12 Fevereiro 2021
"A exortação “Querida Amazônia” em apenas um ano de existência já nos mostrou o quanto é atual e necessária, para nos guiar como Igreja e como cristãos, em tempos de tantas ameaças ao mundo em que vivemos e à vida em geral, com particular atenção a determinadas áreas do planeta, de cujo cuidado depende a inteira possibilidade de sobrevivência da espécie humana e, com ela, de toda a criação divina", escreve Adelson Araújo dos Santos, SJ, nascido em Manaus, AM, Doutor em Teologia Espiritual e Professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma.
Na comemoração do 1º ano de aniversário de lançamento da exortação apostólica pós-sinodal “Querida Amazônia”, escrita pelo Papa Francisco e apresentada oficialmente ao público no dia 12 de fevereiro de 2020, podemos nos perguntar de que modo é possível avaliar o impacto deste documento no interior da Igreja Católica e fora dela, na sociedade em geral.
Para responder a esta pergunta, temos que recordar brevemente do que tratou o Santo Padre em sua exortação, na qual estão presentes as suas conclusões pessoais de tudo o que foi discutido e proposto no sínodo especial sobre a Amazônia, por ele mesmo convocado no dia 15 de outubro de 2017 e realizado em Roma de 06 e a 27 de outubro de 2019, sob o título: “Amazônia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral”.
Basicamente, o texto de “Querida Amazônia” nos revela quatro grandes sonhos do Papa em relação àquela vasta região e em relação à Igreja, chamada a ser presença evangelizadora entre os povos amazônicos. Cabe-nos perguntar, portanto, se um ano depois de revelados, estes sonhos se mostram verdadeiramente inspiradores para que possamos ver, julgar e agir corretamente em relação à Amazônia, apontando para o que se precisa mudar e, ao mesmo tempo, confirmando as novas iniciativas e práticas geradas a partir do sínodo. Em resumo, após um ano da sua publicação podemos nos perguntar o que faz desta exortação um indispensável ponto de referência para a construção de um planeta viável e de uma Igreja verdadeiramente evangélica, a partir da Amazônia.
Ora, do ponto de vista teológico e espiritual, cremos que se examinarmos cada um dos sonhos compartilhados por Francisco em “Querida Amazônia”, iremos facilmente constatar o caráter profético dos mesmos, bem como o quanto foram eles teologicamente inspirados e bem fundamentados, não obstante alguns insistam em negar isso. De fato, por desinformação ou explícita intenção de atacar o Papa por meio da difusão de notícias falsas – fake news –, tem se usado as redes sociais para propagar que Francisco se preocupa mais com árvores que com vidas humanas, que seu discurso é vazio de Deus e de espiritualidade, pois se concentra só no ecológico, que esquece outras agressões à vida como a do aborto e só recorda a agressão à Amazônia, etc. Ora, antes de mais nada, está claro que tais acusações carecem de qualquer fundamentação teológica e histórica, porquanto está mais do que comprovado que o Papa atual não é o primeiro a se manifestar contra as agressões cometidas, seja ao meio ambiente em geral, seja em relação aos povos e florestas amazônicos.
Basta lembrar que já São João Paulo II, quando papa, em visita ao Brasil, declarava com palavras contundentes o compromisso da Igreja para com a luta desses povos e denunciava a violência sofrida pelas populações indígenas: “A história de vossos povos conheceu, e conhece ainda, sombras dolorosas, sinais de morte, muitos sofrimentos e conflitos marcados pelo mal [...] A Igreja, queridos irmãos índios, tem estado e continuará a estar sempre a seu lado, para defender a dignidade de seres humanos, para defender o direito a ter uma vida própria e tranquila, no respeito aos valores positivos das suas tradições, costumes e culturas [...] Tenho recebido, com grande dor, as notícias que me chegam sobre violações desses direitos, motivadas pela ganância e por interesses escusos, com graves repercussões sobre a vida, a saúde e a sobrevivência de alguns grupos indígenas” [1] . Por outro lado, o papa Bento XVI, ao visitar o Brasil em 2007, citando o hino nacional brasileiro, conclamava: “’Nossos bosques têm mais vida’: não deixeis que se apague esta chama de esperança que o vosso Hino Nacional põe em vossos lábios. A devastação ambiental da Amazônia e as ameaças à dignidade humana de suas populações requerem um maior compromisso nos mais diversos espaços de ação que a sociedade vem solicitando” [2]. Portanto, é claríssima a falta de fundamentação das críticas que se fazem às palavras do Papa Francisco em sua exortação “Querida Amazônia”, porquanto as mesmas seguem a mesma linha já assumida antes pelos seus antecessores.
Além disso, do ponto de vista teológico, somente a ignorância ou má fé intelectual pode fazer com que alguém não encontre na exortação de Francisco a sua preocupação em falar a partir da Palavra de Deus, deixando claro que a mensagem de “Querida Amazônia” não parte de um puro ecologismo, mas se pauta na pessoa de Cristo, que “redimiu o ser humano inteiro e deseja recompor em cada um a sua capacidade de se relacionar com os outros” [3]. Com palavras profundamente teológicas e espirituais, o Papa ensina que do Coração de Cristo brota a caridade divina e que está no centro da mensagem do Evangelho a “busca da justiça que é inseparavelmente um canto de fraternidade e solidariedade, um estímulo à cultura do encontro” [4].
Contudo, o Papa é muito consciente de que nem todos dentro da Igreja estiveram e estão abertos a este ensinamento, que aliás não vem dele, mas de Cristo. De fato, na sua exortação “Querida Amazônia” ele reconhece que na história da Igreja muitas vezes “o joio se misturou com o trigo”, pois nem sempre os que deveriam levar a Boa Nova aos povos, isto, todos nós batizados, “estiveram do lado dos oprimidos” [5], deixando-se corromper pelo poder. Com muita humildade e coragem, Francisco reconhece o fato de que mesmo dentro da Igreja, alguns “tenham feito parte das redes de corrupção, por vezes chegando ao ponto de aceitar manter silêncio em troca de ajudas econômicas” [6]. Retomando o que já dissera na sua outra exortação Evangelii Gaudium, o Papa reitera que não podemos compactuar com projetos que visam criar apenas “uma paz efêmera para uma minoria feliz”, mas é necessário conservar uma voz profética, a qual “como cristãos, somos chamados a fazê-la ouvir” [7]. Por fim, citando diversas fontes bíblicas, o Santo Padre reafirma que é preciso que nós, cristãos, continuemos a nos indignar perante a injustiça e o mal, “como se indignou Moisés (cf. Ex 11, 8), como Se indignava Jesus (cf. Mc 3, 5), como Se indigna Deus perante a injustiça (cf. Am 2, 4-8; 5, 7-12; Sal 106/105, 40)” [8].
Enfim, podemos dizer que, exceto os que dolosamente distorcem as palavras do Papa e buscam confundir os católicos que não checam a veracidade das “notícias” que recebem em seus grupos de “whatsapp” e redes sociais como “Facebook”, a exortação “Querida Amazônia” em apenas um ano de existência já nos mostrou o quanto é atual e necessária, para nos guiar como Igreja e como cristãos, em tempos de tantas ameaças ao mundo em que vivemos e à vida em geral, com particular atenção a determinadas áreas do planeta, de cujo cuidado depende a inteira possibilidade de sobrevivência da espécie humana e, com ela, de toda a criação divina.
Se tomarmos, por exemplo, o sonho social do Papa descrito em “Querida Amazônia”, encontraremos ali uma série de denúncias e recomendações, cujos os fatos recentemente ocorridos em vários países da Pan-Amazônia só confirmam o quanto as palavras de Francisco são verdadeiras e proféticas. Pois, ele não inventa nem aumenta nada quando denuncia que certas “autoridades deixam caminho livre a madeireiros, a projetos minerários ou petrolíferos e outras atividades que devastam as florestas e contaminam o ambiente”, transformando suas políticas econômicas em “um instrumento que mata” [9]. O caso do Brasil é, talvez, o mais grave, bastando citar que no mesmo período (fevereiro de 2020) em que se publicava a exortação papal, o governo brasileiro enviava ao congresso nacional um projeto de lei (PL191/2020) que não só libera a mineração e o garimpo em terras indígenas, retirando o poder de veto dos povos originários, como prevê a Constituição Federal do Brasil, mas também autoriza nas terras indígenas o plantio de sementes transgênicas, a construção de hidrelétricas, a pecuária, projetos de petróleo, de gás e também o turismo. Isto, segundo os especialistas, configura um verdadeiro genocídio e ecocídio institucionalizado [10].
Além de ser um texto profundamente atual em seu profetismo, Francisco também nos convoca a, sem perder a nossa identidade cristã, valorizar o diálogo cultural e as sabedorias dos povos ancestrais amazônicos. Em seu sonho cultural, ele enaltece o valor da cultura e identidade amazônica como fonte de inspiração artística, literária, musical, cultural, recordando que nos últimos anos “as várias expressões artísticas, particularmente a poesia, deixaram-se inspirar pela água, a floresta, a vida que se agita, bem como pela diversidade cultural e os desafios ecológicos e sociais” [11]. O papa incentiva os habitantes da Amazônia a valorizar a sua própria cultura e origem, ensinando que nelas “Deus manifesta-Se, reflete algo da sua beleza inesgotável através dum território e das suas caraterísticas, pelo que os diferentes grupos, numa síntese vital com o ambiente circundante, desenvolvem uma forma peculiar de sabedoria” [12].
Como dissemos antes, um dos aspectos mais criticados do pontificado de Francisco tem sido o seu interesse pelas questões ecológicas. Obviamente, tratam-se de críticas que não se sustentam teologicamente, pois parecem desconhecer que bem antes do atual papa, o brilhante teólogo e papa Bento XVI já havia chamado a atenção da Igreja e do mundo para “a urgência do respeito devido à natureza, recuperando e valorizando, na vida de todos os dias, uma relação correta com o meio ambiente” e acrescentando que “a Igreja considera as questões ligadas ao meio ambiente e à sua salvaguarda intimamente vinculadas ao tema do desenvolvimento humano integral” [13], sendo portanto totalmente falso dizer que defender o meio ambiente significa se preocupar menos com a vida humana.
Seguindo este mesmo raciocínio, em sua exortação pós sinodal o Papa Francisco nos recorda que “o Senhor, que primeiro cuida de nós, ensina-nos a cuidar dos nossos irmãos e irmãs e do ambiente que Ele nos dá como presente a cada dia. Esta é a primeira ecologia que precisamos” [14]. São palavras de uma inegável profundidade teológico-espiritual que nos levam a concluir que “o cuidado das pessoas e o cuidado dos ecossistemas são inseparáveis” [15], sendo a Amazônia um lugar especialmente favorável a se viver esta nova forma de espiritualidade ecológica integral, se quisermos assim chamar. Passado um ano de quando escreveu a sua exortação, vemos que a situação atual da região panamazônica nos leva a confirmar a importância deste sonho ecológico de Francisco, o que supõe um verdadeiro processo de conversão ecológica, pois que “não haverá uma ecologia sã e sustentável, capaz de transformar seja o que for, se não mudarem as pessoas” [16].
Por fim, mas não menos importante, em “Querida Amazônia” o Papa Francisco convida a toda a Igreja a caminhar com os povos da Amazônia, continuando o seu trabalho missionário de forma cada vez mais encarnada, inculturada e em sinodalidade. Quanto a isso, a recém criada Conferência Eclesial da Amazônia, a primeira do gênero dentro da estrutura da Igreja Católica, é sem dúvida um sinal concreto de que o caminho sinodal continua a nos inspirar e a nos interpelar, fazendo brotar de forma harmoniosa, criativa e frutuosa dentro do nosso coração e das nossas comunidades os apelos e propostas gerados pelo sínodo sobre a Amazônia. É isso que nos pede e espera de nós o autor de “Querida Amazônia”, se de fato queremos ser anunciadores do querigma e do amor fraterno, que “constituem a grande síntese de todo o conteúdo do Evangelho, que não se pode deixar de propor na Amazônia” [17].
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Um ano de Querida Amazônia: São atuais os sonhos de Francisco? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU