O bem da relação sexual. Geração, comunidade de vida, amor e bênção. Artigo de Andrea Grillo

Foto: Pixabay

22 Março 2021

 

"A Igreja não põe nem impõe o bem: acima de tudo, reconhece-o e recebe-o. Por isso, a questão decisiva não seria qual o poder da Igreja sobre a bênção, mas sim qual a autoridade que o bem real e o bem possível exercem sobre a própria Igreja".

A opinião é de Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 19-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

As relações pessoais, as comunidades de vida e as alianças esponsais foram interpretadas durante séculos com a categoria do “bem”, precisamente porque, desde o início, houve a tentação de as ler como um “mal”. Não é por acaso que a primeira grande síntese sobre o matrimônio, escrita por Santo Agostinho, tinha como título “De bono coniugali”.

Quando superamos a ideia de que o matrimônio é um mal – mas esta havia sido a tentação de uma parte do cristianismo antigo que permaneceu oculta até L. Tolstói e além – e se, assim, também pudermos superar a ideia de que o único “esposo” de cada homem ou mulher só pode ser Cristo e que, portanto, todo “outro” matrimônio é ilícito ou pecaminoso, entramos na consideração do matrimônio como um “bem”, ou seja, na teoria dos “bens do matrimônio”.

Agostinho nos forneceu uma apresentação sintética disso, que fez escola por muitos séculos: os três bens do matrimônio são os filhos, a fidelidade e o sacramento (ou seja, a indissolubilidade). O primado da geração é claríssimo para Agostinho, pois é a verdadeira justificativa central da vida matrimonial. Se alguém for incapaz de continência, a destinação à geração torna o ato sexual lícito. Mas não há apenas a “geração”, mas também a “fidelidade” e o “vínculo para sempre”. Para Agostinho, ser fiel e ligar-se para sempre já tem a sua dignidade própria, mesmo que não haja geração.

 

 

 

Os três bens do matrimônio ou, melhor, quatro

 

Por longos séculos, essa representação do matrimônio, justificada pela geração, permaneceu central. Pelo menos até o código de 1917 – e assim oficialmente até 1983 – a definição do vínculo matrimonial como “ius in corpus” de cada um dos cônjuges sobre o outro mostra a centralidade do ato de união sexual como justificativa teológica do matrimônio. Deve-se acrescentar que, ainda a partir de Agostinho, a distinção entre “bens em si” e “bens para o outro” colocou o matrimônio “em função” tanto da geração quanto da amizade social.

Mas, com o mundo tardo-moderno, outra forma de compreender a relação entre homem e mulher foi ganhando força. Ora, no matrimônio, cada sujeito, além de gerar filhos, encontrava no bem do outro e no bem próprio em relação ao outro um valor decisivo. A consideração do próprio prazer da carne perdia o caráter de concupiscência a ser freada e de intemperança a ser contida para assumir o caráter de expressão e experiência do amor. Até levar a própria Igreja Católica, a partir do Concílio Vaticano II, a falar do matrimônio como “comunidade de vida e de amor” e, assim, a acrescentar aos clássicos tria bona de que Agostinho havia falado um quarto “bonum coniugum”, o bem dos cônjuges. Nesse horizonte, obviamente, muitas coisas estavam destinadas a mudar.

 

A geração perde a exclusividade

 

A personalização do matrimônio e da família não é indolor, pelo menos para os teólogos. A centralidade da geração começava a ser contestada, e se falava oficialmente, pelo menos a partir da Humanae vitae, de “procriação responsável” ou de “paternidade e maternidade responsáveis”. Um certo “controle” da geração tornava-se possível e razoável, em coerência com a nova relevância do bem dos sujeitos casados. Isso, do ponto de vista de um pensamento sistemático, alterava profundamente o sistema latino, que Agostinho havia inaugurado com autoridade e cuja síntese havia atravessado com grande força mais de um milênio e meio de história.

No entanto, não é frequente tirar as devidas consequências sistemáticas dessa grande transformação: ou seja, é custoso admitir que, se a geração é absolutamente central, é evidente que a relação entre homem e mulher só pode ser “ordenada” se o “jus in corpus” é exercido dentro do matrimônio. Portanto, se o sexo é justificado pela geração, é evidente que apenas o matrimônio é o lugar de exercício do sexo.

Porém, se a relação entre homem e mulher tem em si um valor de “bem”, o exercício da sexualidade adquire uma certa autonomia, não só da geração, mas também do matrimônio. Torna-se um “bem” sem necessariamente ter que estar ligado à geração.

 

 

 

Do uso do sexo à experiência da sexualidade

 

Esse desenvolvimento absolutamente não impede que hoje também se possa reconhecer no matrimônio a unidade complexa desses quatro bens (geração, bem dos cônjuges, fidelidade e indissolubilidade), mas não exclui que possa haver formas de vida, uniões (hetero ou também homossexuais) em que estejam presentes apenas alguns desses bens. Que permanecem como bens, mesmo que não estejam no horizonte da geração. Geram amizade social, fidelidade, paz, mesmo que não gerem filhos.

A primeira questão que devemos levantar, então, é: é possível que um homem e uma mulher vivam a fidelidade, a indissolubilidade e o cuidado recíproco sem gerar? Isso absolutamente não é impossível, pelo contrário, é real e pode até assumir a forma matrimonial, até mesmo sacramental, desde que a “ausência de geração” não seja vivida e apresentada como uma escolha explícita. Assim é desde os tempos de Agostinho. O “não poder gerar” não impede o sacramento.

Mas, mesmo no caso de a não geração ser explicitamente desejada, e, portanto, de o sacramento ter que ser excluído, o que impediria já hoje de abençoar, na união não sacramental, os bens que existem, ao invés de amaldiçoar pelo bem que não existe?

Aqui se encontra um ponto delicadíssimo da recente tradição moral: se o “mal menor” ou o “bem possível” pode ser considerado uma “desordem” e, portanto, um pecado, ou, ao invés disso, uma “outra ordem”, um “bem menor”.

 

 

 

Só um único bem pode ser abençoado?

 

Recordemos que, em 2010, houve uma polêmica em torno de algumas afirmações de Bento XVI a respeito do uso do preservativo por parte de um “prostituto”, que, em determinadas circunstâncias, podia ser considerado como um “ato moral”.

Gostaria de aplicar o mesmo exemplo não no que diz respeito ao juízo moral, mas naquilo que concerne ao discernimento pastoral. Levantemos o caso-limite em que, na vida de um “prostituto” ou de uma “prostituta”, seja expressamente desejada – diríamos por ofício – a ausência de geração, a óbvia falta de fidelidade, mas se viva uma relação estável, de caráter hetero ou homossexual, na qual um cuida do outro e quer o bem do outro.

Por que é que essa “comunidade de vida e de amor”, percebida não como ocasional, mas com uma estabilidade adquirida própria, fora de qualquer perspectiva sacramental, não poderia ser reconhecida e abençoada? E, se pudesse ser abençoada, isso não poderia ser válido a fortiori também para a vida não comprometida de um homem e uma mulher, ou de dois homens, ou de duas mulheres, que vivem a sua infecundidade natural forçada ou desejada, mas que são fecundos na relação pessoal, social, cultural e eclesial?

Se faltassem três dos quatro bens que constituem a relação matrimonial, mas o subsistente fosse realmente um bem, uma forma de “viver para o outro” e de “abnegação”, ainda que em meio aos possíveis desastres dos outros três, não seria precisamente a Igreja o lugar ideal para um profético reconhecimento, ao invés do tribunal severo de um julgamento de exclusão?

 

 

 

O centro e a periferia: as diversas linguagens da Igreja

 

Mas como os ministros da Igreja deveriam se apresentar e se sentir nesse caso? Como funcionários de uma instituição que leva e impõe o centro para todas as periferias? Ou como homens de Deus que levam para o centro todas as periferias mais remotas e isoladas?

A Igreja não põe nem impõe o bem: acima de tudo, reconhece-o e recebe-o. Por isso, a questão decisiva – que eventualmente deveria ser submetida ao juízo eclesial de uma Congregação – não seria qual o poder da Igreja sobre a bênção, mas sim qual a autoridade que o bem real e o bem possível exercem sobre a própria Igreja.

A primeira pergunta é a de uma Igrejafechada no seu centro”; a segunda é a de uma Igreja verdadeiramente em saída, universal, convicta de ter um centro eucarístico , mas também um corpo sacramental e, enfim, uma periferia e um “fora de si” a ser solicitado no louvor, na ação de graças e na bênção. Uma Igreja que sabe que pode e deve falar com linguagens diversas no seu centro, no seu corpo estendido e nas margens mais externas da sua periferia.

Quanta semelhança poderia reencontrar em si mesma, à imitação do seu Esposo e Senhor, uma Igreja que estivesse acostumada a comer com as prostitutas e os publicanos, que soubesse parar para conversar com mulheres de muitos maridos, que não perdesse a oportunidade de se entreter com cegos de nascença e com pobres doentes, nos quais ela sempre saberia descobrir – sem muita surpresa e com magnânima abertura – o rosto repleto de esperança das “primícias do Reino”.

 

Leia mais