01 Novembro 2016
A visita do Papa Francisco à Suécia para participar da comemoração do 500º aniversário da Reforma em 31 de outubro é “muito importante” para o ecumenismo, e pode pavimentar o caminho para um novo documento sobre a Igreja, a Eucaristia e o ministério, de acordo com o Cardeal Walter Kasper.
O prelado alemão entende a significação disto melhor que ninguém, pois serviu como um dos residentes da Comissão Católico-Luterana Internacional que, em 1999, alcançou um acordo na questão da justificação, tema central na disputa que, séculos atrás, levou à Reforma Protestante.
A entrevista é de Gerard O’Connell, publicada por America, 30-10-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Na entrevista a seguir concedida à America na véspera da visita de Francisco, o cardeal, que presidiu o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos de 2001 a 2010, não só faz um retrospecto do progresso construído no diálogo católico-luterano nos últimos 50 anos, mas também mostra-se ansioso com os novos horizontes deste mesmo diálogo. Além disso, enfatiza que “questões doutrinais não são a única coisa importante para o ecumenismo. Também é importante que se faça ecumenismo através da amizade, através da confiança” e completou: “É este o carisma de Francisco”.
Eis a entrevista.
Qual a significação de o Papa Francisco ir a Lund, na Suécia, para participar da comemoração do 500º aniversário da Reforma Protestante?
A Federação Luterana Mundial – FLM foi o primeiro com quem iniciamos o diálogo depois do Concílio Vaticano II. A meu ver, o diálogo com os luteranos é o diálogo mais avançado que temos. A primeira grande consequência aqui foi o acordo a respeito da questão da justificação, e agora penso que o momento está maduro para termos um documento parecido sobre a Igreja, a Eucaristia e o ministério. O diálogo nestes três pontos está bem avançado, embora não exista ainda um pleno consenso. A comissão da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA responsável por assuntos inter-religiosos e ecumênicos preparou um material sobre esses tremas e sobre as conquistas alcançadas até o momento, e eu creio que deveríamos agora fazer uma declaração comum sobre estas questões. Se fizermos, poderemos abrir uma porta, pelo menos, para a Sagrada Comunhão em situações singulares, concretas.
Pode explicar a questão da justificação, que antes era motivo de tantos problemas, mas que hoje está resolvida?
O problema da justificação esteve no centro de toda a disputa no século XVI. Lutero acreditava que só havia justificação pela fé, não por boas obras: justificação somente pela graça e não pelos nossos méritos. Naturalmente que hoje concordamos que as boas obras são frutos da fé, mas não podemos merecer a graça; ela é dada somente pelo amor de Deus. Na época da Reforma, havia uma nítida divisão neste ponto.
A ocasião eram as indulgências. Havia um frade chamado Johann Tetzel, OP, que pregava indulgências e as pessoas a recebiam dando dinheiro. Havia todo um mercado de indulgências naquele tempo e ele era abusivo. Lutero argumentou contra as indulgências em suas 95 Teses. Dizia que não se pode merecer a graça: ela é um dom de Deus pela fé, e isso criou uma discussão em torno do poder do papa em conceder indulgências. Portanto, a questão do papado estava imediatamente implicada nesta discussão; o papa foi visto como o anticristo, ensinando doutrinas não fundamentadas nas Escrituras, enquanto que Lutero insistia “somente nas Escrituras”.
A questão das indulgências, no entanto, era apenas o ponto inicial de uma grande disputa. Havia também muitos problemas políticos, e assim a Reforma se tornou uma reforma feita pelos príncipes que tinham não só interesses sagrados, mas também interesses mundanos – práticos, econômicos e políticos. Existiam muitos abusos na Igreja no final da Idade Média e as pessoas estavam furiosas contra Roma por causa das indulgências. O dinheiro é o ponto mais sensível do ser humano! Nesse sentido, havia muita raiva contra Roma, contra a Cúria, e houve toda uma onda de emoções.
O senhor escreveu um livro sobre Lutero, o qual, fiquei sabendo, foi dado de presente ao Papa Francisco. Como o senhor vê Lutero? Qual sua opinião sobre ele?
No começo, Lutero tinha boas intenções. Ele não queria criar uma nova igreja; queria reformar a Igreja inteira; queria a renovação da Igreja universal, a começar pela Bíblia. Hoje, chamamos isto de a Nova Evangelização, mas na época havia todo uma onda de emoções. A resistência de Roma levou às suas 95 Teses que não estavam mais de acordo com a doutrina católica concernente aos sacramentos, ao ministério e assim por diante. Lutero foi condenado como um herege obstinado e posto fora da lei na Dieta de Worms presidida pelo Imperador Carlos V em 1521. Consequentemente, ele não estava mais sob a proteção da lei do império, e qualquer um poderia matá-lo. Mais tarde, por volta de 1530, o reformador começou a estabelecer as suas próprias comunidades e, em algum momento, voltou a defender posições sobre questões institucionais que não eram as posições da Igreja Católica.
Lutero é uma personalidade complexa. Houve uma evolução complexa nele, e no diálogo com os luteranos e, especialmente com a Federação Luterana Mundial, nós tentamos discutir todos estes problemas e, assim, não mais estamos onde nos encontrávamos no século XVI. O mundo mudou, a Igreja mudou, os luteranos mudaram. Tentamos chegar a uma interpretação ecumênica disso tudo no diálogo, e agora estamos muito próximos.
E o que é mais importante: no diálogo, chegamos a um acordo sobre a questão central da justificação, expressa na Declaração Conjunta Católico-Luterana de 1999. Na Alemanha, este documento foi seguido de um acordo sobre o batismo e o reconhecimento mútuo deste sacramento.
O senhor foi o um dos presidentes da Comissão Católico-Luterana Internacional que chegou ao importante acordo sobre a questão da justificação. Pode nos explicar este acordo e como ele aconteceu?
O acordo surgiu porque havia alguns estudos muito bons sobre a questão nos Estados Unidos e na Alemanha, estudos históricos; houve uma mudança nas pesquisas sobre Lutero. Uma boa amizade se desenvolveu entre nós na Comissão, e eu acho que isso foi importante para o resultado. Caminhávamos uns com os outros e compartilhávamos como vivemos os nossos respectivos credos.
Isso tudo criou uma atmosfera de confiança em que se pode encontrar soluções.
Em seguida, concordamos que, antes de tudo, cada ser humano requer justificação, não se pode justificar a si mesmo. A grande heresia dos tempos modernos é que podemos consegui-la por nós mesmos. Claro está, também a partir da psicologia, que todos precisamos de justificação, somos todos pecadores. Em segundo lugar, o fato é que somente Deus pode justificar e perdoar os pecados, não podemos fazer isto por nós mesmos; não podemos conseguir a justificação com boas obras, pelo ascetismo, pela mística e assim por diante. É somente pela graça divina, e ela nos faz uma nova criação. Somos justificados por Deus somente, e pela fé na Sua obra em Jesus Cristo na Cruz e na Ressurreição, e não pelos nossos próprios méritos. Somos justificados pela graça de Deus ou – como diz o Papa Francisco – pela misericórdia de Deus. Mas a graça divina deve se tornar frutífera nas obras de caridade e em nossas vidas. Não é uma fé barata, onde nada temos a fazer; boas obras são frutos da graça, não as podemos fazer por nossas próprias forças. Estes são os principais pontos. Há uns pontos menores no tocante a diferentes aspectos do acordo fundamental que ainda precisam esclarecidos, mas que não contradizem o acordo fundamental.
Em outubro de 1999, João Paulo II aprovou este acordo em um dos pontos centrais da Reforma e, como consequência daquele outro acordo na Alemanha, também chegamos a um acordo sobre o reconhecimento mútuo do batismo.
Alcançamos este acordo fundamental, mas não estamos plenamente unidos porque ainda existem problemas relacionados à igreja, ao ministério, à Eucaristia e ao papado.
Os luteranos não aceitam o papado.
Bem, vem havendo uma longa discussão e um demorado diálogo em torno do papado. Eles não mais consideram o papa como o anticristo. Os bispos luteranos vêm a Roma e gostam de tirar uma foto ao lado do papa. Então, as coisas mudaram, mas ainda há muita resistência contra a jurisdição universal do papa.
Para abordar esta questão do papado, João Paulo II, na encíclica Ut Unum Sint, convidou todos os parceiros ecumênicos a refletir juntos com ele sobre uma nova forma de exercer o ministério papal. Bento XVI repetiu isso. Francisco o repete, mas vai além e convida a uma “conversão do papado”. Ele quer dar uma maior liberdade, não autonomia, mas uma maior responsabilidade, aos bispos e às igrejas locais. De ambos os lados, há uma reaproximação.
Nesse contexto, penso que o encontro em Lund é bastante importante, porque questões doutrinais não são a única coisa importante para o ecumenismo. Também é importante que se faça ecumenismo através da amizade, através da confiança, e este é o carisma de Francisco: fazer amizades, estabelecer relações pessoais, relações de confiança, e eu creio que algo assim pode muito ajudar.
Além disso, o papa não pensa em termos de posição, mas em termos de desenvolvimento, de processo. Para ele, o ecumenismo é caminhar juntos, passo a passo, e caminhar juntos para abordar os desafios dos nossos dias que também nos aproximam uns dos outros.
Considero o encontro de Lund um passo importante nesta caminhada comum à unidade. Lund pode não encerrar questões teológicas, mas pode pavimentar o caminho para um novo documento sobre o ministério, a Eucaristia e a igreja, ou pelo menos ajudar a avançar. Ele traz um apoio importante ao nosso diálogo, porque constrói confiança, e sem confiança não podemos resolver problema algum. Amizade e confiança são fundamentais.
Portanto, este evento será um fôlego renovado para o diálogo e tornará transparente para o público essa nova proximidade. A ocasião é um testemunho público porque todos agora veem que o papa vai aos luteranos, e todos agora veem os luteranos com o papa; isso muda as mentalidades na igreja.
Mas preciso acrescentar uma coisa. O encontro em Lund é uma relação com a Federação Luterana Mundial, mas na Alemanha nós temos uma situação diferente porque eles são mais céticos, porque a Igreja Evangélica da Alemanha não é somente composta por luteranos. Ela inclui as igrejas reformadas e unidas. Existe uma mistura e, portanto, temos uma situação diferente, mais cética, mais crítica, mais resistente. Assim, eu não sei se este encontro consegue ajudar a superar algumas destas reservas existentes. Só se conseguem superar estas reservas e esta desconfiança por meio da cultura do encontro.
Sei que, em Buenos Aires, Francisco mantinha relações muito boas com os luteranos, e ele quer avançar nesse campo. O papa não é um especialista no diálogo teológico. Diferentemente, ele enfatiza a amizade e o caminhar juntos. Para ele, o ecumenismo, assim como a sinodalidade, significa caminhar juntos. O papa acredita no processo. O tempo tem precedência sobre o espaço.
Além das questões em torno do papado, do ministério, da Eucaristia e igreja, os luteranos também têm reservas no tocante à mariologia.
Sim! Para a maioria dos luteranos, a nossa veneração a Maria e aos santos, o nosso rezar a eles por intercessão, é algo muito estranho, mas faz parte da religiosidade católica. O próprio Lutero venerava Maria, mas não aceitou a sua intercessão e a dos santos.
Penso que o problema era que, na época, havia exageros na piedade mariana. Mas o mesmo é verdade hoje em alguns países europeus do sul, e talvez em parte da América do Sul, e isso tudo é bem diferente da nossa mentalidade cultural no norte. Nós somos mais frios, menos emotivos. É uma diferença cultural, não de fé. Para nós católicos, esta piedade mariana é normal, mas, para os protestantes, o papado e a mariologia estão emotivamente carregados de problemas.
Francisco está ajudando a diluir ou reduzir tais reservas entre luteranos e protestantes?
A forma como Francisco está exercendo o papado está ajudando muito a superar estes preconceitos. Ele não é um tirano, como Lutero considerava o papa. Toda a sua humanidade é um grande presente também para o ecumenismo. Claro está que com as nossas reflexões teológicas não conseguimos alcançar as pessoas comuns; para elas, a vida é a vida, e os protestantes e católicos de hoje trabalham juntos, vivem juntos e, na Alemanha, há inúmeros casamentos entre fiéis das duas tradições. Mas isso também é novidade. Não acontecia antes da Segunda Guerra Mundial, onde havia as religiões protestante e católica e, por exemplo, foi difícil para mim com católico conhecer uma menina protestante”!
É importante lembrar que o movimento em direção à unidade não é um processo teológico apenas; é um processo de vida, de “caminhar juntos” como diz Francisco. O papa tem sublinhado este aspecto do ecumenismo e também tem “trabalhado junto”, como vimos na resposta comum à crise dos refugiados na Alemanha. Esta crise foi um verdadeiro presente para o ecumenismo porque um número enorme de voluntários católicos e protestantes atuaram juntos em favor dos refugiados e se colocaram contra aquelas pessoas da direita que eram contra. Estas coisas são práticas, mas são muito importantes; elas aproximam as pessoas muito mais do que os nossos debates teológicos. Francisco compreende isso bem.
Alguns na Alemanha têm reservas em torno do encontro do papa com os luteranos em Lund também pelos problemas relativos ao papado à da mariologia.
Reservas, sim, mas também surpresa e alegria. Devemos lembrar que a Alemanha é o país da Reforma. A Reforma está ligada profundamente com a história do país, com a identidade nacional. Sentimos isso aqui mais fortemente do que em qualquer outro lugar no mundo. Nós ainda vivemos as consequências da Reforma. Na verdade, até a Segunda Guerra Mundial, tínhamos regiões católicas e regiões protestantes na Alemanha, e foi somente depois da guerra que as regiões se misturaram. Esses elementos não teológicos são importantíssimos em todo o debate sobre ecumenismo.
A Federação Luterana Mundial está celebrando o seu 50º aniversário, e já foi uma surpresa terem eles convidando o papa para este momento. Foi um convite comum da FLM e do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos. Foi publicado um folheto comum intitulado “Do Conflito à Comunhão”, olhando para a estrada pela qual percorremos nos últimos 50 anos.
Penso que a maioria das pessoas em países como a Alemanha, onde os católicos, luteranos e protestantes trabalham juntos, casam-se entre si e fazem muitas outras coisas em comum, acolhem esse encontro e estão bem felizes quanto a este avanço nas relações ecumênicas. Há, porém, católicos ultraortodoxos que não estão gostando porque acham que o papa pode desistir de algo da doutrina ou da tradição católicas, e há os luteranos ultraortodoxos que temem algo parecido em termos de tradição luterana. Há esse medo.
Lembremos, no entanto, que para os católicos do passado Lutero era o arqui-herege, e para os luteranos o papa era o anticristo, mas desde João XXIII isso tudo mudou. Mesmo antes já havia uma mudança entre historiadores católicos como Joseph Lortz e Hubert Jedin, este último um especialista do Concílio de Trento. Ambos chegaram à conclusão de que Lutero tinha boas intenções no começo. Hoje, historiadores católicos e protestantes possuem mais ou menos a mesma compreensão da Reforma. Bento XVI reconheceu isto quando visitou Erfurt em 2011, onde elogiou Lutero como um alguém que foi apaixonado por Deus.
Certa vez perguntei ao Cardeal Carlo Maria Martini, SJ, o que ele achava ser o maior obstáculo para a unidade dos cristãos, ao que respondeu: “O espírito de possessividade, todos querem manter aquilo que têm”.
Sim, de fato! As igrejas são como grandes navios a vapor no mar: são desajeitados, é difícil para moverem-se ou mudar de direção. Desistir de algo, desistir de uma certa mentalidade, é o mais difícil. Mas é uma atitude, é um problema humano, não uma questão dogmática. Com razão, o Papa Francisco fala de uma “conversão”; é preciso uma conversão do papado, uma conversão dos bispos, uma conversão dos luteranos e dos católicos, e conversão não é a coisa mais fácil de se ter. Mas, no fim, a unidade plena da igreja é dom do Espírito, e nós devemos rezar por este presente de conversão.
Devemos orar pela graça da unidade, e orar para abrirmos os corações uns aos outros, mudarmos de opinião, desistir dos preconceitos e isso não é tão fácil na medida em que todos temos preconceitos. O ecumenismo espiritual, o rezar juntos, está bem no centro no coração do ecumenismo. Orar juntos transforma o coração. Assim, creio celebrarmos juntos a Liturgia da Palavra em Lund é o mais importante.
Hoje, está mais fácil aos católicos unirem-se aos luteranos ou aos ortodoxos?
É uma boa pergunta. Do ponto de vista dogmático, nós estamos muito mais próximos dos ortodoxos do que dos protestantes, pois reconhecemos os sacramentos uns dos outros, incluindo o sacerdócio e o episcopado. O único ponto de descordo com os ortodoxos é o papado. Eles concordariam com uma primazia de honra, mas não de jurisdição. Mas existem pessoas dentro da igreja ortodoxa, como os monges no Monte Athos, que não concordam com que os nossos sacramentos são válidos.
Existem também dificuldades dentro das igrejas ortodoxas conforme vimos na ocasião do sínodo pan-ortodoxo, onde alguns não se arriscam a nos reconhecer como igreja, mas aqui temos um fundamentalismo. Enquanto isso, está claro para o Patriarca Ecumênico Bartolomeu e para o Patriarca Kirill, que me disse que “nós reconhecemos todos os seus sacramentos”.
Do ponto de vista dogmático, estamos mais próximos dos ortodoxos, mas os protestantes são desta mesma cultura latina e ocidental. Então, não há só uma lacuna dogmática como também cultural com os ortodoxos, que têm uma história e uma cultura diferentes – a cultura bizantina – e, assim, desse ponto de vista, é mais fácil a aproximação com os protestantes. Estamos mais próximos na forma como fazemos teologia, empregando as mesmas abordagens na exegese bíblica, nos métodos histórico-críticos e assim por diante. Nesse quesito cultural, os católicos e protestantes são muito mais parecidos, enquanto que a tradição ortodoxa e a maneira de pensar são culturalmente diferentes.
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A visita de Francisco à Suécia é “um passo importante nesta caminhada conjunta à unidade”, afirma cardeal Kasper - Instituto Humanitas Unisinos - IHU