Ajuste fiscal é teologia idolátrica, não é economia. Entrevista especial com Guilherme Delgado

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

02 Junho 2015

“Há formas de tributação muito mais progressivas da renda e da riqueza que não são sequer visitadas ou cogitadas e que têm um potencial de reequilibrar as contas públicas em outra direção, em uma direção de maior igualdade distributiva”, diz o economista. 

Foto: Empreendedores Web
“É preciso ter clareza do seguinte: existe uma crise fiscal; não é uma invenção dos conservadores”, mas o que é “questionável é a maneira de combater a crise fiscal através do chamado ajuste fiscal”, pontua Guilherme Delgado à IHU On-Line.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone, o economista explica que a atual conjuntura econômica é consequência do pacote de políticas anticíclicas, adotado para evitar os impactos da crise financeira de 2008, o qual não teve mais efeito ao longo do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff.

Como 2014 foi o ano “das benesses”, o ano em que o programa anticíclico se transformou num “programa eleitoral”, a crise só foi percebida após a reeleição da presidente, em 2015, “quando ficou mais visível o declínio econômico, a vulnerabilidade externa, a questão fiscal e, por outras razões, a crise do sistema da Petrobras”, frisa.

Na avaliação do economista, a conjunção de vários componentes, “uns autônomos, outros derivados da política econômica anterior, provocou no governo uma reversão de orientação estratégica de praticamente 180 graus”, à medida que o programa anticíclico supostamente keynesiano se reverteu em “um programa de ajuste totalmente neoclássico no sentido de economia doméstica, ou seja, cortar despesas é a receita dada”.

Para Delgado, o ajuste fiscal de 70 bilhões não irá resolver a situação econômica do país, porque o Brasil fica “permanentemente rolando políticas de ajuste conjuntural, sem ataque às causas do subdesenvolvimento”. Segundo ele, do ponto de vista macroeconômico há outras maneiras de “socorrer o desajuste fiscal e financeiro”. Para ter uma retomada do equilíbrio fiscal, pontua, “primeiro, as fontes e formas de recursos que o setor público obtém no processo econômico não podem cair ou continuar caindo. Se a base de tributação sobre a qual incidem os tributos e os rendimentos que o Estado captura, seja sob a forma tributária, seja sob a forma de ação empresarial, cai – que é o que acontece na recessão –, não há fundo do poço garantido. (...) Então, a política macroeconômica de ajuste, que provoca queda de receita bruta ou líquida do setor público, não tem salvação, portanto todos os gastos sociais que estão sendo cortados e que pelo seu corte implicam nessa queda de receita pública, não resolvem a questão da crise fiscal. Essa é a principal crítica dos keynesianos ao ajuste do ministro Levy”.

Guilherme Delgado (foto abaixo) é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.

Confira a entrevista.

Foto: t3.gstatic.com
IHU On-Line - Como o senhor interpreta o discurso do governo federal de que é necessário fazer o ajuste fiscal? O que aconteceu em termos de administração do orçamento público para chegarmos a essa situação?

Guilherme Delgado – Farei um retrospecto, não muito longo. Toda essa situação tem um ponto de desencadeamento: a crise financeira do final de 2008. A partir de 2009 o Brasil respondeu à crise com um programa anticíclico de investimentos e de explorações, o qual foi exitoso, nos dois primeiros anos, em conseguir conter e reverter a onda de declínio das atividades. Nos anos de 2010 e 2011, no segundo governo Lula, se conseguiu, através de um programa de investimentos em obra de infraestrutura e de estímulo às exportações de commodities, contrapor a queda da demanda externa e interna que viria normalmente com a crise, e foi possível realizar a chamada política keynesiana. Então, no momento em que um programa anticíclico gera crescimento ou detém a onda recessiva/depressiva, a situação fiscal fica razoavelmente equilibrada ou até melhora — em 2010 o crescimento foi de 7,5% e em 2011 foi de 3,8%.

Reversão

Contudo, o problema surgiu no primeiro governo Dilma, a partir de 2012, quando essa estratégia de ação do Estado com vista a realizar o investimento interno e continuar as exportações começa a reverter. Revertem os preços externos das commodities, com uma onda secundária da crise; o programa de investimentos foi perdendo eficácia em razão de outros aspectos da economia não funcionarem bem, como, por exemplo, o fato de o sistema industrial estar em declínio, fortemente impactado pela política cambial — a política de valorização torna a competitividade dos manufaturados muito baixa. Com a manutenção desse programa de investimentos (exonerações, estímulos ao consumo, etc.), que é um programa oneroso, sem crescimento ou com crescimento muito baixo, medíocre, foram sendo criados passivos fiscais crescentes. Então, é preciso ter clareza do seguinte: existe uma crise fiscal; não é uma invenção dos conservadores. O que é questionável nos conservadores é a maneira de combater a crise fiscal através do chamado ajuste fiscal.

O pesquisador não pode brigar com os fatos; o fato da crise fiscal, sim, existe, e tem origem a partir de 2012 até 2014, principalmente, por conta da manutenção de um conjunto de ações de governo, as quais foram chamadas de anticíclicas, mas que tinham todo tipo de facilidade: facilidades de desoneração, facilidade de incentivo ao consumo e outros gastos. Tudo isso entrou na capa do programa anticíclico, que no primeiro momento funcionou, mas em um segundo momento não funcionou.

Política anticíclica não funcionou

Em 2015, a crise se desencadeia ou emerge como um problema mais grave, porque o sistema financeiro corta a possibilidade de o Estado brasileiro transferir recursos para o Tesouro para realizar os financiamentos de infraestrutura do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. Então, essa é a grande reversão. Depois vem o pacote de medidas de corte de direitos sociais, vem o aumento tributário, na realidade, a revogação das desonerações, depois vem o tarifaço etc. Portanto, essa resposta do chamado ajuste fiscal é a resposta conservadora à crise fiscal, que não a resolve, diga-se de passagem.

IHU On-Line - Os problemas que surgiram no segundo governo Dilma não poderiam ter sido previstos, no sentido de aplicar outra política econômica a fim de evitar o ajuste fiscal de 70 bilhões?

Guilherme Delgado – No segundo governo Dilma havia, logo no início, alguns mantras de política econômica: o de que seria necessário optar pelo rebaixamento dos juros bancados pela política monetária, o de que a abertura do mercado para fazer gasto público reduziria o gasto financeiro e aí sobrariam recursos para poder fazer gasto público. Outra tese é que o programa de construções de infraestrutura ligadas à Copa do Mundo e às Olímpiadas daria um impacto muito forte em termos de demanda.

Então o sistema BNDES, financiado por essa forma que vimos antes, e a política de juros foram, até certo ponto, casados em certo momento, para tornarem-se sincronizados. Agora, isso é uma peça de uma engenharia que teria que ser mais complexa, porque se é feito um programa anticíclico com investimentos, queda de juros, tem de ver que o sistema industrial está sucateado, e todos os investimentos feitos vazam para o exterior. Cada dólar ou cada cruzeiro investido em infraestrutura, ou até o que é utilizado em gasto social, vaza para o exterior sob a forma de importações. Assim, o desequilíbrio externo desse programa anticíclico não estava resolvido, nem estava resolvido o problema das inovações e da competitividade industrial que estava em franco declínio.

Programa anticíclico = programa eleitoral

A única coisa que estava aparentemente resolvida era a continuidade das exportações de commodities, até que a partir de 2013 também houve um declínio mais forte no preço das três commodities mais visíveis, que são o petróleo, o minério de ferro e a soja. Sem ter o recurso das exportações manufatureiras já em declínio e com o programa anticíclico fortemente importador, o desequilíbrio externo junto com o desequilíbrio fiscal não foram, em um primeiro momento, equacionados por essa combinação de política de juros cadentes. A situação acelerou-se em 2014, porque esse ano foi o ano das benesses, em que tudo podia ser feito em nome de um programa anticíclico — que na verdade foi um programa eleitoral. Posteriormente, apareceu uma situação mais grave, em 2015, quando ficou mais visível o declínio econômico, a vulnerabilidade externa, a questão fiscal e, por outras razões, a crise do sistema da Petrobras, a questão da crise dos recursos hídricos, etc.

Então, a conjunção desses vários componentes, uns autônomos, outros derivados da política econômica anterior, provocou no governo uma reversão de orientação estratégica de praticamente 180 graus: vai de um programa anticíclico supostamente keynesiano, no sentido bem clássico da palavra, a um programa de ajuste totalmente neoclássico no sentido de economia doméstica, ou seja, cortar despesas é a receita dada. Só que isso não funciona assim na macroeconomia. Você corta, corta e corta, a receita cai também, até cai mais rápido do que a despesa, e aí não se encontra o fundo do poço.

IHU On-Line - Por que se escolhe esta opção?

Guilherme Delgado – Na realidade, a leitura do sistema conservador — se você olhar direitinho as entrevistas do ex-ministro Delfim Neto — é de que o ajuste não é uma opção; é um estado de necessidade. Ele diz que se o governo não fizer o ajuste fiscal, o mercado o fará. Quando ele está dizendo que “o mercado o fará”, está lembrando das crises cambiais de 1982 e de 1999 — em 1982 ele foi ministro do Planejamento do governo Figueiredo. Então, o mercado impõe, pelo ataque especulativo externo, um ajuste fiscal completamente abrupto e independente da política econômica.

Situação limite

Na conjuntura atual, qual é a arma que o sistema usa para isso? É o chamado grau de investimento das empresas e do país. Rebaixando o grau de investimento, cai o ingresso de recursos externos que financiam nosso déficit em conta corrente. Com isso é acelerada a saída de dólares e, portanto, perde-se completamente o controle da política econômica, que fica sob um ataque especulativo externo. Agora, essa é a situação limite, quando se está com reserva zero ou muito perto disso — o que não é o caso brasileiro atualmente — e quando se está totalmente refém, na mão do sistema de dependência externa. Logo, essa situação de estado de necessidade, como coloca o ex-ministro Delfim, se coloca como a espada de Dâmocles: ou você faz isso ou outro o fará pior ainda; e aí não tem opção.

Eu não concordo com essa análise, porque ela é fora da racionalidade, é uma linha da compulsoriedade de fazer algo que não tem saída. Acredito que há alternativa para o ajuste fiscal atual, até porque ele não dá um indicativo de solução. Se o cenário de solução é o crescimento da economia e não são equacionados os fatores causadores principais, principalmente a dependência externa — ou seja, o tamanho do déficit na conta corrente e a perda de competitividade do Brasil no comércio mundial e nas transações financeiras globais —, essa talvez seja a causa mais forte do desajuste macroeconômico e do desajuste fiscal.

Políticas de ajuste e falta de enfrentamento

O Brasil não enfrenta isso e fica permanentemente rolando políticas de ajuste, digamos, conjuntural, sem ataque às causas do subdesenvolvimento. Não vejo nem solução pelo programa anticíclico ao estilo do governo Dilma, nem um programa de ajuste fiscal ao estilo do segundo governo Dilma. E também não acho que ou é por aí ou estamos perdidos. O que o ex-ministro Delfim Neto está dizendo é que o ajuste programado precisa ser feito, mas existe um ajuste não programado. Ao optar por um ajuste de corte da despesa A, B, C, D, isso leva o sistema a encolher, supostamente para crescer em um segundo momento. Esse “supostamente” é crença, isso não tem fundamento. Qual é a crença que está por trás disso? A de que existe um espírito animal dos mercados que vai ser incentivado pelo programa de estabilização e vai fazer com que os empresários voltem a investir. Só que tem um lado não programado desse ajuste fiscal, que já está posto, que é o declínio dos preços externos das commodities brasileiras a partir de 2013, e a crise no sistema de petróleo, que está desestruturando toda uma cadeia de investimentos públicos e privados.

Então, esse lado não programado do ajuste, junto com o programado, produz mais recessão e aprofunda o fundo do poço. Portanto, é necessário ter uma equação para essas questões, porque se você soma cortes programados com cortes não programados, o somatório de duas negatividades é uma negatividade maior e, no fundo do poço, não se tem nenhum Demiurgo, um tipo Fênix, para animar o espírito animal; isso é tudo teologia idolátrica. Você vê que na realidade os conservadores vão de um raciocínio racional, instrumental, para uma ideologização do pensamento econômico. Agora, há um espírito animal no fundo do poço que vai ser desperto e que vai ser animado pelo sacrifício imposto no ajuste convencional, e para isso fazem cortes, aceitam o desemprego, os sacrifícios para os mais pobres, até animar o espírito animal da Fênix que vai erguer a economia. Mas isso não tem nenhum fundamento; isso é pura teologia idolátrica, isso não é economia.

Delfim é um ideólogo do sistema. Agora, ele é muito mais preparado do que os outros que estão aí, só que o receituário de salvação da pátria dele é um receituário da ordem conservadora. Ele até melhorou da época do Regime Militar para cá. Hoje ele ainda defende, pelo menos formalmente, política social, mas a perspectiva de fazer um programa de desenvolvimento com ideias de antecipação de inovações no campo ambiental, de inovações no campo de política social com desenvolvimento, não está muito na ordem do dia dele. Ele acha que é perfumaria.

IHU On-Line - Quais seriam as alternativas possíveis de serem adotadas para evitar o ajuste fiscal de 70 bilhões?

Guilherme Delgado – Do ponto de vista macroeconômico, há maneiras de socorrer o desajuste fiscal e financeiro que não sejam essas que estão sendo adotadas. Há um padrão de vazamento de recursos tributários pela baixa tributação, pela formação de uma dívida ativa gigantesca — dívida ativa é a dívida dos empresários financeiros e não financeiros para com o sistema público —, há formas de tributação muito mais progressivas da renda e da riqueza que não são nem sequer cogitadas e que têm um potencial de reequilibrar as contas públicas em outra direção, em uma direção de maior igualdade distributiva.

IHU On-Line – Como o que, por exemplo?

Guilherme Delgado – Como, por exemplo, uma reforma tributária de caráter progressivo na tributação. Então, não é que seja inevitável, irreversível, inelutável pegar o dinheiro dos pobres, órfãos e viúvas para depositar no altar da Fênix que irá reerguer o espírito animal. Sou obrigado a reconhecer que o quadro institucional posto, ou seja, os poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, midiático, burocrático, acadêmico, etc., absolutamente não comungam de uma tese de melhoria da igualdade tributária, da igualdade social pela via tributária como alternativa, tanto de ajuste fiscal como de ajuste ao desenvolvimento. Portanto, não é que seja uma tese inexistente; ela é uma tese utópica nas condições dadas da sociedade brasileira. Mas “meu Deus do céu”, se não buscarmos resolver as questões pelo campo da utopia, vamos perseguir mais do mesmo e não vamos sair do campo do impasse que está posto.

Em resumo, uma solução fiscal e de desenvolvimento para o quadro atual da sociedade brasileira passaria, necessariamente, por uma mudança significativa no sistema tributário na perspectiva de impedir os vazamentos de todas as formas de captura de recursos financeiros, empresariais, etc., fora da institucionalidade — paraísos fiscais, coisas desse tipo — e elevar tributação sobre lucros, rendimentos e riqueza, e até podemos diminuir a tributação em cima de salários e bens de consumo. Esse é o arranjo que tenho que reconhecer, podendo colocar no plano utópico, porque ele nem sequer é cogitado em quaisquer discussões públicas no Congresso, muito menos no Executivo, mas é uma alternativa.

IHU On-Line - Em termos práticos, o que é necessário para assegurar e retomar o reequilíbrio fiscal?

Guilherme Delgado – Para ter uma retomada do equilíbrio fiscal, primeiro, as fontes e formas de recursos que o setor público obtém no processo econômico não podem cair ou continuar caindo. Se a base de tributação sobre a qual incidem os tributos e os rendimentos que o Estado captura, seja sob a forma tributária, seja sob a forma de ação empresarial, cai — que é o que acontece na recessão —, não há fundo do poço garantido.

Então, a política macroeconômica de ajuste, que provoca queda de receita bruta ou líquida do setor público, não tem salvação, portanto todos os gastos sociais que estão sendo cortados e que pelo seu corte implicam nessa queda de receita pública, não resolvem a questão da crise fiscal. Essa é a principal crítica dos keynesianos ao ajuste do ministro Levy, cujo primeiro resultado é uma queda do Produto Interno Bruto – PIB de, no mínimo, 1,5% em 2015, provavelmente projetando isso também para 2016. Com isso, quanto mais tributos são aumentados e quanto mais gasto social é cortado, maior é o aprofundamento do piso, ou seja, o piso vai cedendo. Não é por esta via que vamos chegar ao fundo do poço e começar a subir.

Reequilíbrio fiscal

Do ponto de vista prático é necessário manter o gasto social ligado aos direitos básicos, ou seja, à base da pirâmide social. O que pode ser discutido? São aqueles privilégios que estão acima dos direitos sociais básicos, que podem ser retirados. Nós temos privilégios no nosso sistema tanto de política pública quanto de política financeira, social, macroeconômica, etc. Ou seja, cortar vários privilégios que não se justificam com essa situação do Estado: cortar subsídios no sistema financeiro, no sistema do agronegócio, por esta via é possível ter outro arranjo prático de medidas.

Agora, isso é viável no quadro político atual? Não é. Ou seja, o que é prático? É dizer essas coisas. Se for levantada uma agenda dessas no Congresso, não passa nada. Mas qual é a alternativa? É continuar mais do mesmo, mas não vejo salvação por aí. Portanto, só sinto pragmatismo em colocar o quadro da situação como o vejo e almejar que possamos avançar nesse campo.

IHU On-Line - Qual é o impacto social, econômico e desenvolvimentista do corte de 70 bilhões de reais anunciado na semana passada, já que há cortes no PAC, na Educação, no Programa Minha Casa, Minha Vida?

Guilherme Delgado – O corte no Seguro Desemprego afeta praticamente oito milhões de beneficiários; oito milhões de famílias não é pouca gente. O corte no sistema previdenciário é menos importante do ponto de vista quantitativo, mas qualitativamente é muito ruim, porque cria figuras de moralismo social para justificar um conservadorismo econômico. Por exemplo, agora querem estabelecer o “casamento sob suspeita” — que é o casamento de dois anos — para evitar uniões que são potenciais assaltadores da Previdência, referindo-se a mocinhas que estariam procurando velhinhos para se casar e receber os benefícios da previdência. Essa é a típica medida que não ajuda e que alimenta os preconceitos sociais, ou seja, não tem impacto econômico, mas tem um impacto de deslegitimação do sistema previdenciário, tendo em vista uma rodada de mudanças mais profundas ainda no Direito previdenciário.

Gargalo social

Assim, o que está posto aí é aquela ideia de que “onde passa um boi, passa uma boiada”. Passando esse boi do ajuste nos direitos sociais, restritivamente vem mais adiante uma boiada, que são cortes mais fortes no sistema de direitos sociais previdenciários, assistenciais, de saúde, de educação, como via de ajustamento macroeconômico à crise fiscal. É sempre essa análise racional, instrumental, omitindo o grande gargalo do sistema, que é a desigualdade da renda social, a desigualdade de tributação como elemento que compõe esta agenda.

Na realidade, pretendem aumentar a desigualdade para tornar os ricos mais ricos, para que, na perspectiva de que eles fiquem mais ricos, despertem para ação de investir e retomar o crescimento. É uma visão totalmente fora de escopo. Já estão tentando, na Europa, há oito anos essa via de ajuste fiscal, sem a menor perspectiva: Itália, Espanha, Grécia, Portugal têm tido crescimentos na faixa de 0% a 0,1%. Mesmo a Alemanha e a França — que são os capitães do processo — estão com crescimento baixíssimo há oito anos, ajustando-se a um paradigma internacional. Não vejo saída por aí.

Saídas simbólicas

Agora, temos saídas do ponto de vista simbólico. O sistema BNDES, que é um sistema de recurso público, pode ser usado para financiar inovações e projetos de desenvolvimento na área social, social-ambiental, de inovações que sejam compatíveis com crescimento, com a introdução de uma matriz energética nova, de uma produção alimentar mais saudável, integrando novos grupos que estão mais à margem do desenvolvimento. Eu sei que isso não é uma saída macroeconômica global, mas é uma saída simbólica para outro patamar, outro horizonte de desenvolvimento, com inclusão social e com sustentabilidade ambiental.

Existem formas concretas de fazer isso? Sim. Existem grupos sociais capazes de empreender essas inovações? Sim. Existe institucionalidade pública para fazer isso? Existe. Agora, não tem amadurecimento político da sociedade para arranjar essas ações de inovação no campo de um programa de recuperação econômica. Parece que recuperação econômica só vai ser feita por um grande empreendedor, capitalista, financista, e que a massa social será sempre dependente das benesses que o sistema cria e, no caso, não cria.

IHU On-Line - Que leitura faz da aprovação das MPs 665 e 664? Elas foram instituídas para reparar irregularidades na Previdência e no Seguro Desemprego ou como parte do ajuste fiscal?

Guilherme Delgado – As duas já foram aprovadas. Como tudo no mundo real, há elementos defensáveis e outros indefensáveis, portanto, não sou dualista nesse sentido. Na proposta da MP 664, que trata da Previdência, tem algumas coisas interessantes. Vou começar com o que acho defensável, embora alguns colegas achem que temos de bater em qualquer coisa. A ideia de uma pensão escalonada pela idade do beneficiário, por exemplo, se você é uma viúva ou viúvo muito jovem, você tem uma pensão por um tempo, mas se você é uma pessoa mais idosa, a pensão vai se ampliando até virar vitalícia. A pensão, em nosso sistema, é vitalícia o tempo inteiro. Esse é um tipo de ajuste defensável, até porque o motivo previdenciário da pensão é repor a renda da família na condição de morte do segurado. Mas sabemos que não é mais assim hoje, portanto a ideia de uma pensão escalonada é defensável.

Agora, completamente indefensável é a ideia de criar o casamento sob suspeita, que é casamento de dois anos, ou seja, até dois anos, se a viúva jovem tiver o marido falecido ou vice-versa, não poderá mais ter acesso ao benefício da pensão, porque está sob a suspeição de ser, como se diz na linguagem popular, uma “piriguete”. Trata-se de um absurdo, mas foi aprovado com o aplauso dos conservadores, que concordam com esse discurso de que o cofre da Previdência está sendo assaltado pelas viúvas pobres dos velhinhos do INSS. Houve alhos e bugalhos nas mudanças da Previdência, mas o propósito maior não era previdenciário, era de economizar recursos.

Fator previdenciário

A MP 664 que estabelece novas regras da aposentadoria, foi introduzido fora do esquema o fator 85/95 para substituir o fator previdenciário. Isso virou uma espécie de consenso na oposição para bater no governo e, na realidade, esse era um assunto que deveria estar no bojo de uma reestruturação do sistema previdenciário público, porque, se são realizadas mudanças pontuais para pegar carona ou fazer fofoca entre governo/oposição, o problema não está sendo resolvido.

Parece que este foi o arranjo que a oposição encontrou: criar, através da emenda do fator previdenciário, uma possibilidade de desafiar o governo a vetá-la, para eles derrubarem o veto e aparecerem como salvadores da pátria. Mas infelizmente isso não é algo que se possa tratar dessa forma. O Sistema Previdenciário público está precisando de um processo de recalibragem e reprovisionamento de recursos a médio prazo, porque está sendo assaltado por vários momentos de crise: pela exaustão do ciclo econômico, pelos elementos de aumento da longevidade, pela fuga de filiação previdenciária, principalmente da classe média, imposta em grande parte pelas injunções das grandes empresas que exigem, ao invés do contrato salarial, o contrato empresarial de pessoa jurídica.

São várias formas de fuga que precisam ser corrigidas, mas ignora-se tudo isso, ignora-se o fato de que houve um ciclo previdenciário exitoso nos últimos cinco anos. Mas a consequência nos próximos dez é de que há um “boom” de demanda por novos benefícios, e aí se faz uma futrica para incomodar oposição/governo, governo/oposição, que não resolve a questão do fator previdenciário.

A questão crucial do fator previdenciário é: tem ou não tem idade mínima para a aposentadoria? Na realidade a solução que foi dada até impõe uma idade mínima — 55 e 60. Eu não sei exatamente se esse fator 55/65 tem o impacto fiscal que estão dizendo. A tese básica é a seguinte: tempo de serviço não é motivo previdenciário para se conseguir a aposentadoria. Motivos previdenciários são os riscos incapacitantes ao trabalho; portanto, idade avançada, invalidez, viuvez, morte, doença, acidente, reclusão, esses são motivos previdenciários que justificam dar acesso. A ideia do tempo de serviço foi instituída lá nos primórdios, porque o tempo de serviço coincidia com o tempo de idade avançada, ou seja, o sujeito, ao chegar aos 30, 35 anos de serviço, já era um idoso na perspectiva previdenciária.

Só que isso mudou e, ao não se introduzir a idade mínima no sistema previdenciário do INSS, o governo FHC veio com a solução mais cruel, que é o fator previdenciário. Ao não se chegar a uma conclusão sobre a idade mínima própria para o sistema do INSS, esse assunto ficou rolando até hoje, e aí se resolve da forma como foi feito agora. Não sei qual é o desenrolar disso, mas não gostei do enredo, porque o enredo veio descontextualizado de uma verdadeira mudança estrutural do sistema previdenciário que precisa ser feito não para puni-lo, mas para recalibrá-lo na perspectiva de resolver os problemas de médio prazo.

IHU On-Line - Alguns sugerem que a redução da jornada de trabalho seria uma resposta possível para evitar o ajuste e suas implicações no emprego, ou oferecer alternativas à MP 665. Como vê essas propostas?

Guilherme Delgado – Como não pensei sobre essa questão, não tenho como dar uma resposta concreta. A grande questão que está posta no momento é como viabilizar as inovações econômicas que elevem a produtividade no conjunto do sistema e tornem viável o desenvolvimento, porque o desenvolvimento se faz elevando a produtividade, mas em um conceito de produtividade novo, que não é em estrito senso, piorando a igualdade social e piorando a sustentabilidade. Esse é conceito chave: desenvolvimento com inovações que permitam relançar o sistema econômico com igualdade e sustentabilidade.

A ideia da redução da jornada de trabalho é consistente com isso, porque na realidade o tempo de trabalho que hoje se requer é menor. Nesse caso, precisamos ver como isso se conjuga com o sistema empresarial que está em crise também, porque tempo de trabalho e massa salarial são custos para o sistema, e com um sistema que está com queda de rendimentos no presente, é necessário melhorar a produtividade para que ele produza e tenha capacidade distributiva. Portanto, acredito que essa proposta, no momento, precisaria estar casada com outras inovações que sejam mais coerentes com inovação e elevação da produtividade.

IHU On-Line – Neste ano já aconteceram algumas manifestações contrárias e pró-governo, inclusive manifestações contra a terceirização. Como entender que não há manifestações por conta do ajuste fiscal? A que atribui isso?

Guilherme Delgado – É que essas significações de caráter econômico para o social são de difícil decifração. As pessoas entenderam mais claramente a questão da terceirização e foram às ruas porque aquilo é de entendimento imediato, ou seja, com a aprovação da terceirização, significa que quem não é terceirizado pode ser demitido por justa causa e ser contratado com um salário mais baixo. Então isso acendeu rápido o sinal amarelo e até vermelho para vários setores. Agora, o significado de um programa de ajuste, que é apresentado como um programa de austeridade que irá cortar os malefícios do assistencialismo, é lido, na linguagem popular, como uma coisa boa, porque tem desperdício, tem corrupção, e agora veio um programa moralizador.

Discurso moralista

O discurso moralista é um discurso popular, embora um discurso sem muito fundamento, e que de certa forma paralisa. Se você pensar bem, o programa de ajuste fiscal entremeou, ao lado de argumentos econômicos, vários argumentos de moralismo, porque se entende que a política é símbolo de moralidade, roubo, corrupção. O governo vem com um discurso de austeridade, de corte dos desvios, distorções, e isso calha bem na percepção popular imediata. Mas é a tal história: sabemos que isso são manipulações de imaginário coletivo para impor uma agenda de desigualdade. A MP do Seguro Desemprego, a MP da Previdência, mesmo que tenham algo que possa ser defensável, no geral, estão cortando direitos sociais da base da pirâmide.

IHU On-Line - Para onde caminha o modelo neodesenvolvimentista inaugurado por Lula e continuado por Dilma? Ele não deu certo? Por quê?

Guilherme Delgado – O programa anticíclico é a tentativa de lançamento do neodesenvolvimentismo. Para mim, ele está cheio de furos, porque num primeiro momento conseguiu fazer algum crescimento, mas esse crescimento não é sustentável pelos elementos de dependência externa a que está associado. Ele até conseguiu melhorar alguns elementos de igualdade de rendimentos, mas essa igualdade não é sustentável porque não se apoia em um sistema fiscal que seja minimamente equilibrado. Quando se produz igualdade social sem bases fiscais de sustentação, simplesmente se chega a um teto, para e começa a retroceder.

Então, os elementos de igualdade e sustentabilidade fiscal e de dependência externa do neodesenvolvimento Lulista/Dilmista chegaram a um teto e declinam. Temos que rediscutir esse neodesenvolvimentismo e colocar em discussão os elementos de subdesenvolvimento que estão presentes. Esse subdesenvolvimento já foi muito bem estudado no Brasil. Ele não resolve o problema da igualdade nem o da dependência e chega a um limite e quebra a possibilidade de crescimento da economia.

Dessa forma, o momento é de repensar o desenvolvimento em outras bases e nunca de voltar ao neoliberalismo nem querer fazer mais do mesmo, que é reproduzir o governo Lula, Dilma, porque não é mais por aí.

IHU On-Line - Temos atores políticos para pensar essa proposta nova?

Guilherme Delgado – Olha, o quadro é desolador se pensarmos nos partidos institucionais. Agora, dentro do quadro político, temos algumas forças sociais que, por exemplo, podem ser uma espécie de uma frente popular nacional, uma espécie de interpartidário para pensar as saídas políticas fora do retrocesso institucional em curso na Câmara, no Congresso e até no Executivo.

Então, acredito que a ideia de frente multipartidária para pensar isso, o debate em alguns círculos acadêmicos, burocráticos, midiáticos, sociais tem feito alguma reflexão nesse campo. Agora, tudo é muito marginal, até a forma de difusão pública disso é muito marginal. Mas creio que é por aí que podemos encontrar alguma saída.

IHU On-Line - O senhor acredita que manifestações como as ocorridas em junho de 2013 podem propor alguma saída?

Guilherme Delgado – As manifestações de rua, principalmente as mobilizações, provocam uma espécie de um cataclismo e colocam o sistema sobre espreita. Agora, se não houver um debate ideológico consistente, manifestações de rua acabam e não trazem mudança nenhuma. É necessário ter um debate político mais consistente sobre o rumo do Brasil e rumos que possam sair das dicotomias clássicas que o sistema vem visitando entre neoliberalismo e neodesenvolvimentismo nos últimos 20 anos.

Por Patrícia Fachin

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Ajuste fiscal é teologia idolátrica, não é economia. Entrevista especial com Guilherme Delgado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU