18 Agosto 2017
“Salvo surpresas provenientes das investigações sobre as interferências russas, a Casa Branca está ocupada por um presidente que foi eleito de modo legal. Mas, teológica e moralmente, a presidência estadunidense, desde janeiro, é ‘sede vacante’.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de História do Cristianismo da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por L’Huffington Post, 17-08-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É difícil descrever a sensação sentida no retorno, há alguns dias, depois de dois meses de ausência, aos Estados Unidos da América, que eu frequento desde 2004 e no qual resido desde 2008. É perceptível a tensão em um país em que a perspectiva de uma nova guerra história civil não é mais apenas história alternativa ou um videogame, mas também uma discussão sobre as possíveis perspectivas políticas de longo prazo em um país marcado pela violência cotidiana.
Não é apenas uma questão do que poderá acontecer, mas do que já aconteceu. Na vida cotidiana de quem vive nos Estados Unidos, é palpável a tensão na forma de uma crescente e embaraçosa distância entre brancos, afro-americanos, latinos e asiáticos: na escola, no trabalho, no supermercado. Quem, sem ter responsabilidades diretas, sente-se culpado por aquilo que os Estados Unidos estão se tornando não sabe o que dizer às vítimas da xenofobia, do racismo e do antissemitismo liberados por Trump. Quem deveria se sentir culpado, em vez disso, fala demais e despropositadamente.
A Roma da Igreja Católica tem falado de modo claro. O verão de 2017 é o longo verão quente das relações muito tensas entre os Estados Unidos de Trump e o catolicismo do Papa Francisco. Ele começou em 24 de maio de 2017, com a visita do neopresidente estadunidense ao Vaticano, com a qual o Papa Francisco tinha tentado – sem muitas ilusões – enviar uma mensagem conciliatória a um líder com o qual tinha se defrontado desde fevereiro de 2016, na famosa coletiva de imprensa no voo de volta da viagem ao México.
Na audiência no Vaticano, ao término da qual o papa tinha presenteado ao presidente a encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da criação, tinha se seguido, poucos dias depois, a decisão de Trump de retirar os Estados Unidos do acordo de Paris sobre as mudanças climáticas: era só foi uma das “decisões executivas” que pontilharam o primeiro semestre de presidência, na ausência de uma agenda legislativa digna desse nome.
Poucas semanas depois, em 13 de julho, a revista dos jesuítas La Civiltà Cattolica – publicada com a aprovação da Secretaria de Estado vaticana – reabria o fronte norte-americano (um problema desde o início do pontificado de Francisco) com um artigo assinado pelo diretor, Antonio Spadaro, e pelo diretor da edição argentina do L’Osservatore Romano, Marcelo Figueroa, contra o “ecumenismo do ódio”.
O artigo chamava a atenção para as convergências para fins políticos, bem conhecidas daqueles que vivem na Igreja estadunidense, entre católicos reacionários e protestantes evangélicos brancos: um ecumenismo perverso que era indicado como uma das causas e o contexto da eleição de Donald Trump. O artigo, que representa o ponto mais baixo – pelo menos até agora – nas relações entre o Vaticano e os Estados Unidos ao longo do último século, mas também o início de um debate necessário sobre um assunto tabu nos Estados Unidos, desencadeou reações raivosas, especialmente entre os católicos conservadores (incluindo alguns importantes jesuítas estadunidenses), mas também entre alguns católicos liberais “americanistas”.
O arcebispo Charles Chaput, da Filadélfia, uma das figuras de referência do catolicismo conservador antibergogliano nos Estados Unidos, comparou os autores do artigo da Civiltà Cattolica aos “úteis idiotas”, dos quais Lenin pretendia se servir para a revolução bolchevique. Chaput era o mais visível no fronte dos católicos próximos do Partido Republicano que acusavam os autores do artigo de não compreender a verdadeira natureza do transversalismo político-teológico entre católicos e evangélicos encarnado pelo primeiro conselheiro de Donald Trump, o católico Steve Bannon (mencionado explicitamente no artigo), e de ignorar a complexa situação política dos católicos nos Estados Unidos.
Nas últimas quatro semanas, o cenário mudou em comparação com meados de julho, e não tanto por causa da escalada verbal entre Trump e a Coreia do Norte, mas sim por causa da escalada dentro dos Estados Unidos e do espaço transatlântico: reler o artigo de Spadaro e Figueroa e as críticas lançadas contra ele – tudo no espaço de um mês – ajuda a entender o ritmo do pontificado do Papa Francisco.
A reunião neonazista de Charlottesville, na Virgínia, do fim de semana passado, que custou a vida de uma jovem, e a tentativa do presidente Trump de normalizar a violência política da extrema direita poderiam ser não só um ponto de virada na história desta presidência, mas, de fato, confirmam a gravidade do cenário descrito pelo artigo da Civiltà Cattolica e abrem interrogações inquietantes sobre o futuro das relações entre os Estados Unidos e a sua identidade cristã, entre o Vaticano e os Estados Unidos (católicos ou não).
O neonazismo estadunidense sai da célebre caricatura no filme “The Blues Brothers” para passar a fazer parte das crônicas cotidianas dos Estados Unidos que apoia Trump. O clima de violência antissemita em torno da sinagoga de Charlottesville no fim de semana passado parece sair de um dos relatos dos sobreviventes da Europa dos anos 1930.
As relações entre religião, racismo e política são essenciais para compreender os Estados Unidos de Trump, e este verão de 2017 produziu duas mudanças evidentes. A primeira é a divisão dentro do mundo das Igrejas nos Estados Unidos entre aqueles que ainda apoiam Trump (as Igrejas evangélicas brancas) e aqueles que, se ainda não tinham se distanciado dessa presidência, começaram agora a fazer isso de uma forma mais evidente do que antes (alguns bispos católicos).
A segunda é o reconhecimento público, graças ao tabu quebrado pelo artigo da Civiltà Cattolica, de que um “ecumenismo do ódio” existe e ataca: grupos católicos militantes, bem financiados e nada subterrâneos ou marginais, como The Catholic League, nas últimas horas, renovaram o seu apoio a Trump, paralelamente aos ambientes evangélicos de Jerry Falwell Jr., que, provavelmente, aspira a se tornar, para Donald Trump, aquilo que o grande historiador da Igreja Eusébio de Cesareia foi para o imperador romano Constantino no quarto século.
O problema teológico de fundo dos Estados Unidos de Trump é que o ofício da presidência dos Estados Unidos, alojada naquela espécie de palácio democrático construído por escravos que é a Casa Branca, representa – dá voz, torna visível e encarna – o sentido da nação estadunidense como projeto e missão: do ponto de vista religioso e do ponto de vista ideal e de valores. A presidência Trump representa, a partir desse ponto de vista, uma heresia em relação aos Estados Unidos como ideia religiosa: uma heresia não em relação àquilo que os Estados Unidos são na história (especialmente a escravidão e a segregação racial), mas em relação àquilo que os Estados Unidos acreditam e prometem ser. O que está em crise são os Estados Unidos como artigo de fé política.
Salvo surpresas provenientes das investigações sobre as interferências russas, a Casa Branca está ocupada por um presidente que foi eleito de modo legal. Mas, teológica e moralmente, a presidência estadunidense, desde janeiro, é “sede vacante”.
A intervenção da Civiltà Cattolica e as relações entre o Vaticano do Papa Francisco e Trump devem ser lidas nesse contexto de crise teológica e moral dos Estados Unidos contemporâneos. O pontificado de Francisco é a autoridade global que, no cenário internacional, mais visivelmente, interage e intervém, do ponto de vista da simbólica da legitimidade moral do poder, com o vazio de legitimidade que se abriu no centro do poder ocidental nos Estados Unidos com a eleição de Trump.
Ao mesmo tempo, Francisco se encontra na posição de interlocutor da crise estadunidense como líder mundial de um catolicismo que, nos Estados Unidos, está dividido em seu interior como nunca antes e como nenhuma outra Igreja no mundo.
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Desde janeiro, a presidência dos EUA é teológica e moralmente “sede vacante”. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU