Bonhoeffer e a ação de Cristo na história. Artigo de Giovanni Chifari

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31 Janeiro 2017

“Para Bonhoeffer, a presença eucarística de Cristo não apresentou o perfil sacramental, mas se manifestou mediante o sacrifício da própria existência.”

A opinião é do teólogo italiano Giovanni Chifari, professor do Instituto Superior de Ciências Religiosas de Foggia, Itália, em artigo publicado no sítio Vatican Insider, 27-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Por ocasião do “Dia da Memória”, (celebrado no dia 27 de janeiro, nota de IHU On-Line) na certeza de que há vidas e testemunhos que manifestam a renovada presença de Deus na história, falando a pessoas e Igrejas, pretendemos nos deter sobre a diaconia martirial do teólogo Dietrich Bonhoeffer. Interrogamo-nos, particularmente, sobre algumas intuições relacionadas com a sua ação concreta contra o regime nazista. E, portanto, sobre como amadureceu nele a escolha moral de se opor a Hitler e sobre quais são os critérios e as constantes da sua ação como pessoa de fé.

Uma vida marcada pela fé e pela busca da vontade de Deus. Uma existência teológica e teologal, ícone da passagem de Deus pela história e do Seu desejo de falar com as pessoas e com as Igrejas. Dietrich Bonhoeffer é tudo isso e ainda mais. Personagem poliédrico, nada fácil de interpretar, por ser refratário às tentativas de enquadramento, muitas vezes projeções de quem pesquisa, e também imune a leituras ou capturas ideologicamente orientadas.

A sua vida foi um dom para as Igrejas e, como tal, deve ser lida com uma metodologia histórico-teológica. Revendo vários escritos, de Bethge a Dumas, de Mancini a Sorrentino e a Gallas, para citar alguns, uma leitura convincente e ainda atual me pareceu ser a de Giuseppe Bellia no seu Elogio del frammento. Invito all’etica conversando con Bonhoeffer [Elogio do fragmento. Convite à ética conversando com Bonhoeffer], Assis: Cittadella, 1992.

Compreender Bonhoeffer e o seu testemunho, de fato, não pode se limitar a traçar um perfil sedutor e cativante, ideológico ou espiritualizante, mas, a partir dos fatos, precisa saber ler a obra da graça, aquilo que o Espírito atuou nele e diz através dele. O estudo de Bellia, que se vale da rica literatura não só italiana, vai nessa direção, fornecendo intuições iluminadoras.

O itinerário biográfico espiritual do teólogo resistente é conjugado em “vida e tempos”, reconstrução dos fatos e busca daquele “paradoxo” da ação da graça e, portanto, da passagem de Deus; e uma vida marcada não por “reviravoltas”, mas por “estações”. E isso porque é o próprio Bonhoeffer que o faz, em uma carta do dia 20 de julho de 1944, depois de receber a notícia do atentado fracassado ao Führer, percebendo a sua vida como um desenrolar de “estações rumo à liberdade” (RR, 448). Estações que remetem a quatro “tempos”: disciplina, ação, dor e morte.

Uma formação sapiencial fundada no primado da Palavra e aberta àquela paideia da cultura clássica e à do seu tempo está na base da educação do jovem teólogo e, depois, professor que, no fim de 1930, começa a amadurecer algumas formas de resistência e agir comprometidas contra o nazismo.

Um primeiro e concreto posicionamento ocorre quando o teólogo resistente percebe a confusão e a desorientação do seu povo e vê a sua Igreja entrar em acordo com o regime. Entre as expressões mais significativas, temos a “Confissão de Bethel” (1933) e, depois, a “Liga de Emergência dos Pastores”, até chegar ao ritmo “conventual” do seminário de formação para os pastores da Igreja Confessante em Finkewalde (1935).

Para além das sugestões goethianas sobre o primado da ação e os adágios de Lutero, a resposta de Bonhoeffer se concretiza, portanto, no seguimento de Cristo, com o qual ele propunha à Igreja da “Reforma” o valor bíblico do discipulado.

Como conciliar tudo isso com o seu ingresso nos círculos da resistência e os contatos com os conspiradores (fevereiro de 1939)? Realmente, um seguimos incomum de discípulo que, escreve Bellia, “quer resistir ativamente ao poder esmagador das forças do mal contra o qual razão não pode fazer nada” (p. 57). Com efeito, o regime estava educando intencionalmente ao mal; daí, para Bonhoeffer, a sofrida decisão pela ação, que ele vê como resposta à vida de Cristo. Ele anota no texto “Essência da Igreja”: “(Cristo) também está como homem diante do irmão na relativa exemplaridade humana. Como tal, ele ensina, aconselha, indica certas condições” (EC, 88).

Centralidade cristológica, que, em sintonia com o que Lutero afirmava, retomando Agostinho, vê Cristo como donum et exemplum. Pessoa modelo (Vorbild) e fonte de cada escolha. Bonhoeffer escreveria ainda: “Diante dele (Cristo) cada um decide sozinho o que ele deve fazer” (Sanctorum Communio, 189).

A escolha do teólogo contrasta com a doutrina luterana dos “dois Reinos” e se torna proposta profética de uma consciência que amadureceu uma fatigante unidade entre pensamento e ação. Não é por acaso que, na prisão, ele escreve a “Ética”. É Cristo, de fato, o limite e a norma do seu agir. Bonhoeffer vai experimentar isso em breve, mediante o ingresso naquela estação do sofrimento que ele vai reconhecer como possibilidade de participação na dor da humanidade.

Percepção que pode ser lida em uma perspectiva mística, Bonhoeffer, naqueles anos, e ele não estava sozinho, participa com a sua existência no sofrimento vicário de Cristo. Alguns milhares de quilômetros mais ao sul, em uma pequena cidadezinha de Gargano, um humilde frade, há já um quarto de século, tinha feito uma oferta vitimal da própria vida ao Senhor. Em Bonhoeffer, de Tegel a Flossenburg, essa participação vicária amadureceria cada vez mais como ação nascida do abandono confiante do discípulo, do consentimento do intelecto e da obediência do coração.

Bellia tem razão quando escreve que “se poderia dizer que a ação, a partir da inicial, voluntária sola fide, amadurece na resposta místico-ascética do discípulo, para se tornar participação plena na quenose de Deus na história. A ação ética se tornará, então, vicária: será a ação de Cristo no seu discípulo” (p. 53).

Parábola de uma existência teológico-espiritual que certamente continua interpelando. Onde quer que haja o primado da escuta e, portanto, a acolhida do silêncio, a Palavra ainda pode ressoar em toda a sua força e pode-se encontrar Cristo. Então, encontra-se a martyria de uma fé viva, não sonolenta, não anestesiada.

A compreensão das Escrituras também leva a reconhecer Cristo em uma presença eucarística que, para Bonhoeffer, não apresentou o perfil sacramental, mas se manifestou mediante o sacrifício da sua existência.

Em abril de 1943, a prisão, as duras provas interiores, o refúgio na oração e na meditação atravessando o tempo do Getsêmani e do silêncio de Deus. E, depois, em Flossenburg, o serviço como pastor e o testemunho prestado aos irmãos, enfrentando com abandono de discípulo a morte ocorrida em abril de 1945, poucos dias antes do fim do conflito mundial.

O luteranismo, com o sacrifício de Bonhoeffer, que tinha anunciado a chegada de uma nova era de mártires para a sua Igreja, sentiu-se chamado a reconsiderar o valor de um discipulado feito em testemunho aos homens do seu tempo. “Não devemos nos surpreender que também para a mesmo Igreja volte o tempo em que será exigido o sangue dos mártires. Mas esse sangue não será tão inocente e luminoso como a das primeiras testemunhas. Sobre o nosso sangue, estará o peso de uma grande culpa nossa: a culpa do servo inútil” (“Os Escritos”, p. 153).

O seu martírio como conformação a Cristo, porém, fala a todas as Igrejas como sinal da graça divina, e as palavras escritas nas suas cartas do cárcere constituem, talvez, o ponto mais alto da sua diaconia martirial: “Quando se renunciou totalmente a fazer algo consigo mesmo – um santo, um pecador convertido ou um homem da Igreja (a chamada figura sacerdotal!), um justo ou um injusto, um doente ou um são [...] então lançamo-nos inteiramente nos braços de Deus, então finalmente levam-se a sério não os sofrimentos próprios, mas os de Deus no mundo, então se vigia com Cristo no Getsêmani, e, penso eu, esta é a fé, esta é a metanoia; e assim nos tornamos homens, cristãos” (RR, 446).

Palavras que evocam uma densa passagem da Lumen gentium: “ A Igreja recorda-se também da recomendação com que o Apóstolo, incitando os fiéis à caridade, os exorta a ter sentimentos semelhantes aos de Jesus Cristo, o qual ‘Se despojou a Si próprio, tomando a condição de escravo... feito obediente até à morte’ (Fl 2, 7-8) e, ‘sendo rico, por nós Se fez pobre’ (2Co 8,9). Sendo necessário que sempre e em todo o tempo os discípulos imitem essa caridade e humildade de Cristo, e delas deem testemunho, a mãe Igreja alegra-se de encontrar no seu seio muitos homens e mulheres que seguem mais de perto a aniquilação do Salvador e, mais claramente, o manifestam, abraçando a pobreza na liberdade dos filhos de Deus e renunciando às próprias vontades: em matéria de perfeição, sujeitam-se, por amor de Deus, ao homem, para além do que é de obrigação, a fim de mais plenamente se conformarem a Cristo obediente” (LG 42).

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