Pesquisador estuda os movimentos evangélicos antirracistas, feministas e LGBTQIA+ que ganharam visibilidade se opondo à política cada vez mais reacionária da bancada neopentecostal no Congresso.
A reportagem é de Sebastião Moura, publicada por Jornal da USP e reproduzida por Rede Brasil Atual, 12-09-2021.
“Como vive a mãe evangélica que tem um filho gay? Ou o pastor cujo filho é morto pela polícia? O trabalhador rural evangélico busca na Bíblia inspiração para resistir ao assédio dos grileiros? Como se referir à jovem neopentecostal que trabalha em um pequeno comércio, mas que frequenta o sarau organizado por aquele coletivo feminista? Sim, essas pessoas existem. Porque não são pessoas unidimensionais. O evangélico não é só evangélico. E sua pertença religiosa não está separada das outras”, aponta o cientista social Vítor Queiroz de Medeiros. Em seu mestrado em sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, ele pesquisa grupos evangélicos progressistas que atuam na defesa da comunidade LGBTQIA+, na luta antirracista, feminista e dos direitos humanos.
O foco da pesquisa de Vítor são grupos como o Discipulado Justiça e Reconciliação, o Movimento Negro Evangélico e a Rede de Mulheres Negras Evangélicas. Mas ele estuda, principalmente, o ativismo negro evangélico brasileiro. O trabalho integra o projeto temático Religião, Direito e Secularismo: a Reconfiguração do Repertório Cívico no Brasil Contemporâneo, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), que articula diversos pesquisadores independentes estudando temas envolvendo religião e espaço público.
O pesquisador constata que, com a ascensão do bolsonarismo, grupos evangélicos conservadores radicalizaram e se aliançaram à extrema direita. Além de sua tradicional oposição aos direitos da população LGBTQIA+, se juntaram à agenda do governo federal de censura, “anticomunismo” e ataques à democracia. O quadro estimulou uma reação de grupos de evangélicos progressistas, que estavam apagados nos últimos anos, mas ganharam mais visibilidade pública ao declarar que esses setores reacionários não representam todos os evangélicos e que existem evangélicos LGBT, feministas, comprometidos com a luta antirracista e a defesa dos direitos humanos.
Vítor Medeiros viu no tema uma confluência de diversos fenômenos recentes no Brasil: a crescente visibilidade da discussão sobre racismo, a expansão demográfica dos evangélicos e o aumento das taxas de pessoas autodeclaradas pretas ou pardas. Ele desenvolve seu estudo a partir de análise documental (notas, livros, redes sociais, artigos de imprensa desses grupos pesquisados), entrevistas com ativistas e lideranças e observação de encontros, cultos e passeatas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco.
O cientista social conta ao Jornal da USP que a atuação dos evangélicos na política brasileira é antiga e nunca foi homogênea. No final do século 19, havia tanto grupos protestantes apoiando pautas conservadoras como alguns defendendo causas liberais como a separação Igreja-Estado, a República e a abolição da escravatura. São bem documentadas também as reuniões da Confederação Evangélica Brasileira, organização que chegou a apoiar publicamente as reformas de base do governo João Goulart, em 1963.
Durante o período da ditadura militar (1964-1985), a maior parte das cúpulas das igrejas apoiou o golpe, inclusive entregando para o regime irmãos de religiões dissidentes. Mas também houve proeminentes figuras evangélicas defensoras dos direitos humanos e perseguidas pelos militares, como Jaime Wright, Paulo Stuart Wright e Anivaldo Padilha, pai do deputado federal Alexandre Padilha (PT) e colaborador da RBA.
De acordo com Medeiros, a conjuntura atual do país começa a se construir na Assembleia Constituinte de 1988, na qual já havia um grupo de deputados que viria a se tornar o que é conhecido hoje como bancada evangélica – que atualmente compõe quase um quinto do Congresso Nacional. Vítor explica que é a partir dessa época que o número de evangélicos no país começou a crescer rapidamente (entre 1980 e 2020, os evangélicos foram de 6,6% a 31% da população brasileira, segundo o IBGE). Também neste período, a direita conservadora evangélica ampliou sua presença na mídia. A compra da Record pelo bispo Edir Macedo, em 1989, é o maior exemplo dessa ascensão.
O pesquisador conta que as movimentações dos evangélicos progressistas que se organizam hoje no Brasil ganham visibilidade ao se colocar contra essa hegemonia conservadora, que tem intensificado cada vez mais seus discursos de ódio nesse contexto de guinada à direita que se estabeleceu na política brasileira nos últimos anos. Mesmo minoritários, esse grupos buscam participar do debate público declarando que os reacionários que protagonizam a participação política evangélica não representam todos os membros da religião.
“O engajamento dos ativistas está muito baseado em processos de autorresponsabilização política. Por conta do protagonismo da direita evangélica, os evangélicos progressistas se sentem responsabilizados a desautorizá-la e até a reparar algumas das ações dela. O exemplo mais claro é a solidariedade de lideranças e coletivos negros evangélicos aos cultos afro, alvos frequentes de intolerância religiosa cometida por evangélicos fundamentalistas. Essa solidariedade se tornou uma das preocupações centrais na agenda do ativismo negro evangélico”, disse ele.
Medeiros chama atenção especial, dentre esses movimentos evangélicos alinhados a pautas identitárias, para os grupos evangélicos negros, pois eles já têm uma história considerável no Brasil. Desde os anos 70, com inspirações que incluem figuras religiosas da luta antirracista estadunidense como o pastor Martin Luther King, os movimentos negros já se organizam com graus variáveis de força.
Atualmente, a atuação desses grupos se baseia em dois conjuntos de ações. O primeiro são rodas de conversas, seminários, fóruns e grupos de estudos bíblicos para pessoas negras evangélicas incomodadas com o racismo, mas que não encontram espaço para discutir o tema em suas igrejas. O outro é a organização de protestos, atos, declarações na imprensa e outras manifestações públicas contra o genocídio da população negra.
“Nunca antes o racismo foi tão debatido e problematizado na sociedade brasileira, e nunca antes houve tantas pessoas autoidentificadas, ao mesmo tempo, como pretas/pardas e evangélicas no Brasil”, explica.
“Eles tentam ‘autenticar’ o próprio ativismo associando sua identidade religiosa a marcadores raciais. Com base na ‘teologia negra’, eles argumentam que a tradição judaico-cristã é de origem africana, por exemplo. Além disso, promovem ícones negros evangélicos como Martin Luther King Jr., Nelson Mandela, e articulam valores e elementos estéticos considerados ‘negros’ nas suas liturgias de culto e nas suas práticas religiosas em geral”, explica o pesquisador dos evangélicos progressistas ao Jornal da USP.
Segundo Medeiros, esses coletivos reúnem pessoas de diversas congregações diferentes, até porque elas têm muita dificuldade de atuar e participar de diálogos dentro das igrejas, devido ao conservadorismo das elites dirigentes e do momento extremamente polarizado pelo qual o Brasil passa hoje. Eles não tomam parte em algumas das ações sociais que são importantes para a influência das igrejas evangélicas, como o assistencialismo e o apoio a dependentes químicos e presidiários, trata-se um ativismo mais diretamente político.
Mesmo assim, a influência desses ativistas é substancial: “O Movimento Negro Evangélico, por exemplo, é uma das organizações que compõem a Coalizão Negra por Direitos, principal frente antirracista do Brasil hoje”, afirma o pesquisador. O pesquisador descreve a emergência desse segmento como fruto de vários processos a médio e longo prazo que têm acontecido no País: “Nunca antes o racismo foi tão debatido e problematizado na sociedade brasileira, e nunca antes houve tantas pessoas autoidentificadas, ao mesmo tempo, como pretas/pardas e evangélicas no Brasil”, diz.
Algo já registrado na literatura e também observado por Medeiros em campo e em entrevistas é o preconceito do movimento negro tradicional com relação aos evangélicos negros, sempre identificados com a “religião do opressor” Isso dificulta uma colaboração mais estreita. “É como se o movimento negro evangélico estivesse numa eterna busca por legitimidade.”
Medeiros critica a postura com a qual essa população é tratada pela esquerda tradicional, cujo olhar, muitas vezes, é carregado de preconceito e preocupado unicamente em conseguir esses votos sem fazer o esforço de compreender as complexidades e contradições envolvidas na vivência de religião e ideologia política dessas pessoas.
Ele conta que pesquisas na ciência política já documentaram que, não raro, muitos evangélicos votavam no PT para o Executivo e em candidatos do centrão para o Legislativo. Isso porque estavam incluídos em programas sociais ligados à esquerda, mas escolhiam deputados de acordo com as orientações do pastor da igreja que frequentavam. Mais recentemente, apesar da forte adesão do pastorado evangélico ao bolsonarismo, pesquisas de opinião mostram que Lula lidera as intenções de voto nesse segmento.
O pesquisador ressalta que o comportamento eleitoral não diz tudo sobre o que uma pessoa pensa e faz. Em um texto publicado na Revista Rosa, ele reforça a necessidade de se entender que não dá para reduzir alguém à sua religião e classificá-lo como “progressista” ou “fascista”, aliado ou inimigo: “A disputa de valores não passa por fazer slogan com frase bíblica para ganhar voto. Ela passa por respeitar essas pessoas, estabelecer um diálogo franco e disputar valores abertamente”, finaliza.