02 Outubro 2017
Ao longo do pontificado do Papa Francisco, os relatórios de Roma mencionaram frequentemente o fato de que, em relação à elaboração de documentos, o Santo Padre preferiu consultar seus próprios conselheiros a depender da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), o que levou dicastério ao isolamento. Além isso, há relatos de que, desde a eleição de Francisco, a congregação teve menos rigor na ação contra teólogos dissidentes.
A entrevista é de Edward Pentin, publicada por National Catholic Register, 28-09-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Qual a importância da CDF - até a década de 60, o mais importante departamento do Vaticano - na vida da Igreja hoje? Para descobrir, no dia 13 de setembro o National Catholic Register sentou com o Cardeal Gerhard Müller, que atuou como prefeito da congregação por cinco anos, até o Papa Francisco decidir não renovar seu mandato, em julho, por razões que, segundo o cardeal, nunca foram explicadas a ele.
Nesta extensa entrevista, o Cardeal Müller critica o que descreve como carreiristas e oportunistas, que ele diz estarem semeando a discórdia na Cúria Romana e que mancharam seu nome. Ele também discute os perigos de ignorar o CDF, particularmente no processo de redação de documentos pontifícios, como a exortação apostólica do Papa sobre a família, Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), e como uma percepção do medo está impedindo que mais pessoas, particularmente sacerdotes, seminaristas e professores, se atrevam a criticar abertamente aspectos desse pontificado.
Ele também compartilha sua opinião sobre a dubia (cinco questões colocadas ao Papa por quatro cardeais, visando esclarecer as passagens de Amoris Laetitia),a autoridade dos conselheiros mais próximos do Papa e os perigos que alguns deles apresentam invocando o Espírito Santo para justificar suas posições, consideradas por alguns estudiosos como propagação de heresia.
Sua Eminência, no mês passado, foi relatado que, desde 2013, nenhuma ação foi tomada contra teólogos dissidentes. Isso é verdade?
Esta observação não está correta. A abordagem da Congregação para a Doutrina da Fé, desde as mudanças do Concílio Vaticano II, é a primeira a promover a fé - e a segunda a defendê-la. Em alguns casos, agimos como um tribunal para delitos contra a fé e a moral. Mas, no meu tempo, houve casos em que tivemos primeiro que dialogar com alguns teólogos para resolver os problemas de uma maneira fraterna. Mas acho que não houve nenhuma mudança absoluta no papel da congregação. Deve continuar a defender a fé contra as heresias, cismas e outros delitos contra a unidade da Igreja e a santidade dos sacramentos, tudo de acordo com a constituição apostólica Pastor Bonus (1988).
Então, não houve, pelo menos publicamente, casos de teólogos dissidentes disciplinados nos últimos quatro anos?
Muitas vezes, houve reprovações contra nós no ano passado, que pertencem a uma visão anacrônica da CDF, que não se assemelha ao papel e ao trabalho da congregação nos tempos modernos. Havia um grupo de chamados ativistas progressistas, que publicizaram contra nós, dizendo que a existência da congregação é um retrocesso aos dias da Inquisição. São velhas obsessões que remontam ao ano de 1968. Agora, as mesmas pessoas dizem que tiveram sucesso em intervir junto ao "seu" Papa, que a congregação não está fazendo seu trabalho, mas não é verdade. Abordamos alguns casos envolvendo visões e teólogos problemáticos. Por exemplo, não pudemos dar a nihil obstat em alguns - poucos - casos.
Há exemplos de teólogos que foram disciplinados nos últimos anos, que talvez não ficamos sabendo?
Não, não posso dar nomes, porque estão sob sigilo pontifício, mas a minha impressão da situação nos últimos cinco anos é que não houve nenhuma mudança no papel da congregação.
Muito se conversou sobre a destruição da congregação, mesmo isoladamente, durante este pontificado. No entanto, o Santo Padre prefere consultar seus conselheiros, como seu confidente Arcebispo Victor Fernandez, reitor da Pontifícia Universidade Católica da Argentina em Buenos Aires. Essas pessoas estão conduzindo a doutrina, e a CDF está ficando de lado?
Ouvi dizer que o Papa está próximo de certos teólogos, mas não podem ter a pretensão de ser intérpretes autoritários do Papa. Se o arcebispo Fernandez fizer uma declaração, por exemplo, é apenas em privado. Não tem mais peso do que as declarações de outros bispos - e certamente para toda a Igreja, ele não tem autoridade magisterial - e, portanto, não possui mais autoridade para mim do que qualquer outra voz teológica.
Mas ao escrever um documento comoAmoris Laetitia, como mostram as evidências, suas opiniões tornam-se autoritárias?
Não sei se ele foi ghostwriter [profissional especializado na colaboração da redação de um texto] do oitavo capítulo de Amoris Laetitia [o capítulo altamente discutido, entre outras coisas, por permitir a Sagrada Comunhão para os divorciados que casaram novamente em alguns poucos casos especiais]. É um texto do Papa, não de Victor Fernandez ou qualquer outro ghostwriter. Os documentos magisteriais resultam de um processo de preparação teológica, e, anteriormente, recebemos os nomes de teólogos que haviam elaborado um rascunho ou acrescentado quaisquer pontos ou reflexões. Mas, no final, o que é decisivo é a autoridade do Papa. A exortação apostólica do Papa Francisco, e tudo o que ele diz sobre a doutrina, tem autoridade magistral. É vinculativo, de acordo com o alcance dessa determinada declaração. Não contém nenhum "novo dogma", é, antes disso, uma exposição de dogma realizado e ensinado pela Igreja.
Em Amoris Laetitia, não existe nova doutrina ou explicação de pontos jurídicos da doutrina, mas a aceitação da doutrina da Igreja e dos sacramentos. A única questão é a sua aplicação pastoral em situações extraordinárias. O Papa não pode - e nem vai - mudar a doutrina ou os sacramentos. O que ele quer é ajudar os casais em circunstâncias muito difíceis, como um bom pastor, mas de acordo com a palavra de Deus.
O senhor diz que não sabe por que o Papa não renovou seu mandato como prefeito, mas será que pode ser porque há uma onda de heterodoxia nos níveis mais altos, e o senhor não se encaixou nisso porque era considerado ortodoxo? E há Amoris Laetitia e o fato de sua interpretação divergir das afirmadas pelos conselheiros mais próximos do Papa e, tendo em vista seus comentários sobre o assunto, muito possivelmente pelo próprio Papa. Será que poderia ser esse o motivo do término do seu mandato?
Não sei, porque nenhuma explicação chegou até mim. O Papa só me encontrou numa audiência privada de rotina, no final do meu mandato, para discutir o trabalho da congregação e disse: "É isso". Todas as outras explicações que saíram na mídia são especulações. É verdade que, há algum tempo, o Papa me disse que alguns de seus "amigos" haviam dito que "Müller é inimigo do Papa". Suponho que sejam acusações anônimas, e o anonimato dos acusadores sugere que não estavam preparados para discutir seus argumentos de forma honesta e aberta. O uso de tais táticas dissimuladas é sempre prejudicial para a vida da Igreja e para o funcionamento da Cúria. Olhando para a história, vemos que os tribunais são muitas vezes prejudicados por essas intrigas, o que o próprio Papa condenou muito veementemente como um mal de longa data na Cúria Romana. Ele assegurou que não se deve levar esses boatos em consideração.
Para o bem da Cúria e da Igreja, deve haver diálogo aberto. Devo refutar todas as calúnias que se originaram em partes da imprensa, ou de certos círculos ultramontanistas e Vaticanistas, e este grupo anônimo de falsos "amigos" em torno do Santo Padre que questionaram minha lealdade. Durante toda a minha vida de sacerdote, teólogo e bispo, trabalhei para o Reino de Deus e sua Santa Igreja. E me considerar um inimigo do sucessor de São Pedro é completamente louco e injusto.
Ao longo dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, como teólogo e bispo, fui acusado por pessoas com uma atitude antirromana de estar muito próximo do papa e de não ter mantido uma distância crítica a Roma. É certamente irônico que essas mesmas pessoas me acusem agora de ser inimigo do Papa. Obviamente, estamos diante de um comportamento oportunista. O maior perigo para o Papa hoje em dia são esses oportunistas, carreiristas e falsos amigos que não se preocupam com o bem da Igreja, mas com seus próprios interesses financeiros e ascensão.
O senhor acha que os conselhos dados ao Papa por essas pessoas ao redor são ruins, ou sua saída é uma manifestação de sua própria vontade?
Não sei. Como eu disse, não recebi nenhuma explicação para minha demissão, e seria errado especular. Mas mantenho firmemente a minha fidelidade ao Papa Francisco, a quem me dediquei como leal colaborador. Neste ano de comemoração da revolução protestante contra o primado da Santa Igreja Romana, publiquei um estudo histórico e teológico sobre a missão do Papa como sucessor de São Pedro. Portanto, não é como se eu não soubesse da importância do papado na Igreja de Jesus Cristo. O importante é que temos que amar a Igreja porque ela é a Noiva de Cristo. Amá-la significa que às vezes temos que sofrer com ela, porque em seus membros ela não é perfeita, e, por isso, permanecemos leais apesar das decepções. No final, é como somos aos olhos de Deus que interessa, e não como os homens nos veem.
Enquanto o senhor era prefeito da CDF, havia relatórios dizendo que a congregação fez correções a vários rascunhos de documentos papais, particularmente Amoris Laetitia, e também à exortação apostólica do Papa Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho), mas que foram ignorados.
Não temos o direito na congregação de corrigir o Santo Padre, isso é muito claro, mas é normal que os primeiros rascunhos tenham um comentário oficial da congregação. A respeito de Amoris Laetitia, eu não sei quem fez a redação final (edição final), as últimas correções, nem a edição.
Incomoda-o que suas correções nesses documentos tenham sido ignoradas?
Nem todas foram ignoradas - o Santo Padre não é obrigado a aceitar nossas correções, mas não sei quem fez a síntese de todos os textos e os leva ao Santo Padre. Se fosse assim, as mesmas pessoas que fizeram o primeiro rascunho também elaborando a redação final e decidindo se aceitam ou não as sugestões, seria muito bagunçado. O Santo Padre não pode fazer pessoalmente toda a elaboração de diferentes sugestões desta e de outras congregações, de outros teólogos. Ele é livre para perguntar a quem for. Se você for um teólogo da congregação e o Santo Padre lhe pedir que faça um rascunho, deve distinguir entre sua própria teologia pessoal e o trabalho que vai produzir, para ser um documento do magistério papal. É preciso ser muito humilde na preparação de um texto, sempre cuidando para não aproveitar a oportunidade para introduzir seu próprio ponto de vista e louvar ou elogiar a si mesmo como o famoso conselheiro do Papa. Quanto mais responsabilidades, mais discreto você tem que ser.
Considerando a redução da congregação, por que ela continua sendo importante? Se está sendo despojada de seu papel principal, por que é necessária?
Na atmosfera atual da Igreja Católica, há muitos preconceitos contra a congregação, baseados em equívocos e mitos. Para algumas pessoas, a CDF evoca imagens de filmes de Hollywood sobre a Inquisição, mortes na fogueira, etc. O que aconteceu ou não séculos atrás é uma questão para os historiadores, mas não tem relação com o trabalho da congregação hoje, que é apoiar o Santo Padre em sua missão em 2017. Mas algumas pessoas não entendem o que é o consistório de todos os cardeais, nem o ensino teológico que sustenta o papel da Cúria Romana. Não é apenas burocracia ou um aparelho funcional.
Os cardeais representam a Santa Igreja Romana. O Papa é o líder da Igreja Romana, que é a ecclesia principalis (a Igreja principal) na comunhão de todas as dioceses, bispos e igrejas em todo o mundo.
Com o passar do tempo, desenvolveu-se este grupo de clérigos romanos para atuar não só junto à diocese de Roma, mas em serviço ao Santo Padre para toda a Igreja. À medida que esse corpo dos principais clérigos da Igreja Romana evoluiu, os cardeais formaram um colégio; e agora têm o importante papel de eleger o Papa e ser seus principais conselheiros e colaboradores.
No século XVI, houve uma divisão de responsabilidades, de modo que um grupo recebeu o controle da doutrina, outro da indicação dos futuros bispos, outro da liturgia. Mas quando consideramos a missão da Igreja, fica claro que a Congregação para a Doutrina da Fé é a mais importante porque a missão da Igreja está pregando o Evangelho da verdade da revelação.
O Santo Padre, como sucessor de São Pedro, tem que unir a Igreja. Sua missão e tarefa é proclamar: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mateus 16:16). Todas as outras verdades incluem-se nesta realidade cristológica, em relação ao Deus Triúno e na revelação de Cristo a nós como o Redentor de toda a humanidade. Por isso a congregação é tão importante para o Santo Padre. Ele faz certo em cumprir sua missão com a ajuda da Santa Igreja Romana na forma da congregação de 25 cardeais, alguns bispos, funcionários e muitos consultores.
O senhor acha que isso se perdeu?
Não se perdeu, mas temo que não exista uma ideia clara do status eclesiológico da Igreja Romana na forma da congregação dos cardeais e da Cúria Romana. Alguns pensam que o papa pode pessoalmente fazer o que quiser por sua soberania absoluta, mas não é verdade.
Ele é o "Servo dos Servos de Deus".
Ele é, e o papel do Papa como chefe do Estado do Vaticano não tem nada que ver com o de Papa como o chefe notório da Igreja, o principal da unidade da Igreja na verdade revelada. A independência do Papa dos poderes mundanos é necessária para sua missão, mas ele não é independente da lei moral. Ele é, de fato, o primeiro intérprete da lei moral natural.
Como o primeiro e o último, o principal e mais importante intérprete dessa revelação de Deus em Jesus Cristo, não é uma pessoa isolada, é líder da Igreja Romana - e, portanto, depende da cooperação qualificada e comprometida da Igreja Romana, na forma dos cardeais e dos dicastérios da Cúria Romana.
Acha que os frutos dessa redução da CDF e do papado é o motivo pelo qual que estamos vendo esse caos e essa confusão, em que os bispos têm interpretações diferentes e, segundo alguns teólogos argumentam, heréticas de Amoris Laetitia, por exemplo? É por causa dessa ignorância, ou falta de respeito, ao que a Igreja representa?
Eu acho que o Papa não deve ser culpabilizado por essa confusão, mas ele é autorizado por Jesus Cristo para superá-la. O papa, como bispo da primeira Igreja apostólica na comunhão mundial das Igrejas Católicas, é o princípio e fundamento perpétuo da unidade da Igreja na fé e na comunhão no amor (Lumen Gentium 18).
Ele é conhecido por ser atento à mídia e, portanto, deve saber o que está acontecendo. Não pode-se dizer, portanto, que cabe a ele alinhar isso ao interesse da unidade da Igreja, e que é responsabilidade dele, e dele apenas?
Não quero criticá-lo, nem publicamente nem em particular. Mas sou livre para dizer o que acho que é o melhor para a Igreja. Fiz algumas intervenções no meu escritório, como prefeito da congregação, explicando que a única interpretação verdadeira e correta de Amoris Laetitia - o que, em geral, é muito bom e a favor do matrimônio - é a interpretação ortodoxa, pela qual queremos dizer: a partir da Sagrada Escritura, da Tradição apostólica e das decisões definitivas do magistério papal e episcopal, que é contínuo até agora. Em nenhum lugar Amoris Laetitia exige que os fiéis acreditem em qualquer coisa contra o dogma, porque a indissolubilidade do matrimônio é muito clara. A única questão é se, em alguns casos, o verdadeiro matrimônio existe no contexto de hoje, em uma cultura em que sua definição é muito diferente daquilo que a Igreja ensina.
É problemático que o Papa forneça suas próprias interpretações, que parecem estar em desacordo com a interpretação ortodoxa que o senhor defende, como a carta aos bispos argentinos e os elogios aos bispos malteses?
No caso da carta aos bispos argentinos, se o Papa está escrevendo uma carta pessoal e privada, não é um documento doutrinal oficial.
Foi postado no site do Vaticano.
O site do Vaticano tem algum peso, mas não é uma autoridade magisterial, e se olhar o que os bispos argentinos escreveram na diretriz, é possível interpretar de uma maneira ortodoxa.
Voltando à CDF, como o senhor gostaria que isso voltasse ao seu propósito declarado? Como gostaria que andasse com o novo prefeito, o Arcebispo Luis Ladaria?
Teologicamente, o Arcebispo Ladaria e eu temos absolutamente a mesma compreensão da fé e da teologia católicas, porque ele se refere aos grandes padres e teólogos da Igreja e tem uma orientação ao fundamento dos versículos da Sagrada Escritura, a Palavra de Deus, a Tradição apostólica - o mesmo quadro. Mas espero que o secretário e o subsecretário tenham também esse entendimento: servir à fé ortodoxa, servir ao Santo Padre no seu importante papel para a unidade da Igreja e a verdade revelada.
A competência é mais importante do que as amizades, e a sinceridade serve mais do que a ambição. Eu disse pessoalmente ao Santo Padre que é muito importante que os membros da congregação, os superiores, nossos colaboradores e nossos consultores sejam, em primeiro lugar, ortodoxos, tenham competência teológica e que tenham uma boa vida moral e uma espiritualidade profunda como sacerdotes.
Esse oportunismo o perturba?
O Santo Padre, em seu segundo discurso de Natal à Cúria Romana, aos cardeais, falou sobre as 15 doenças da Cúria de forma geral. Muitos dos participantes sentiram-se ofendidos porque a imprensa falou sobre funcionários do Vaticano como se fossem todos carreiristas e oportunistas, apenas em busca de dinheiro e grandes apartamentos, etc. Mas não se deve falar em geral sobre pessoas presentes como se fossem culpadas ou estúpidas.
Não se deve promover os oportunistas, e outros colaboradores competentes não devem ser excluídos ou expulsos da Cúria sem motivo. Não é bom. Ouvi em algumas casas aqui que as pessoas que trabalham na Cúria vivem com muito medo: se fizerem uma crítica, mesmo que pequena ou inofensiva, espiões podem passar os comentários diretamente ao Santo Padre, e as pessoas falsamente acusadas não têm chance de defesa. Essas pessoas, que estão falando mal e mentindo para prejudicar outras pessoas, perturbam a boa fé, o bom nome de outros a quem estão chamando de irmãos.
O evangelho e as palavras de Jesus são muito fortes contra aqueles que denunciam seus irmãos e que estão criando essa má atmosfera de suspeita. Ouvi dizer que ninguém fala; todos têm um pouco de medo porque pode ser dedurado. Não é um comportamento de adultos, mas de uma escola interna.
Um senhor da Igreja, que falou comigo de forma anônima, chamou de "reino de terror".
O mesmo acontece em algumas faculdades teológicas - se alguém tiver qualquer observação ou dúvida sobre Amoris Laetitia, será expulso, e assim por diante. Isso não é maturidade. Uma certa interpretação da nota de rodapé 351 do documento não pode ser critério para ser bispo. Um futuro bispo deve ser uma testemunha do Evangelho, um sucessor dos apóstolos, e não apenas alguém que repete algumas palavras de um único documento pastoral do Papa sem um entendimento teológico maduro.
Devemos distinguir entre o que é a doutrina oficial da Igreja, o papel do Papa e o que ele diz em conversas privadas. As opiniões privadas do Papa precisam ser respeitadas porque são opiniões e palavras do Santo Padre, mas ninguém é obrigado a aceitar sem críticas tudo o que ele diz, por exemplo, sobre questões políticas ou científicas. É a opinião pessoal do papa, mas não tem nada que ver com nossa fé católica, pelo qual somos justificados na graça de Deus.
A respeito de Amoris Laetitia e o medo de criticá-la e a falta de resposta à dubia, não é irônico que vá contra o desejo do papa de parrésia (falar com ousadia e franqueza) e diálogo?
Quem é bispo, cardeal ou papa deve aprender a distinguir entre os críticos que são contra a pessoa e os críticos contra sua missão. O Santo Padre, Francisco, deve saber que é importante aceitar sua intenção: ajudar as pessoas que estão distantes da Igreja, da crença da Igreja, de Jesus Cristo, que queria ajudá-las. ... A discussão não é contra ele, não é contra suas intenções, mas é preciso maiores esclarecimentos. Além disso, já tivemos discussões sobre a fé e sua aplicação pastoral. Não é a primeira vez que isso acontece na Igreja e, portanto, por que não aprender com nossas vastas experiências como Igreja, ter uma boa e profunda discussão sobre a promoção da fé, da vida da Igreja, e não personalizar e polarizar? Não é uma crítica pessoal a ele, e todos devem aprender e respeitar sua grande responsabilidade. É um perigo muito grande para a Igreja que alguns grupos ideológicos se apresentem como os guardiões exclusivos da única e verdadeira interpretação de Amoris Laetitia. Eles sentem que têm o direito de classificar todas as pessoas que têm outro ponto de vista como estúpidas, rígidas, antiquadas, medievais, etc.
Ninguém pode, por exemplo, dizer que o Cardeal Caffarra não entendeu nada da teologia moral. Às vezes, o comportamento não cristão é impresso em L'Osservatore Romano, o jornal semi-oficial do Vaticano, ou nos órgãos oficiais da mídia, para criar polêmica e discussão. Isso não nos ajuda em nada nessa situação - é apenas uma discussão teológica profunda.
O senhor acha que essa indisposição para a discussão e essa tendência de personalizar as coisas deve-se ao fato de que os que fazem essas acusações não têm realmente força em suas próprias convicções, que sabem que seus argumentos não resistiriam a um exame rigoroso?
Por toda a minha vida, após o Concílio Vaticano II, notei que os apoiadores do chamado progressivismo nunca têm argumentos teológicos. O único método que têm é tirar o crédito das pessoas, chamando-as de "conservadoras" - e isso muda o ponto real, que é a realidade da fé, e não sua disposição subjetiva e psicológica. Por "conservador", o que querem dizer? Alguém que adora lo da década de 50, ou velhos filmes de Hollywood da década de 30? A perseguição sangrenta dos católicos durante a Revolução Francesa pelos jacobinos era progressista ou conservadora? E a negação da divindade de Cristo pelos Arianos do século IV era liberal ou tradicional? Teologicamente, não é possível ser conservador ou progressista. São categorias absurdas: nem o conservadorismo nem o progressismo têm a ver com a fé católica. São formas políticas, polêmicas e retóricas. O único sentido dessas categorias é tirar o crédito das pessoas.
Temos a Sagrada Escritura, temos a revelação escatológica em Jesus Cristo, a irreversibilidade de Jesus Cristo, a Encarnação, a salvação da cruz, a Ressurreição, a Segunda Vinda de Jesus Cristo para o fim do mundo. ... A responsabilidade do Papa e dos bispos é superar a polarização. Portanto, é muito perigoso que a Igreja divida os bispos em amigos e inimigos do Papa por uma nota de rodapé em uma exortação apostólica. Tenho certeza de que alguém me denunciará também por essa entrevista, mas espero que o Santo Padre leia minha entrevista completa aqui e não apenas algumas manchetes, que não dão uma impressão completa do que eu disse.
O senhor diria que nunca tivemos um Papa assim, com essa abordagem contestada à doutrina, distinguindo entre o ensino e a prática pastoral e, assim, permitindo o crescimento das falsas interpretações? Em um contexto como esse, diria que a CDF é mais necessária do que nunca?
Ele tem outra abordagem: João Paulo II e os antigos Papas Paulo VI e Bento XVI - encontraram todas as questões e gêneses modernas do mundo moderno; deram boas explicações. Ele [Francisco] acha que sua contribuição não é assim, porque o que é claro é a abordagem pastoral do chamado Terceiro Mundo. Os pobres são a chave para a Nova Evangelização, e ele quer isso, é verdade, e tem a boa intenção de tentar superar essa contraposição na Igreja. O Santo Padre não quer apenas dizer que isso ou aquilo não é permitido, mas dar mais importância às boas intenções, à positividade, dizer que o Evangelho é favorável à vida, não só contra o aborto, por exemplo.
Temos a relação inseparável entre fé e vida, graça e amor, e não o dualismo entre teoria e prática. Usa-se uma abordagem marxista para distinguir os dois. Não estamos falando a partir da teoria, porque a crença não é teoria; a crença é a unidade com Deus em nossa consciência. Nossas categorias não são teoria e práxis, mas sim verdade e vida, ambos dons de graça, formas de comunicação com Deus na Igreja como Corpo de Cristo. Portanto, a prática pastoral significa chegar a uma verdadeira compreensão do que Cristo como pastor e bom pastor está fazendo por nós, levando-nos à vida eterna.
Quais outras preocupações gostaria de ver abordadas, na CDF e talvez até adiante?
O papel da CDF é muito importante: o prefeito e todos os colaboradores dão entrevistas e palestras que promovem a fé. Essa era uma nova identidade criada pelo cardeal Joseph Ratzinger em seu longo período como prefeito, e não podemos voltar para a antiga abordagem pré-conciliar, quando o CDF, ou o Santo Ofício, era apenas um defensor burocrático por trás das muralhas do Vaticano e todos temiam receber uma carta da congregação. Essa é a forma antiga, e espero que não voltemos a ela. A congregação tem para oferecer à Igreja, especialmente bispos e teólogos, impulsos e orientações para os professores da fé. A melhor ajuda para o Santo Padre hoje é uma congregação de alto nível para a doutrina da fé e da moral.
E, no entanto, muitas pessoas gostariam de ver a CDF sendo mais um defensor da fé, especialmente hoje. É quase como se não houvesse autoridade para defender a fé que vem do Vaticano. O que tem a dizer sobre isso?
Sempre tentei evitar essa impressão. Palestrei muito ao redor do mundo. O que ofereci foi essa promoção da fé e de todo o ensino, defendendo a fé, novas questões de dogma e questões morais, e principalmente os desafios da bioética e todos esses grandes esforços, como a ideologia de gênero, que destruirá o fundamento da existência humana, da família e do futuro.
Mas e quanto ao problema do pensamento secular e da heterodoxia dentro da Igreja e da defesa da ortodoxia?
O que eu pude fazer, eu fiz. Compreendi o papel do prefeito nesta nova visão manifestada pelo cardeal Ratzinger e depois pelo seu sucessor, cardeal William Levada, e então o papa Bento XVI me nomeou. Espero que a CDF continue com esta linha de promoção da fé. O que precisamos é de um grande esforço pela verdade da fé, e não uma batalha por mais poder em toda a Igreja e especialmente na Cúria Romana.
A questão atual não é mais poder para funcionários da Igreja, mas a verdade de Deus para a vida de todos os homens. Paulo VI cometeu um certo erro quando mudou o papel da congregação, fazendo com que se tornasse mais uma dentre outras. A verdade é que a CDF é mais importante do que as outras, não porque seus membros se considerem melhores e mais poderosos, mas porque o fundamento da Igreja não é a política, mas a fé. O secretário de Estado tem o trabalho de organizar os núncios apostólicos, trabalhando pela paz e liberdade entre os estados, pela justiça social e assim por diante. É um papel muito importante, mas, no entanto, a Igreja não é uma organização política; não é uma organização social; não é uma ONG [organização não governamental]. O Santo Padre destaca o tempo todo que somos o sacramento da unidade completa entre Deus e o homem com base na fé, na esperança e no amor, e ninguém pode mudá-lo.
Gostaria que o Papa respondesse às “dubia”? Isso é vital para o bem-estar da doutrina?
O melhor teria sido o Santo Padre ter uma audiência antes da sua publicação. Agora temos o espetáculo de um teste de força. É melhor falar antes, aprofundar as perguntas e dar boas respostas.
Qual sua opinião sobre a correção? Dada a profunda preocupação entre muitos sacerdotes e fiéis nas questões levantadas, o quão importante é a resposta do Papa?
O que a Igreja precisa nesta séria situação não é mais polarização e polêmica, mas mais diálogo e confiança recíproca. O Santo Padre e todos os bons pastores desejam a plena integração dos casais em situação irregular. Mas isso deve acontecer de acordo com as condições gerais da recepção digna e válida dos sacramentos sagrados. Devemos evitar novos cismas e separações da Igreja Católica, cujo princípio e fundamento permanente de sua unidade e comunhão em Jesus Cristo é o próprio Papa Francisco e todos os bispos em plena comunhão com ele. O sucessor de São Pedro merece pleno respeito pela sua pessoa e mandato divino e, por outro lado, seus críticos honestos merecem uma resposta convincente. Uma possibilidade de solução seria que um grupo de cardeais acionados pelo Santo Padre iniciassem uma discussão teológica com alguns representantes proeminentes das dubia e as "correções" sobre as diferentes e às vezes controversas interpretações de algumas afirmações no Capítulo 8 de Amoris Laetitia.
Há rumores de que a CDF fez queixas sobre o arcebispo Fernandez porque sua teologia era problemática. O senhor tem conhecimento disso?
Não; foi antes do meu tempo. Uma vez, em uma entrevista no Corriere della Sera (2015), ele me criticou publicamente, dizendo que o prefeito da congregação não tinha nada a dizer, que o Papa era seu amigo, ele era o verdadeiro intérprete, que o Santo Padre era iluminado diretamente pelo Espírito Santo. Mas nunca li que o Santo Padre é iluminado pelo Espírito Santo na compreensão de uma nova revelação. O Papa só é assistido pelo Espírito Santo para a autêntica interpretação da revelação de Deus em Cristo. Ele e os bispos são cooperadores humanos na transmissão da Revelação, que é completamente transmitida em Jesus Cristo, a Palavra de Deus encarnada, mas não recebem nenhuma outra revelação.
Os Evangelhos são palavras humanas inspiradas pelo Espírito Santo, mas isso não exclui a verdadeira cooperação humana dos Evangelistas. A teologia católica não fala sobre a "iluminação do magistério do Papa e dos bispos". Os apóstolos ouviram as palavras de Jesus - era uma mediação humana pela natureza humana e, portanto, a cooperação da Igreja é absolutamente necessária. Certamente a fé é dada pelo Espírito Santo, mas pela mediação da evangelização. Ninguém acredita nisso, a menos que a palavra de Deus entre pelos ouvidos humanos.
Quando alguns dos conselheiros do Papa invocam o Espírito Santo para justificar suas posições, dando a entender que, se alguém não entende isso, não entende o funcionamento do Espírito Santo, é uma tendência perigosa?
Temo que haja um certo mal-entendido pentecostal sobre o papel do Espírito Santo. Na Palavra de Deus encarnada, no Filho de Deus, Jesus Cristo, para nós é dada toda a graça e a verdade. O Espírito Santo atualiza a revelação completa na doutrina, os sacramentos da Igreja. O Santo Padre desempenha aqui um papel muito importante na Tradição apostólica, mas não o único. Seu ensino é regulado pela palavra de Deus na Bíblia e na Tradição dogmática da Igreja. O magistério e todos os fiéis são apoiados pelo Espírito Santo na atualização da revelação completa e integral, mas não recebem nenhuma nova revelação pública como parte da depositum fidei, como confirmou o Concílio Vaticano II (Lumen Gentium, 25).
Ninguém pode exigir que um católico acredite em uma doutrina que esteja em óbvia contradição com a Sagrada Escritura, a Tradição apostólica e as definições dogmáticas dos Papas e conselhos ecumênicos em matéria de fé e moral. É necessária uma obediência religiosa, mas não uma fé cega, para o Papa e os bispos, e nada para amigos pessoais e conselheiros.
Essas pessoas devem expressar seus argumentos, e não podem exigir nenhum respeito pela sua presumida autoridade magisterial. Nós não acreditamos nas coisas apenas porque um papa as ensinou, mas porque essas verdades estão no Apocalipse (cf. II.Concílio Vaticano, Dei Verbum, 10)
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'Amoris Laetitia', as ‘dubia’ e o Vaticano - temas de longa entrevista do Cardeal Müller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU