24 Setembro 2015
"Há saídas diferentes, alternativas à política econômica que está sendo implementada. Há outras formas de obter apoio para realizar mudanças, diferentes da busca de apoio e alianças a qualquer custo: apoiando-se nos movimentos sociais, nos trabalhadores, na maioria da sociedade que trabalha e enfrenta dificuldades – agora, maiores que antes", defende Ivo Lesbaupin, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em artigo encaminhado ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Eis o artigo.
Introdução
Estamos vivendo atualmente uma situação impensável até um ano atrás. Houve uma campanha eleitoral extremamente agressiva, onde adversários foram atacados de forma virulenta – não apenas suas ideias, seus programas. Com o reforço do apoio de movimentos sociais, foi reeleita a presidente Dilma, por pequena margem. Desenvolveu-se uma campanha da grande mídia contra o governo. Começou durante o processo eleitoral, se tornou mais forte no segundo turno e continuou desde então. Motivou mobilizações de rua contra a presidente, até pedidos de volta dos militares. Insistentemente coloca em debate a possibilidade de impeachment.
Poder-se-ia dizer que há motivos de sobra para o noticiário antigoverno: o escândalo da corrupção na Petrobras, o envolvimento do PT e de partidos da base aliada, etc. No entanto, outros escândalos de corrupção — que não envolvem o PT ou o governo — não são noticiados. Poderíamos citar o caso do cartel do metrô de São Paulo (governos do PSDB), os escândalos do governo do Paraná (também PSDB), a lista dos envolvidos na sonegação do HSBC, fartamente divulgados no exterior e que, aqui, levaram meses para chegar ao noticiário.
Este é um lado da história
O que torna a situação sobremaneira original é o outro lado. Durante a campanha eleitoral, a presidente Dilma defendeu ardorosamente as políticas sociais vigentes e garantiu que não haveria retrocesso. Desde então, no entanto, tem implementado um programa de governo contrário a estas ideias. A sistemática de aumento de juros voltou – o Brasil é hoje o país com os juros reais mais altos do mundo -, houve a nomeação de um Ministro da Fazenda de convicções neoliberais e logo em seguida foi proposta uma política econômica de "ajuste fiscal". Medidas para a contenção dos gastos sociais - alterações nas regras do seguro-desemprego, abono salarial, pensão por morte, auxílio-doença, auxílio-reclusão — foram enviadas e aprovadas (com pequenas modificações) pelo Congresso, afetando direitos dos trabalhadores/as. A impressão geral é que estamos de volta ao governo FHC...
Quanto mais fortes são as pressões dos grandes grupos econômicos (banqueiros, empresários), apoiados pela grande mídia, mais o governo cede às suas exigências. As conquistas sociais dos anos anteriores estão sendo demolidas, direitos estão sendo violados, programas sociais estão sendo cortados. A política de "ajuste fiscal" está caminhando para um "ajuste estrutural" (cf. Guilherme Delgado), onde as políticas sociais públicas vão cedendo o lugar a processos gradativos (ou explícitos) de privatização, como vem ocorrendo na área da saúde, com os planos e seguros privados.
Supostamente para evitar o "golpe" da direita, que quereria tomar o poder perdido na eleição, através de um impeachment ou algo semelhante ("ganhar no tapetão", como se diz na linguagem coloquial), o que está ocorrendo efetivamente é que o governo, eleito por um programa social, está implementando a política que a direita queria, com muito mais eficácia do que o faria um candidato de direita. Hoje, os trabalhadores, os movimentos sociais, os mais pobres, não podem contar com o governo como seu aliado: ao contrário, é cada vez mais evidente a aliança do governo com as elites econômicas.
Não se trata, simplesmente, de que a presidente se encontre refém do poder econômico. Ela defende convictamente a política que está implementando. Quando a presidente Dilma afirma que a crise é grave e que precisa de um remédio amargo, está escondendo que sua política econômica de ajuste não é uma solução para a crise, é uma política que transfere recursos públicos dos mais pobres para os mais ricos – através dos juros altos, do "sistema da dívida pública" e do injusto sistema tributário brasileiro (no qual os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos).
O que significa para o país a adoção de uma política de ajuste fiscal?
Segundo o economista João Sicsú, o ajuste fiscal (ou "plano de austeridade") reduz a renda da maioria, enfraquece o comércio e diminui a arrecadação tributária. Ao debilitar a economia, gera desemprego e mantém ou amplia o desequilíbrio fiscal [1].
Quando a União Europeia decidiu, em 2011, aplicar políticas de austeridade para enfrentar a crise em seus países, Joseph Stiglitz e Paul Krugman – ambos prêmio Nobel de Economia – criticaram a decisão, mostrando que estas políticas levariam à queda da atividade econômica, ao aumento do desemprego, à piora das condições sociais da maioria e à dificuldade de pagar a dívida. Krugman chegou a escrever um livro para provar o que dizia e para mostrar que havia alternativas[2]. Foram ignorados pela grande mídia e pelos governantes. Mas aconteceu o que eles previram.
Sicsú observa que o desemprego já está aumentando. O governo está elevando a taxa de juros com a justificativa de reduzir a inflação. Mas a inflação atual é gerada por fatores que não são modificados pelos juros: o aumento de preços administrados pelo governo (gasolina, energia elétrica) e eventos climáticos, que afetam o preço dos alimentos.
A elevação dos juros não conterá a inflação e, pior, aumentará as despesas com o serviço da dívida pública. Em 2014, os gastos públicos com juros foram superiores a 300 bilhões de reais. Esta política vai aumentar a renda e a riqueza dos mais ricos: são os investidores financeiros (bancos, rentistas) que recebem os juros da dívida, que ganham mais a cada aumento da taxa de juros.
O que se pode concluir é que a política de ajuste fiscal não é necessária nem tampouco a única possível, ela é prejudicial para a recuperação econômica do país e beneficia, essencialmente, a camada mais rica da sociedade. Mais que isso: esta política foi experimentada recentemente nos países europeus e seu resultado foi desastroso para a sociedade, mas muito lucrativo para os banqueiros.
O economista Guilherme Delgado aprofunda a crítica: "Porque, na realidade, os ajustes fiscal e monetário estão muito mais preocupados com a ideia do saneamento financeiro no sentido de recompor situações financeiras dos proprietários da riqueza, do que propriamente de vislumbrar o “day after” do crescimento. Esse é que o problema, ou seja, a maneira como o governo passou a lidar no ajuste fiscal com a crise, não a resolve, mas a aprofunda"[3].
Continuando, ele diz que será ainda mais grave se o governo decidir transformar o ajuste fiscal em ajuste estrutural, que significaria um ataque aos direitos sociais, um ataque à Constituição de 1988, passando "para o mercado as responsabilidades das políticas sociais, através da ideia dos seguros - seguro-saúde para quem tem dinheiro para pagar, seguro-previdência para quem tem dinheiro para pagar e seguro-educação para quem tem dinheiro para pagar -, é a mercantilização da política social". Isto é exatamente o que os setores conservadores – apoiados pela grande mídia – desejam.[4]
Um pouco de retrospecto histórico
O Brasil avançou nos últimos dez anos. Entre 2004 e 2014 houve séria redução do desemprego, transferência de renda para os setores mais pobres da população, valorização do salário-mínimo acima da inflação.
Os dados mostram que, neste período, cerca de 30 milhões de brasileiros deixaram a extrema pobreza e os trabalhadores passaram a ter uma renda melhor, com acesso a bens de consumo aos quais não tinham antes. O Brasil foi um dos países onde houve maior redução da pobreza nestes anos.
Houve avanços também na área da agricultura familiar, como a expansão do crédito rural e programas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que vêm favorecendo pequenos agricultores no campo. Para o Semiárido Nordestino, houve expansão da infraestrutura social, com o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e vários outros que contribuíram no que se refere a energia, telefonia, etc. O programa de habitação Minha Casa Minha Vida também representou uma realização importante (embora não seja isento de críticas).
Houve uma revalorização do Estado, que havia sido seriamente debilitado durante os governos de Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso; a política externa se tornou mais independente, especialmente na relação com os governos chamados “progressistas” — que os EUA queriam isolar.
O combate ao trabalho escravo se tornou sistemático.
A instalação da Comissão da Verdade pelo governo Dilma, mesmo considerando as limitações, como o curto tempo para o trabalho — apenas dois anos —, veio preencher uma lacuna de quase 30 anos.
Em 2014 houve também a vitória do Marco Civil da Internet e do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (lei 13.019).
No entanto, se examinarmos as políticas desenvolvidas nos últimos doze anos, vamos descobrir que os seus maiores beneficiários não são os mais pobres.
Vejamos a quem o governo atendeu em primeiro lugar (2003-2015).
O capital financeiro - Se queremos saber a quem o governo dá prioridade, temos de examinar para onde vão os recursos públicos.
Atualmente, no Brasil, eles são destinados em primeiro lugar ao pagamento da dívida pública e de seus juros. Em 2014, quase metade do orçamento público (45%) foi para os juros e o pagamento da dívida [5], enquanto que menos de 5% foram para a saúde e menos de 4% para a educação. Isto quer dizer que a maior parte dos recursos do país foi para a pequena camada mais rica do país (que corresponde, no máximo, a 5% da população). Estes são os que recebem os juros da dívida: bancos, fundos de investimento, fundos de pensão, investidores financeiros (os chamados "rentistas"). Além destes, uma parte foi para os credores externos (bancos, países estrangeiros e instituições multilaterais).
Este "sistema da dívida" é o grande devorador dos recursos públicos: é o maior gasto do governo. Por isso, faltam recursos para a saúde, a educação, o transporte, o saneamento básico e as demais políticas públicas.
O agronegócio - Para garantir a exportação de produtos primários — elemento central de sua política econômica —, o governo mantém uma aliança com o agronegócio, razão pela qual não houve reforma agrária no país. Estamos vivendo um processo de reprimarização da economia — desde o governo Fernando Henrique Cardoso, a industrialização deixou de ser prioridade — e o agronegócio é apresentado tanto pelo governo quanto pela grande mídia como o principal fator de desenvolvimento do país. Acrescente-se ao agronegócio as grandes mineradoras.
As grandes empreiteiras - Há um outro setor privilegiado: são as grandes empreiteiras — Odebrecht, OAS, Camargo Correia, Andrade Gutierrez, entre outras. Elas estão em todas as grandes obras de infraestrutura do país, entre as quais as usinas hidrelétricas — Belo Monte é o exemplo mais notório. Mesmo quando não cumprem as condicionalidades às quais se comprometeram, continuam a receber recursos do BNDES. Não sem razão, estão entre os maiores doadores para as campanhas eleitorais: são também grandes corruptores de governos e partidos políticos, como as recentes investigações têm demonstrado.
Não temos um projeto de país
Economistas como Carlos Lessa [6] e Reinaldo Gonçalves [7] têm repetido esta afirmação há vários anos. O que temos é um programa de grandes obras de infraestrutura (consignadas no PAC – Programa de Aceleração do Crescimento) e operações de apoio financeiro (BNDES) para a formação de grandes empresas nacionais (que se tornam multinacionais).
O pífio crescimento econômico é resultado direto da submissão aos interesses do capital financeiro (juros altos) e da decisão de atender aos ditames neoliberais, o famoso tripé econômico exigido pelo FMI [8]. Agora, com o ajuste fiscal, será ainda pior.
Continua a ocorrer um vasto processo de transferência de renda da maioria da população para a camada mais rica do país – através do sistema tributário regressivo e do "sistema da dívida" (Assis, 2005: 89 [9] ; Fatorelli, 2012: 59 [10]).
Desigualdade social
Nos últimos dez anos houve redução da pobreza, mas não da desigualdade social. O índice de Gini, que mede a desigualdade, tem melhorado ano a ano. Mas este índice se baseia nos dados da PNAD, que capta a massa de rendimentos do trabalho e os pagamentos de benefícios monetários da política social. Uma outra parte da renda interna — juros, lucros, dividendos — não é captada por esta pesquisa. É exatamente nesta parte que estão, por exemplo, os juros da dívida, recebida pelos mais ricos. A distância entre a pequena camada mais rica da sociedade e os mais pobres aumentou: a renda dos pobres melhorou, assim como o salário-mínimo (até 2014), mas a renda dos mais ricos aumentou muito mais [11].
Por outro lado, o Brasil carrega outra “herança maldita”: o sistema tributário regressivo, que o governo Fernando Henrique Cardoso acentuou. Isto significa que, ao invés de distribuir renda, este sistema é concentrador. Nele, os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos, porque o peso maior está no imposto sobre o consumo. O governo Lula introduziu pequenas melhorias neste sistema, mas sem mexer na estrutura regressiva. O imposto sobre o consumo, para quem ganha até 2 salários-mínimos, representa quase a metade da remuneração (48,8%), enquanto que para quem ganha 30 salários-mínimos é de 16%. Ou, colocado de outra maneira: quem financia boa parte dos programas assistenciais que beneficiam os mais pobres são os próprios pobres [12]. Os governos Lula-Dilma não fizeram a reforma do sistema tributário, reprodutor de desigualdade.
Auditoria da dívida pública. Esta é uma exigência da Constituição de 1988, a qual nem o governo FHC nem os governos do PT puseram em prática. Com isso, favorecem os poucos privilegiados que ganham fortunas com a manutenção do status quo. E prejudicam a imensa maioria que sofre as consequências de os recursos públicos não serem empregados onde deveriam: na saúde, na educação, no transporte, no saneamento básico, nos serviços públicos em geral.
A auditoria provaria que uma parte da dívida que nós pagamos é irregular e isto diminuiria substancialmente a sangria de recursos públicos. A única auditoria que o país fez, em 1931, concluiu que 60% da dívida não tinham documentos que a comprovassem. O mesmo aconteceu, mais de 70 anos depois, quando o Equador fez sua auditoria, em 2009: 65% da dívida eram eivadas de irregularidades. Como a nossa dívida externa foi constituída principalmente durante a ditadura civil-militar de 1964-1985, quando o Congresso não tinha acesso aos documentos, há indicações bem fundadas – reveladas na CPI da Dívida Pública (2009-2010) - de que boa parte desta dívida é indevida. Só uma auditoria poderá verificar e comprovar.
Privatizações
O governo atual foi eleito em 2010 como a candidatura antiprivatista — oposta ao projeto neoliberal. No entanto, a candidata eleita retomou com força as privatizações, passou a privatizar portos, aeroportos, ferrovias e rodovias e manteve a prática das PPPs (parcerias público-privadas, outro nome para a privatização).
O governo FHC quebrou o monopólio da Petrobras e 60% das ações desta empresa estão hoje em mãos privadas. O governo Lula não reverteu este processo. O governo FHC iniciou em 1997 os leilões das áreas de exploração do petróleo, que permite a entrada de empresas privadas. O governo Lula deu continuidade aos leilões, apesar dos protestos dos petroleiros. O governo Dilma realizou — contra a oposição de todos os movimentos sociais — o primeiro leilão de um campo do pré-sal (Libra), cujas reservas são imensas.
Os povos indígenas, a questão agrária e a questão ambiental [13]
Até hoje não foi realizada a reforma agrária, reivindicação do movimento camponês da primeira metade do século XX. Impedir a reforma agrária foi um dos principais motivos para o golpe militar de 1964. Mas a ditadura acabou e a reforma agrária não foi assumida por nenhum governo eleito democraticamente depois, nem mesmo os governos do Partido dos Trabalhadores. Neste último caso, graças à aliança com o agronegócio, que se tornou prioritária para a política econômica.
A situação dos povos indígenas é extremamente séria: são vítimas dos megaprojetos de infraestrutura (usinas hidrelétricas e outros), da expansão do agronegócio e dos interesses das mineradoras. Na visão do atual governo, "o índio não pode prejudicar o progresso do país" [14]. Os povos indígenas que se encontram no caminho da construção de hidrelétricas, seja no rio Madeira, no Xingu (Belo Monte), no Tapajós ou outro, estão destinados a perder o seu habitat natural e, portanto, em muitos casos, a desaparecer. Entre os direitos destes povos, garantidos pela Constituição Cidadã, e os interesses dos negócios, são os últimos que estão prevalecendo. O povo Guarani-Kaiowá é apenas um exemplo de um povo condenado à morte pela omissão do governo.
No campo, há ainda duas outras questões sérias. Em 2003, o governo Lula liberou o plantio de transgênicos no Brasil. A maior parte dos países europeus, alertada sobre os riscos que o uso de produtos transgênicos representa para a saúde humana, decidiu proibir o seu plantio [15]. Hoje, no Brasil, em virtude da liberação, mais da metade da área plantada é de produtos transgênicos (a partir de 2012).
Durante o governo Lula, o Brasil se tornou o maior consumidor mundial de agrotóxicos, à frente dos Estados Unidos. Já há um grande número de pesquisas provando que o uso destas substâncias produzem doenças nos agricultores - e mesmo a morte - e cresce o número de pesquisas que demonstram o surgimento de doenças devido à ingestão cotidiana de alimentos plantados com o emprego de agrotóxicos. "É preciso lembrar que o expressivo aumento das lavouras transgênicas no Brasil foi um dos grandes responsáveis por levar o Brasil a ocupar, desde 2008, a primeira posição no ranking mundial de consumo de agrotóxicos. Atualmente, além de ser o campeão mundial no uso de venenos, o Brasil importa e permite a aplicação de produtos proibidos em outros países, sem falar na entrada ilegal de produtos"[16] .
A utilização de transgênicos e agrotóxicos, além de ser extremamente danosa para o meio ambiente e prejudicial para a população atual, gera riscos para as gerações futuras, porque tanto a terra como a água são contaminadas. Nem o governo Lula nem o governo Dilma tomaram qualquer medida para enfrentar esta situação. Ao contrário, nestes governos a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) tem sistematicamente liberado os transgênicos. A única reação vem de movimentos sociais e de organizações da sociedade civil.
O meio ambiente está sendo seriamente atingido pelas políticas vigentes: o desmatamento na Amazônia não cessa porque há um forte interesse do governo no desenvolvimento do agronegócio, na construção de dezenas de hidrelétricas nos principais rios, assim como não tem compromisso com a meta de "desmatamento zero", como existe em outros países. E, mesmo depois do acidente de Fukushima, no Japão, o governo mantém o projeto nuclear.
O que nos cabe fazer?
De um lado, denunciar as manobras golpistas da oposição de direita, dos setores conservadores, daqueles que querem passar por cima da ordem constitucional...
De outro lado, denunciar o governo e sua política econômica de ajuste fiscal - que favorece os mais ricos (capital financeiro, bancos, rentistas), corta recursos das políticas sociais e atinge os direitos dos trabalhadores, gerando desemprego e redução de renda.
Há saídas diferentes, alternativas à política econômica que está sendo implementada. Há outras formas de obter apoio para realizar mudanças, diferentes da busca de apoio e alianças a qualquer custo: apoiando-se nos movimentos sociais, nos trabalhadores, na maioria da sociedade que trabalha e enfrenta dificuldades – agora, maiores que antes.
Que Brasil queremos construir? O que seria um programa mínimo se queremos melhores condições de vida?
Precisamos de uma Reforma do Sistema Político. Uma reforma que acabe com o financiamento de campanhas eleitorais e partidos políticos por empresas privadas: esta parte da reforma já foi conseguida graças à Ação Direta de Inconstitucionalidade pedida pela OAB e votada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) [17].
É preciso que se estabeleça o financiamento público das campanhas e dos partidos políticos. (E, se for permitida a contribuição de indivíduos, que se fixe o limite máximo individual a um salário-mínimo).
Uma reforma que possibilite a participação dos cidadãos e cidadãs no processo de tomada de decisões:
sobre a política econômica;
sobre todo e qualquer projeto que tenha forte impacto social e ambiental;
sobre a privatização de empresas estatais e de serviços públicos.
Uma reforma que realize a democratização do Sistema de Justiça – o poder judiciário é hoje o menos controlado dos três poderes.
Democratizar os meios de comunicação. É necessária uma legislação que torne a liberdade de informação e de expressão uma realidade para todos os brasileiros (e não apenas para a elite que controla a grande mídia) e que abra o espectro da comunicação, quebrando o atual oligopólio - que favorece unicamente a um pequeno grupo de grandes proprietários, que defende os interesses das elites econômicas, em detrimento dos direitos da maioria. Um oligopólio que difunde um único pensamento e que bloqueia o debate das verdadeiras questões nacionais.
Só assim poderemos dizer que caminhamos para uma democracia que signifique governo do povo, pelo povo, para o povo.
É preciso mudar o modelo econômico. Superar a concepção neoliberal, centrada nos interesses do capital financeiro (bancos, investidores financeiros), rejeitar as políticas de "ajuste fiscal" (os chamados "planos de austeridade") [18] ; superar também a concepção neodesenvolvimentista, que financia com recursos públicos grandes empresas privadas. Interromper o processo de privatização de serviços públicos e de nossas riquezas naturais (entre as quais o petróleo).
Com uma nova concepção de desenvolvimento. Construir um modelo econômico centrado nas pessoas, na realização de seus direitos e numa relação harmoniosa com a natureza, no "bem viver" – como condição para enfrentar a grave crise ecológica na qual estamos imersos. Que ele esteja a serviço da vida e que seja debatido por toda a nação e não formulado somente por tecnocratas. Há propostas alternativas, elas são perfeitamente viáveis e, sem dúvida, muito melhores para a vida do conjunto dos cidadãos [19].
Realizar uma auditoria da dívida pública, conforme exigência de nossa Constituição (Constituição Federal, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 26, 1988). Precisamos saber a quem deve e quanto deve realmente o Brasil, e de que forma foi feita esta dívida. A única auditoria que o Brasil fez, em 1931, constatou que 60% da dívida era irregular, legalmente inexistente. Em 2000, tivemos um Plebiscito Popular sobre a Dívida Externa, do qual participaram 6 milhões de pessoas e 95% votaram pela realização da auditoria da dívida. Recentemente, em 2009, o Equador realizou uma auditoria da dívida pública, e descobriu que 70% da dívida era irregular; a partir de então passou a pagar apenas 30%, investindo o restante em saúde e educação. O Brasil é um país rico, com imensos recursos, mas que são em boa parte transferidos para os mais ricos: esta auditoria será um passo fundamental para mudar esta realidade injusta.
Reforma Tributária. Reformar o nosso sistema tributário para que ele seja progressivo, isto é, pague mais quem ganha mais e pague menos (ou nada) quem ganha menos, o que implica que o imposto sobre a renda tenha mais peso que o imposto sobre o consumo. Introduzir o imposto sobre as grandes fortunas, de modo a reduzir a enorme desigualdade social que caracteriza nosso país. Aumentar o imposto sobre a propriedade territorial rural, para acabar com o privilégio dos latifundiários.
É preciso interromper os megaprojetos, que estão destruindo o habitat dos povos indígenas, quilombolas, das populações ribeirinhas e o meio ambiente. Investir nas energias renováveis, especialmente na energia solar – visto que somos um dos países mais ensolarados do mundo. Estabelecer uma estratégia para o gradual fim da utilização de fontes de energia prejudiciais ao meio ambiente e perigosas para a vida, como a energia nuclear e as termelétricas.
É urgente realizar a Reforma Agrária. É um escândalo que esta reivindicação dos trabalhadores rurais que data da primeira metade do século XX e que foi um dos motivos para o golpe militar de 1964 até hoje não tenha sido realizada. A ditadura impediu a reforma agrária, mas os governos posteriores também não a realizaram.
Promover a Reforma Urbana, para democratizar o direito à cidade. Que as cidades sejam feitas para as pessoas e não para os automóveis; investir no transporte público de qualidade, priorizar o uso dos trilhos (metrô, trens), reduzir o tempo de deslocamento entre casa e trabalho. Conter a especulação imobiliária e garantir que todos tenham condições de morar dignamente, com pleno acesso aos serviços públicos.
Universalizar os direitos humanos, políticos, civis, econômicos, sociais, culturais e ambientais, com respeito à diversidade. Garantir um sistema de saúde pública de qualidade, assim como de educação, de transporte, o saneamento básico. No caso da saúde, isto implica interromper o processo em andamento de privatização (através do favorecimento aos planos e seguros privados de saúde). Que a segurança pública seja exercida para proteger os direitos dos cidadãos e que se interrompa o genocídio de jovens negros no Brasil; que o sistema penitenciário seja totalmente reformulado.
Valorizar o trabalhador. Garantir trabalho para todos/as. Trabalho digno e não precarizado. Redução imediata da jornada de trabalho para 40 horas semanais, sem redução dos salários.
O controle social da gestão pública. Para garantir um serviço público voltado para os interesses dos cidadãos, é fundamental que estes possam exercer o controle da atividade parlamentar assim como o controle dos governos (municipais, estaduais, federal).
A ética na política. Estamos convencidos de que uma outra política é possível. O comportamento ético é essencial para a vida do cidadão e, especialmente, para aquele/a que se dedica ao serviço público. A corrupção, como fica evidente a cada escândalo que vem a público, serve apenas aos interesses dos que detêm poder econômico.
Anexos:
*Gráficos elaborados por Auditoria Cidadã da Dívida (www.auditoriacidada.org.br).
Notas:
[1] João Sicsú. O que é e o que produz o ajuste fiscal? 19/05/2015 -http://www.cartacapital.com.br/economia/o-que-e-e-o-que-produz-o-ajuste-fiscal-2903.html ; 14/08/2015 - http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/545706-entrevista-especial-com-joao-sicsu ; ver também Marcio Pochmann, "Outra agenda econômica é possível", 16/07/2015 - http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Outra-agenda-economica-e-possivel/7/34005
[2] Um basta à depressão econômica! Propostas para uma recuperação plena e real da economia mundial. Rio de Janeiro, Elsevier, 2012.
[3] Guilherme Delgado, "A disputa que impede a emergência de uma terceira via. Entrevista especial com Guilherme Delgado" (www.ihu.unisinos.br – 01/09/2015).
[4] Para evitar dúvidas, entendo por governo de direita aquele que atende em primeiro lugar aos interesses dos grandes grupos econômicos. Um governo de esquerda, por estar comprometido em primeiro lugar com a justiça e com a igualdade – portanto, com a redução da desigualdade –, atende prioritariamente aos interesses das grandes massas de trabalhadores e empobrecidos.
[5] A dívida externa chegou, em dezembro de 2014, a 554 bilhões de dólares, e a dívida interna, a 3 trilhões e 300 bilhões de reais (cf. Auditoria Cidadã da Dívida).
[6] Carlos Lessa foi presidente do BNDES no início do governo Lula, de 2003 a 2004. Cf. "Essa Agenda Brasil é uma fraude. A prioridade absoluta deve ser tomar conta da rede urbana". Entrevista especial com Carlos Lessa (www.ihu.unisinos.br - 23/08/2015).
[7] Cf. "Crise econômica é reflexo da crise do Estado brasileiro". Entrevista especial com Reinaldo Gonçalves (www.ihu.unisinos.br – 27/08/2015).
[8] "O que temos visto desde os anos 1990 e particularmente desde 1999 – quando o tripé do câmbio flutuante/metas de inflação/metas fiscais passou a ser uma exigência do FMI – é, a rigor, uma política de controle inflacionário, baseada na abertura financeira e comercial. Essa política impõe a perigosa combinação de câmbio valorizado e juros reais elevados. Câmbio valorizado é mortal para um país periférico que tenha alguma pretensão de fortalecer a sua indústria local. Combinado com uma política monetária baseada em juros reais elevados e abertura comercial, o resultado é o que temos assistido: a indústria brasileira, largamente transnacionalizada, regride para um papel de montagem de peças e componentes importados" (Paulo Passarinho, "Paradoxos", Correio da Cidadania, 18/10/2013).
[9] A combinação de superávit primário (...) com a política monetária de juros altos incidentes sobre a dívida pública resulta “num dos mais perversos mecanismos de transferência de renda dos pobres para os ricos de que se tem notícia na história do capitalismo” (José Carlos de Assis. A Macroeconomia do pleno emprego. In: SICSÚ, João, PAULA, Luiz Fernando de, MICHEL, Renaut (orgs.) (2005). Novo desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com eqüidade social. Barueri, Manole; Rio de Janeiro, Fundação Konrad Adenauer, p. 89).
[10] Sobre o "sistema da dívida", ver Maria Lúcia Fatorelli, "Bolsa Rico". In: Catani, Antonio David e Oliveira, Marcelo Ramos. A sociedade justa e seus inimigos. Porto Alegre, Tomo Editorial, 2012, p. 59-80)
[11] Sobre a desigualdade no Brasil, ver: Medeiros, Marcelo; Souza, Pedro H. G. F.; e Castro, Fábio Avila. "O topo da distribuição de renda no Brasil: primeiras estimativas com dados tributários e comparação com pesquisas domiciliares, 2006-2012" (agosto 2014: disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=2479685). Estes autores mostram, a partir de dados tributários – inspirados na metodologia de Thomas Piketty -, que a desigualdade não diminuiu nos últimos anos.
[12] Cf. "Afinal, são os próprios beneficiários do BPC (Benefício de Prestação Continuada) e do PBF (Programa Bolsa Família) que estão financiando o orçamento da assistência social" (Evilásio Salvador, A Injustiça fiscal no financiamento das políticas sociais, in: Catani, Antonio David e Oliveira, Marcelo Ramos. A sociedade justa e seus inimigos. Porto Alegre, Tomo Editorial, 2012, p. 92).
[13] Cf. "Manifesto das organizações sociais do campo" (28/02/2012) e "Retrocessos do Governo Dilma na agenda socioambiental" (6/03/2012).
[14] Trecho de fala da Ministra Gleisi Hoffmann, Chefe da Casa Civil, em 8 de maio de 2013: "Não podemos negar que há grupos que usam os nomes dos índios e são apegados a crenças irrealistas, que levam a contestar e tentar impedir obras essenciais ao desenvolvimento do país, como é o caso da hidrelétrica de Belo Monte. O governo não pode concordar com propostas irrealistas que ameaçam ferir a nossa soberania e comprometer o nosso desenvolvimento" (grifos nossos).
[15] “Cientistas pedem a suspensão dos transgênicos em todo o mundo”. Carta de 815 cientistas de todo o mundo chama a atenção dos governos para os riscos dos transgênicos: “Nós,
cientistas abaixo-assinados, pedimos a suspensão imediata de todas as licenças ambientais para cultivos transgênicos e produtos derivados dos mesmos, tanto comercialmente como em testes em campo aberto, durante ao menos cinco anos; (...)”. As razões são os perigos que os transgênicos representam para a biodiversidade, a segurança alimentar, a saúde humana e animal; além disso, eles intensificam o monopólio corporativo, exacerbam as desigualdades e impedem a mudança para uma agricultura sustentável que garanta a segurança alimentar e a saúde em todo o mundo. 12/06/2014.
[16] Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Dossiê Abrasco. Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015, 628 págs.
[17] Este resultado é fruto de uma prolongada luta de inúmeros setores da sociedade civil, em particular a "Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político" que, desde 2004, vem atuando nesta direção. Graças às mobilizações de junho de 2013, o tema foi impulsionado e a coalizão pelo Projeto de Lei de Iniciativa Popular de Reforma Política, assim como a ampla mobilização pelo plebiscito popular por uma constituinte exclusiva – ambas apoiadas pela Plataforma – conseguiram ser um instrumento de pressão para esta mudança (cf. José Antonio Moroni, "Reforma do Sistema Político: onde estamos?" - http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-do-inesc/2015/setembro/reforma-do-sistema-politico-onde-estamos ).
[18] "Nós declaramos que a "austeridade" (...) é uma forma fossilizada de pen http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-do-inesc/2015/setembro/reforma-do-sistema-politico-onde-estamossar que se tornou uma ameaça para a vida na terra. (...) Uma coisa é clara: a escassez pública em tempos de tamanha riqueza privada é uma crise fabricada, com o objetivo de extinguir nossos sonhos antes que eles tenham a chance de nascer" ("We declare that “austerity” (…) is a fossilized form of thinking that has become a threat to life on earth. (…) One thing is clear: public scarcity in times of unprecedented private wealth is a manufactured crisis, designed to extinguish our dreams before they have a chance to be born". ("The Leap Manifesto: a Call for a Canada Based on Caring for the Earth and One Another" – assinado por Naomi Klein, David Suzuki, Donald Sutherland, Ellen Page, Leonard Cohen e outros – 15/09/2015- https://leapmanifesto.org/en/the-leap-manifesto/ ).
[19] Ver o livro-coletânea produzido pela Abong em 2012, "Por um outro desenvolvimento", disponível no site para download: www.abong.org.br/publicacoes.php?p=3b
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