01 Mai 2020
"A SARS-COV-2 tornou evidente aquilo que há tempos uma parcela dos intelectuais orgânicos do capital, bem como os meios de comunicação e formadores de opinião de massa a ele aliados, tentam ocultar: as diferenças e desigualdades de classe, de raça e de sexo. Não só continuam a existir como, perante a situação atual, estão ainda mais agravadas", escreve Iael De Souza [1], Doutora em Educação pela UNICAMP/SP, Mestre em Ciências Sociais pela UNESP/Marília, Professora efetiva do Curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEDOC), colaboradora do Curso de Economia da UFPI/Teresina e Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Emancipação Humana (NESPEM), da UFPI/Teresina.
“E aquilo que nesse momento se revelará aos povos Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto Quando terá sido o óbvio” (UM ÍNDIO – Caetano Veloso)
Em situações extraordinárias, tudo aquilo que é considerado “normal” é suspenso e sua quebra pode provocar, em alguns indivíduos, o despertar do “sono encantado do cotidiano”, como o personagem Neo do primeiro filme da trilogia Matrix, que ao tomar uma pílula que faz parte de um programa é retirado do mundo como conhece (“normal”) e acorda no mundo real (o deserto do real), não compreendendo, a princípio, o que vê (porque ainda não está pronto para enxergar).
A Pandemia da SARS-COV-2 está servindo, para alguns, como esse momento de suspensão da normalidade, dado que está “revelando aos povos” aquilo que parecia oculto quando já era o óbvio (no dizer de Caetano Veloso): os resultados de quatro décadas de política-econômica neoliberal, forma atual do Estado político do capital, responsável por efetuar as mudanças e reestruturações necessárias ao modo de funcionamento do capital flexível e seu processo de acumulação:
a) privatização do público (água, energia, telefonia/telecomunicações – setores estratégicos –, só para citar alguns), de cortes do Estado com os gastos sociais (saúde, educação, previdência social, etc.);
b) desregulamentações e reformas fiscais, financeiras, trabalhistas, tributárias, legislativas encabeçadas pelo Estado político do capital, criando as bases infraconstitucionais/legais para o livre trânsito do capital flexível e sua acumulação exponencial via precarização estrutural do mundo do trabalho e consolidação da barbárie social, apontando para além e pior: a própria autodestruição da humanidade devido à produção destrutiva do capital que há séculos vem matando todos os ecossistemas.
A Natureza vem dando sinais há tempos (furacões, tsunamis, chuvas de granizo, terremotos, altas temperaturas, poluição, etc.) do começo do fim.
Para a classe trabalhadora, todas essas contra(reformas) estão resultando em destruição e desmonte das conquistas históricas-sociais arrancadas ao capital e suas personas, os capitalistas e homens de negócio, através das lutas de classe. Se na “era de ouro” do capitalismo (1945-1975), a classe trabalhadora – principalmente dos países centrais – contava com um Estado regulador (fordismo/keynesianismo) que, visando o equilíbrio entre produção e consumo e manutenção da produção de mais-valia, procurou garantir-lhe as condições salariais adequadas ao crescimento socioeconômico (graças, também, a maior extração de mais-valia absoluta dos países periféricos), como também as políticas “públicas”-sociais relativas aos direitos sociais (saúde, previdência, proteção social, etc.), na “era perversa do capital” (1980-2010) a vingança contra o mundo do trabalho e a classe trabalhadora viria com juros e correção monetária.
Com a precarização existencial e salarial causadas pela desregulamentação e flexibilização das jornadas de trabalho, dos modelos de contrato e remuneração flexível que afeta trabalhadores de países centrais e periféricos, formais e informais, a SARS-COV-2 se torna ainda mais virulenta e genocida. Os terceirizados, de contrato intermitente, de tempo parcial, de contrato temporário, os “autônomos”, os “prestadores de serviços” em geral e, pior ainda, os desempregados, não encontram mais um
Estado para organizar as relações de trabalho e impedir que explorações predatórias (impliquem) em elevação do sofrimento e disseminação de insatisfações e conflitos desagregadores do todo social. (Apenas esse Estado interventor/regulador[2], acreditado por muitos como voltado para o social, poderia) limitar as ações do poder econômico dentro de um contexto de projeto social bem concebido [voltado, sobretudo, à redistribuição da riqueza socialmente produzida], amplamente difundido, para que possa, inclusive, ser assimilado e seguido [sem eliminar a necessidade da plena fiscalização] (SOUTO MAIOR, 2020, p. 5).
Nessas décadas de aplicação das orientações dos Consensos de Washington e de suas condicionalidades, de consubstanciação da barbárie social, manifesta no aumento da miséria, da pobreza, do número de desempregados no mundo[3], a classe trabalhadora metamorfoseada em sua morfologia estrutural e órfã de um braço político (Partido) e um braço econômico (Sindicato) de atuação junto às massas (e não parlamentar, institucional), combativo (e não defensivo), com projeto político-social anticapitalista e contra-hegemônico ao capital (e não conciliador e caudatário), dependendo do país a que pertença, não tem mais hospitais públicos para recorrer (todos foram privatizados) e, caso ainda tenha, em sua grande maioria, encontrarão hospitais sucateados pelos cortes consecutivos realizados por vários governos, cuja falta de investimentos de décadas resultam em quantidade de leitos limitadas, forçando os médicos, por falta de condições que deveriam estar pressupostas, a decidir (causando enorme sofrimento e angústia) quem terá a chance de lutar para viver e quem morrerá (“Escolha de Sofia” – expressão que invoca a imposição de se tomar uma difícil decisão sobre pressão e enorme sacrifício pessoal), como também inexistência de materiais e equipamentos individuais de proteção a todos os profissionais de saúde.
Se se continuasse, a lista das situações absurdas e bárbaras seria interminável. A SARS-COV-2 tornou evidente aquilo que há tempos uma parcela dos intelectuais orgânicos do capital, bem como os meios de comunicação e formadores de opinião de massa a ele aliados, tentam ocultar: as diferenças e desigualdades de classe, de raça e de sexo. Não só continuam a existir como, perante a situação atual, estão ainda mais agravadas. É o que se assiste nos noticiários da TV, nas matérias das revistas, nas notícias compartilhadas nas redes sociais, etc. A “normalidade” da barbárie social que se vive cotidianamente explode perante os olhos de quem pode ver, ainda que tenha dificuldades para entender o que não está preparado para enxergar.
Uma coisa é certa: essa pandemia trouxe à superfície, de modo catártico, exemplos didatizados de análises, discussões, problematizações realizadas por pesquisadores, cientistas e estudiosos das ciências sociais e humanas sobre as consequências da política-neoliberal do Estado político do capital; da crise estrutural do capital; da produção destrutiva capitalista; do consumismo desenfreado inerente à taxa de utilização decrescente dos valores de uso (obsolescência planejada); de que a valorização do valor está acima das necessidades e valores humanos, importando a manutenção do mercado e do lucro em detrimento da vida humana, dentre outras. Todas essas reflexões, na maioria das vezes, são demasiado densas pelas mediações e abstrações, dificultando o acesso e apreensão por parte dos verdadeiros interessados: a classe trabalhadora e as camadas populares.
Por isso, acredita-se que caso aqueles que hoje exerçam algum tipo de liderança ou influência em seus bairros (associações), escolas, universidades, movimentos sociais, igrejas, partidos, sindicatos retomassem o trabalho de formação político-social junto às bases, às massas, às periferias, como fizeram as CEB’s (Comunidades Eclesiais de Base nas décadas de 1950 a 1980), ou, numa outra situação e de outra forma, mas com um intento aproximado, Hugo Chávez, com a criação dos círculos bolivarianos, ou ainda, a experiência da criação dos sovietes, na Rússia de Lênin, e os conselhos de fábrica na Itália de Gramsci, apenas para citar alguns, talvez se poderia vislumbrar no horizonte o ressurgimento de coletivos de luta unificada, com bandeiras universais, com projeto político-social consciente e consequente anticapitalista, contra-hegemônico e tendo por estratégia a emancipação humana, e ao invés de alguma possibilidade de transformação radical demorar séculos, poderia, quem sabe, demorar apenas algumas décadas pelo aproveitamento das condições e circunstâncias abertas pelos circuitos da processualidade histórica-social. É preciso que se mobilize e organize para isso a partir de agora. Talvez assim se possa ir além de “Bacurau” e “Coringa”, porque se atacaria a raiz que engendra todas as “Bacuraus” e “Gotham Cities”: o modo de produção capitalista e o sistema sociometabólico do capital.
[1] E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
[2] É comum que quando uma grave e devastadora crise econômica global ecloda soluções capitalistas neokeynesianas sejam resgatadas. No entanto, é importante não nos deixar enganar. Como alerta Mészáros (2011, p. 137): “Os apelos a sua ressurreição são compreensíveis na atualidade, uma vez que equivalem à última linha de resistência em torno da qual as várias personificações do capital podem obter consenso provisório num momento de grave crise. Sob tais circunstâncias, as várias formas do capital pretendem lançar mão de medidas de intervenção estatal keynesianas para a reestabilização de seu sistema até que possam reverter suas concessões e retornar ao status quo ante”.
[3] Segundo a OIT (2020) – Organização Internacional do Trabalho –, “(...) estimativas preliminares indicam um aumento no desemprego global entre 5,3 milhões de pessoas (cenário „baixo‟) e 24,7 milhões (cenário „alto‟), a partir de um nível base de 188 milhões em 2019. O cenário „médio‟ sugere um aumento de 13 milhões de desempregados (7,4 milhões nos países de alta renda). (...) Para comparação, a crise financeira global de 2008- 2009 aumentou o desemprego em 22 milhões de pessoas. (...) Como observado em crises anteriores, os efeitos adversos sobre a demanda por trabalho provavelmente levarão a amplos ajustes em termos de redução de salários e horas de trabalho. (...) Também é necessário considerar a possibilidade de o número de trabalhadores em situação de pobreza aumentar substancialmente. (...) poderia haver um adicional de 8,8 milhões de trabalhadores em situação de pobreza em todo o mundo, mais do que o inicialmente previsto. (...) Nos cenários de incidência média ou alta, haverá, respectivamente, de 20,1 a 35 milhões de trabalhadores em situação de pobreza, valor acima das previsões feitas para 2020, antes do surto de COVID-1”.
“Como o COVID-19 afetará o mundo do trabalho?” OIT (Organização Internacional do Trabalho), 2020. Disponível em aqui.
MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. Trad. Francisco Raul Cornejo.. (et.al.). 2 ed. rev. e ampliada. São Paulo: Boitempo, 2011. (Mundo do Trabalho)
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Da Pandemia ao Pandemônio. In: Boletim Classista, n. 20, abril de 2020.
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Um relance sobre as agruras acentuadas e evidenciadas pela Sars-Cov-2 para a classe que-vive-da-venda-da-sua-força-de-trabalho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU