu amor, se realize nas criaturas. Para ele não há senão uma realidade, a realidade de Deus que se torna manifesta em Jesus Cristo e está presente na realidade deste mundo, sendo a Igreja o lugar onde a realidade de Deus é sinalizada concretizada e confirmada ao mundo pelas ações de justiça e paz.

 

 

IHU - Que papel a Igreja desempenhava na relação dos crentes com Deus, segundo Bonhoeffer?

 

Gerson Lourenço - Segundo a perspectiva bonhoefferiana, integrar a Igreja seria diferente de fazer parte de uma comunidade religiosa. Enquanto esta se impõe como ideal da experiência, aquela se apresenta como realidade da fé, como comunidade de amor vivido a partir da fé em Cristo e direcionado ao próximo. A Igreja, como espaço de vida em comunhão, evidenciando-se dessa forma como a configuração de Cristo no mundo, teria uma função mediadora da graça entre os seus fiéis e testemunhal ao mundo.

Pela vivência comunitária e responsável da fé na e pela Igreja, na e pela comunidade de fé, é operada a salvação.

 

 

IHU - Que mensagem Bonhoeffer deixa para os não-crentes? Como, através de sua teologia e vida, é possível interpelá-los?

 

Gerson Lourenço - Seria possível, sim, através da teologia e testemunho de Bonhoeffer, interpelar não professantes da fé cristã. Para além de uma espiritualidade confinada ao interior de uma confissão religiosa, é possível identificar sua experiência espiritual com a mística profética de anúncio, denúncia e engajamento que extrapola os limites de determinada denominação cristã ou confissão religiosa, sendo a motivação de todo humanista militante. Resgatando o ponto de vista antropológico sobre mística, fé e espiritualidade, estes seriam aspectos integrantes de todo gênero humano impulsionando a atitudes éticas radicais.

Tal pulsão profética, que se apresentou como uma voz dissonante nos tempos sombrios da Segunda Grande Guerra, talvez ecoe hoje em dia nos clamores seculares de grupos como “Black Lives Matter”, “Cadê Amarildo”, “Não há cura para o que não é doença”, “Respeite meu axé”. Essas expressões talvez sejam a Igreja para os não-religiosos, que abraça de forma comunial, engajada e martirial as expectativas de construção de uma nova realidade.

 

 

IHU - Deseja acrescentar algo?

 

Gerson Lourenço - Dietrich Bonhoeffer soube integrar a fé com os desafios que a realidade impunha. Expressou a radicalidade da espiritualidade cristã e uma postura ética e firme contra a tirania em seu tempo, confiante na graça e presença divinas em todos os meandros de sua existência. Foi mártir não porque morreu, mas por ter vivido os princípios do Evangelho de Cristo com paixão e ousadia.

Gostaria de encerrar compartilhando a última estrofe do poema Por bons poderes, escrito em dezembro de 1944 no cárcere, no qual exprime sua confiança e sinaliza o testemunho da fidelidade de Deus:

 

Por bons poderes maravilhosamente protegidos,
esperamos consolados o que nos será trazido.
Deus está conosco de noite e de manhã,
e com toda a certeza a cada novo amanhã.

 

POEMA De bons poderes:

 

 

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