Bênção e poder: uma confusão ilícita. Artigo de Andrea Grillo

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16 Março 2021

O que aparece no responsum sobre a bênção aos casais homossexuais é um “dispositivo de bloqueio”: a tradição permanece fechada e só pode ser conservada em um museu. A realidade que muda não tem poder algum para modificar as noções e os procedimentos adquiridos.

A opinião é de Andrea Grillo, teólogo leigo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 15-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Um responsum é um ato clássico de uma Congregação. Só compromete quem o assina. Pode pedir todas as bênçãos e as intercessões do caso, mas continua sendo apenas a resposta a uma pergunta.

O responsum dessa segunda-feira, 15 de março de 2021, que pode ser lido aqui na íntegra, é suscitado por esta pergunta: “A Igreja dispõe do poder de abençoar as uniões de pessoas do mesmo sexo?”, e a resposta diz “não”.

Os responsa também podem encerrar aí. Pergunta e resposta telegráficas. Às vezes, eles têm uma parte de motivação, que, neste caso, se articula em diversos níveis. Em cada um desses níveis, pode-se notar a utilização de uma série de categorias, de noções e de referências que permanecem muito aquém daquilo que é perguntado.

Acima de tudo porque a Congregação parece ser vítima da pergunta que lhe é feita. É bastante surpreendente que um escritório que segue a tradição de um Mestre de “respostas surpreendentes” e de “perspectivas inesperadas” permaneça tão bloqueado e quase vinculado por uma pergunta enganosa. Porque a primeira coisa que deveria ter sido respondida, perante tal pergunta, é que ela foi mal feita. Porque é uma pergunta sobre o “poder”, mas pretende falar de “bênção”, que é um ato de reconhecimento, não de poder.

Aqui, acredito eu, um pouquinho de trabalho sistemático deveria ter sugerido aos escritores do texto que saíssem de uma perspectiva estreita demais: poderes para conceder bênçãos, poderes para aplicar missas, poderes para perdoar penas são uma linguagem muito condicionada e muito provinciana. Esse modo de falar da “esfera litúrgico-sacramental” é demasiadamente marcado, histórica e burocraticamente, por preocupações de “controle” e não consegue entrar realmente na pergunta, que, apesar da sua formulação tendenciosa, poderia ter recebido uma resposta mais alta.

Mas há um segundo ponto em que a pergunta é unilateral. Porque dá a entender que há uma “pergunta de poder maior” – pergunta que vem da experiência eclesial – à qual a instituição pode responder com um ato de soberana renúncia. Dizendo: “Não, não temos o poder”.

Esse é um sistema refinado, um dispositivo sutil, muito útil para subverter a realidade: uma Igreja que não consegue “sair de si”, “entrar no real”, para manter todo o poder, exatamente como o fez até ontem, lê tudo aquilo que lhe pediria um suplemento de intelecto e de coração como objeto proibido, por causa de uma “ausência de poder”.

O que aparece aqui, de uma forma extremamente clara, é um “dispositivo de bloqueio”: a tradição permanece fechada e só pode ser conservada em um museu. A realidade que muda não tem poder algum para modificar as noções e os procedimentos adquiridos.

A formulação da resposta, dominada por uma pergunta distorcida, acaba nos “baixios” de uma sistemática ainda mais distorcida do que a pergunta. As passagens são claras: não se pode abençoar uma relação que é “objetivamente desordenada”. O fato de se ler a “relação homossexual” como “desordem” é o recurso catequético de quem quer manter a escrivaninha em ordem, não muito mais do que isso. Mas, para mudar de perspectiva, não é preciso inventar uma nova Igreja: basta atualizar a biblioteca da Congregação.

Limito-me aqui a recordar apenas três distinções que a Igreja já elaborou há muito tempo e que parecem não ser conhecidas dos redatores do responsum:

a) é verdade que os sacramentais, assim como a bênção, têm uma certa “analogia” com os sacramentos, mas, se forem interpretados como um “ato eficaz” mais do que como um “rito eclesial de valorização do bem”, podem induzir a pedir “condições” muito semelhantes à “comunhão eclesial”. A bênção não é um sacramento, porque não pede nada aos sujeitos, nem mesmo o batismo. Diz o bem e reconhece o bem que existe. Se a analogia com os sacramentos for levada a ponto de pedir, para uma bênção da relação, as condições de uma “bênção nupcial”, isso se torna um erro sistemático pelo qual se paga caro, porque causa um maximalismo de abordagem insuperável. Teria sido muito mais cavalheiresco e sábio insistir na diferença entre bênção e bênção nupcial. Mas as distinções não parecem ser um terreno sobre qual a Congregação está interessada a ensinar alguma coisa.

b) o fato de as condições da bênção de uma “relação de casal” se referirem à “condição matrimonial” – e portanto descubram o pecado em toda relação externa ao matrimônio – torna inutilizável, de fato, a bênção como instrumento de “ponte” entre o coração da Igreja e a sua periferia. Mas as bênçãos são precisamente isso, ou seja, a linguagem mais elementar com que a tradição fala radicalmente a todos: aos navios e aos canhões, aos estábulos e aos céus, aos casais e aos indivíduos, de todos os modos nos quais estes podem ser “capazes de bem”. Não transformar toda a experiência eclesial no “coração eucarístico” da Igreja, que obviamente tem as suas bravas exigências, é outra distinção que teria sido útil, mas ficou esquecida.

c) a ideia de que, ao abençoar uma relação, a Igreja realiza um ato de “reconhecimento oficial” da sua bondade no plano público torna o responsum incapaz de permanecer fiel, precisamente no plano sistemático, à questão em jogo. Ou seja, se realmente, mesmo ao abençoar, a Igreja pode sair daquela atitude que a Amoris laetitia define como “mesquinha” (AL 303). Ou seja, a pretensão de que haja uma “objetividade institucional” que subtrai da Igreja todo poder pastoral. Primeiro a “irregularidade dos concubinos”, depois a dos “divorciados recasados”, agora a dos “casais homossexuais”: se tudo for abordado com a ânsia de uma lei pedagógica que tudo assume e controla, a Igreja não poderá sair de uma posição de “superoficial público”. Só mudando de perspectiva é possível ler de outra forma a realidade de todos os casais. Porque “família” não é apenas uma questão de “lícito/ilícito”, mas também uma condição de fato e um dom imerecido. Por isso, aquilo que os oficiais públicos consideram ilegal pode se tornar nutritivo e luminoso não só para os sujeitos que o pedem, mas também para a Igreja que os acompanha. Contanto que não haja mais apenas uma Igreja na qual os ministros se resignem a ser simples funcionários, sem ter mais nenhuma capacidade de profecia e com um discernimento reduzido à escrupulosa aplicação de um código.

Uma pergunta mal feita teria sido a oportunidade para oferecer pelo menos algumas distinções fecundas. A única distinção que aparece, em vez disso, é a costumeira consolação “espiritual” em um ato “institucional”. Ninguém é discriminado – ai de se pensar nisso –, mas todos são reduzidos à impotência. A vida está em outro lugar.

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