O “ser-aquém” do cristianismo. Carta de Dietrich Bonhoeffer para Eberhard Bethge

E. Bethge e D. Bonhoeffer, em 1939 | Foto: https://www.dietrich-bonhoeffer.net/bonhoeffer-umfeld/eberhard-bethge/

16 Abril 2021

 

Publicamos aqui a carta escrita pelo teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer escrita a seu amigo Eberhard Bethge no dia 21 de julho de 1944, alguns meses antes de ser enforcado pelo regime nazista no campo de concentração de Flossenbürg.

A carta foi publicada por L’Osservatore Romano, 09-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Caro Eberhard,

Hoje quero enviar-te apenas esta breve saudação. Acho que, com o pensamento, tu quererias estar tão frequentemente e tão intensamente aqui conosco, a ponto de ser feliz com todos os sinais de vida, mesmo que, por uma vez, o diálogo teológico se cale.

Com efeito, as reflexões teológicas me envolvem incessantemente, mas também há momentos em que faço com que os processos irrefletidos da vida e da fé me bastem. Então, alcança-se a alegria muito simplesmente com as leituras do dia, assim como me aconteceu, por exemplo, de modo particular, para as de ontem e de hoje, e voltamos aos belos Lieder de Paul Gerhardt, contentes com tamanha riqueza.

 

 Campo de concentração de Flössenburg (Foto: Wikimedia Commons)

 

Nos últimos anos, aprendi a conhecer e a compreender cada vez mais a profundidade do ser-aquém (Diesseitigkeit) do cristianismo; o cristão não é um homo religiosus, mas um homem simplesmente, assim como Jesus – certamente ao contrário de João Batista – era homem. Não me refiro ao plano e banal ser-aquém dos iluminados, dos atarefados, dos indolentes ou dos lascivos, mas ao profundo ser-aquém que é cheio de disciplina e no qual está sempre presente o conhecimento da morte e da ressurreição. Eu acredito que Lutero viveu em tal ser-aquém.

Lembro-me de uma conversa que tive há 13 anos nos Estados Unidos com um jovem pastor francês. Havíamos simplesmente nos perguntado o que efetivamente queríamos fazer da nossa vida. Ele disse: “Eu gostaria de me tornar santo” (e eu acho que é possível que ele tenha se tornado um); naquela época, isso me impressionou muito. No entanto, eu o contestei e respondi mais ou menos assim: “Eu gostaria de aprender a crer”.

Por muito tempo, não entendi a profundidade dessa contraposição. Eu achava que poderia aprender a crer tentando levar, eu mesmo, algo semelhante a uma vida santa. Como conclusão desse caminho, escrevi Nachfolge(“Discipulado”, Ed. Sinodal). Hoje, vejo claramente os perigos desse livro, que assino como um antes.

 

 

Mais tarde, aprendi e continuo aprendendo até agora que só se aprende a crer no pleno ser-aquém da vida. Quando renunciamos completamente a fazer algo de nós mesmos – um santo, um pecador arrependido ou um homem da Igreja (uma assim chamada figura sacerdotal), um justo ou um injusto, um doente ou um sadio – e é isso que eu chamo de ser-aquém, isto é, viver na plenitude dos compromissos, dos problemas, dos sucessos e dos insucessos, das experiências, das perplexidades – então jogamo-nos completamente nos braços de Deus, então não levamos mais a sério os próprios sofrimentos, mas os sofrimentos de Deus no mundo, então vigiamos com Cristo no Getsêmani, e, creio eu, esta é a fé, está a μετάνοια (metanoia), e assim nos tornamos homens, nos tornamos cristãos (cf. Jeremias 45). Por que deveríamos nos orgulhar com os sucessos ou perder a cabeça pelos insucessos, quando no aquém da vida participamos do sofrimento de Deus?

Tu entendes o que eu quero dizer, mesmo que eu o diga assim em poucas palavras. Agradeço por ter tido a possibilidade de entender isso e sei que só pude entendê-lo percorrendo o caminho que tomei em seu tempo. Por isso, penso com reconhecimento e em paz nas coisas passadas e nas presentes.

Talvez, tu te admirarás com uma carta tão pessoal. Mas, desejando, enfim, dizer algo assim, a quem mais deveria dizer? Talvez chegará o tempo em que poderei falar desse modo também com Maria; espero muito isso. Mas agora não posso pretender tal coisa dela.

Deus nos guie com benevolência através destes tempos; mas, acima de tudo, guie-nos até Ele.

Provocou-me um grandíssimo prazer o bilhete que me enviaste e fico contente que não esteja tão calor aí entre vocês. De minha parte, ainda há muitas cartas que deveriam te chegar. Em 1936, não percorremos, talvez, mais ou menos este trecho da estrada?

Fica bem, cuida da tua saúde e não percas a esperança de que todos nos veremos de novo em breve.

Com fidelidade e gratidão, pensando sempre em ti,

O teu Dietrich

 

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