O filósofo e teólogo tcheco Tomáš Halík publicou o artigo abaixo na “Herder Korrespondenz”. É sua convicção que a Igreja de hoje deve encontrar o caminho para a verdadeira catolicidade. O catolicismo deve deixar de ser uma contracultura.
“Em vez de fazer proselitismo, deveríamos cultivar uma cultura de acompanhamento e diálogo, na qual poder compreender não apenas a fé dos outros, mas também a nossa de uma maneira nova. A religião de amanhã deveria ser uma re-legere, uma releitura, uma nova leitura, um novo repensamento, uma nova hermenêutica”, avalia.
O artigo é reproduzido por Settimana News, 08-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que significa "católico" hoje? Para responder, devemos primeiro nos perguntar: o que queremos dizer com "hoje"? “Hoje”, isto é, o tempo do cristianismo dividido. A divisão não diz respeito principalmente à separação entre as Igrejas, mas dentro delas. Hoje, ou seja, um tempo em que a credibilidade da Igreja está passando por uma das maiores crises.
Os escândalos de abuso sexual, psicológico e eclesiástico recentemente descobertos desempenham em nosso tempo um papel semelhante ao das indulgências que provocaram a Reforma. O que inicialmente parecia um fenômeno marginal mostra hoje - como então - problemas muito mais profundos, ou seja, as disfunções do sistema: as relações entre Igreja e poder, clero e leigos e muitos outros. A situação da Igreja Católica hoje é muito semelhante àquela de pouco antes da Reforma.
“Hoje”, isto é, num momento em que a Igreja se depara com uma grande tarefa: a passagem da forma atual à futura, rumo ao caminho sinodal. O caminho sinodal não é apenas um caminho rumo à reforma, mas um caminho de reforma. Aqui também o caminho coincide com o destino. Os cristãos de hoje, como no início da sua história, devem ser "pessoas em caminho".
Jesus disse de si mesmo: eu sou o caminho. A existência cristã é um seguimento, isto é, um movimento. Pelos tortuosos caminhos do mundo de hoje procuramos os passos de Jesus, na polifonia do nosso tempo a voz de Jesus. Precisamos da arte do discernimento espiritual.
Todos nós cristãos acreditamos em uma Igreja una, santa, apostólica e universal. O que significa "católico"? É uma das notas características da Igreja. Uma comunidade de crentes que deixasse de tender para a catolicidade, para a abertura universal, perderia sua identidade e autenticidade cristãs.
Entre unidade, santidade, apostolicidade e catolicidade há uma conexão interna e uma interpenetração, uma pericorese. O enfraquecimento de um desses quatro pilares da identidade da Igreja significa o enfraquecimento dos demais.
Unidade: unidade orgânica na diversidade. Santidade: consagração a Deus e pertença a Deus Apostolicidade: fidelidade à missão e à Tradição apostólica. E Catolicidade: universalidade, visão de conjunto, abertura: essas são as principais características da Igreja.
São carismas que a Igreja recebeu do Senhor da história e da Igreja como dom e tarefa para o seu caminho na história. São carismas, sementes de graça que, para crescer, precisam de um solo favorável. São - juntamente com outros carismas importantes - sementes da vida de Deus; neles e por meio deles atua e cresce a dynamis de Deus, o movimento do Espírito vivificante de Deus, que molda, une, guia, cura e transforma a comunidade dos crentes.
Esse movimento de crescimento e amadurecimento ocorre na história e visa a culminação escatológica do processo histórico. Somente nesse ponto ômega, no eschaton, aparecerão em toda a sua plenitude a unidade, a santidade, a apostolicidade e catolicidade da Igreja.
No cerne da história, a Igreja é communio viatorum, um povo em caminho, que ainda não chegou ao seu destino. O desenvolvimento da Igreja não é uma via de mão única, a teologia cristã da história difere das escatologias intramundanas.
Nossa experiência em relação àqueles que prometeram o paraíso na terra e fizeram da terra um inferno nos obriga a manter uma distância crítica em relação às ideologias e às utopias políticas. É tarefa profética da Igreja relativizar toda forma de idolatria, de relativizar a absolutização do que é relativo.
Para tomar as distâncias da escatologia intramundana das ideologias seculares e das promessas do paraíso na terra, precisamos de uma certa "escatologia negativa", análoga à "teologia negativa". Compreender e descrever plenamente o "futuro absoluto", a meta escatológica da história está além de nossas capacidades.
Portanto, nenhuma situação da sociedade e do Estado, nenhuma forma de Igreja, nenhuma forma de nosso conhecimento teológico pode ser considerada perfeita e definitiva, como o fim da história; em nenhum momento da nossa jornada podemos dizer: Pare, você é tão lindo! A Igreja tem a obrigação de exercer esse serviço profético de "dessacralização" não apenas em relação às ideologias seculares como o comunismo ou o nacionalismo, mas também contra as tentativas de ideologizar o cristianismo e assim desfigurar a sua vida.
Precisamos de uma "distinção escatológica": uma distinção constante entre a ecclesia militans, a Igreja aqui na terra, e a ecclesia triunfal, a Igreja glorificada no céu. Se a ecclesia militans terrestre começa a se considerar como ecclesia triunfal, como a forma perfeita da Igreja, comete o pecado do triunfalismo.
Se a ecclesia militans, a Igreja militante, deixa de lutar contra a tentação do triunfalismo, torna-se um instrumento da religião militante; luta contra os outros e os não-conformistas presentes em suas fileiras. Algo semelhante aconteceu no Islã com o conceito de jihad. Uma das manifestações do triunfalismo é o clericalismo: aqueles que estavam destinados ao humilde serviço da comunidade tornam-se uma "classe dominante", um governo sagrado (hierarquia) que reivindica o monopólio da verdade.
Especialmente nos nossos dias nos encontramos diante das consequências do abuso de poder e de autoridade na Igreja. O Papa Francisco corretamente diagnosticou o clericalismo como uma das principais causas dos crimes de abuso, um clima de relações doentias em que coisas desse tipo eram possíveis. Nossa eclesiologia, a autocompreensão da Igreja, precisa do princípio da "kenosis", do dom de si; o caminho sinodal deve ser um caminho de humildade curadora.
Como já foi dito, o caminho da Igreja através da história não é uma via de mão única, mas um drama de luta contínua entre graça e pecado. O drama da Páscoa continua na história da Igreja. Compartilhamos não apenas a luz da manhã de Páscoa, mas também as trevas do Getsêmani e do Calvário. Na vida da Igreja, nas suas crises e sofrimentos, nas suas feridas, continua também o sofrimento de Cristo, é uma passio contínua. Não só no caminho espiritual de cada crente, mas também na história da Igreja há sempre "noites escuras de fé".
Nas noites escuras coletivas da história do mundo e da Igreja, precisamos da paciência da esperança para vencer a tentação do desespero, esta "doença que conduz à morte". Muitas coisas - incluindo muitas formas de Igreja e formas imaturas de fé - devem morrer. A ressurreição não é um retorno ao que era antes, mas uma mudança radical. O Cristo ressuscitado se aproxima de seus amigos como um peregrino desconhecido.
Não só os sacramentos e os sermões da Igreja, mas também e sobretudo as expressões quotidianas da fé, esperança e caridade dos fiéis constituem o espaço da ressurreição em que se realiza a resurrectio contínua. Do mesmo modo são lugares de teofania: Deus está presente no mundo na fé, na esperança e no amor dos crentes. Eles também exprimem o caráter sacramental da Igreja, também eles fazem parte da liturgia em sentido mais amplo, também eles são o lugar onde Cristo ressuscitado vive e atua.
O que significa a catolicidade da Igreja? É a sua abertura à vinda do Cristo ressuscitado, desconhecido, surpreendente. O Cristo ressuscitado é semper maior, sempre maior do que imaginamos até agora. Entre pelas portas fechadas dos nossos medos, das nossas ideias estreitas, das definições dogmáticas, dos conceitos e das categorias.
Catolicismo hoje significa universalidade e ecumenismo em um sentido mais amplo e profundo. O convite do Concílio Vaticano II ao diálogo ecumênico com as outras Igrejas cristãs, com os crentes de outras religiões e com os defensores do humanismo ateu foi o primeiro passo neste caminho. Contribuiu para libertar a catolicidade da Igreja do beco sem saída do "catolicismo", do particularismo confessional, da redução a uma das "visões de mundo".
Para esta deformação da Igreja contribuiu a sua estratégia defensiva e apologética após os dois grandes cismas, a estratégia de defesa contra o protestantismo e depois a defesa contra a cultura moderna na sequência da cisão entre a teologia neoescolástica e o pensamento científico, filosófico e político do XIX século.
No caminho sinodal rumo a uma catolicidade credível, devemos libertar-nos de "um catolicismo" entendido como uma contracultura convulsiva e um instrumento de guerras culturais. Além disso, a Igreja deve resistir constantemente à tentação do narcisismo coletivo, do egoísmo e da autorreferencialidade.
Deveríamos estender o princípio da sinodalidade, o caminho da busca empreendido junto às nossas relações com as pessoas de outras religiões e com quem é sem credo religioso. Para o cristianismo, essa autotranscendência não é uma perda de identidade, mas o cumprimento do mistério central do cristianismo, da mudança pascal.
Em vez de fazer proselitismo, deveríamos cultivar uma cultura de acompanhamento e diálogo, na qual poder compreender não apenas a fé dos outros, mas também a nossa de uma maneira nova. A religião de amanhã deveria ser uma re-legere, uma releitura, uma nova leitura, um novo repensamento, uma nova hermenêutica.
Catolicismo ecumênico hoje significa a coragem da autotranscendência da Igreja, a autotranscendência do cristianismo. Esta autotranscendência - superação das próprias fronteiras institucionais e mentais em relação aos outros - não é uma perda da identidade do cristianismo, mas sim uma implementação do mistério central do cristianismo, a mudança pascal.
Na véspera de sua eleição como pontífice, o cardeal Jorge Mario Bergoglio citou as palavras de Jesus: "Estou à porta e bato"; mas acrescentou que hoje Jesus bate de dentro da Igreja e quer sair, em especial em direção a todos os pobres, os marginalizados e os feridos do nosso mundo, e nós devemos segui-lo. Mas devemos também nos aproximar de todos aqueles que estão em uma busca espiritual, não como possuidores de toda a verdade, mas como aqueles que desejam caminhar junto com eles no respeito mútuo.
Um passo importante no caminho da catolicidade ecumênica foi a decisão do Concílio Vaticano II de utilizar o conceito de “subsistit in” para indicar a relação entre a Igreja de Cristo em sua plenitude escatológica e a Igreja Católica em seu caminho na história. Segundo o Cardeal Walter Kasper, isso implica duas garantias importantes.
Primeiro: nesta Igreja Católica experimentável, existente aqui e agora, subsiste a Igreja de Cristo, aquela misteriosa Esposa de Cristo, cuja glória plena e beleza só se revelarão no horizonte escatológico da eternidade.
Segundo: que esta Igreja Católica Romana não "ocupa todo o espaço" da Igreja de Cristo, de forma que há um lugar legítimo para as outras Igrejas cristãs e para os carismas que Deus gratuitamente doa para além dos confins visíveis da Igreja.
Da mesma forma, talvez se poderia dizer que a verdade, que é o próprio Deus, existe na doutrina do Magistério, sem contudo esgotar em nenhum momento da história a plenitude do mistério de Deus. A afirmação de que a doutrina oficial da Igreja apresenta a revelação de Deus de modo autêntico e em medida suficiente para a salvação e que nenhuma outra revelação é para ser esperada, certamente não significa que a Igreja pronuncie uma proibição de uma ação ulterior do Espírito Santo.
Ainda há espaço para a livre efusão do Espírito que gradualmente guia os discípulos de Cristo à plenitude da verdade até o fim da história. A questão, porém, é que a abertura a novos dons do Espírito não significa perder de maneira desagradável e frívola o respeito pela importância e irrevogabilidade do tesouro dos dons anteriores do mesmo Espírito; Jesus elogiou a sabedoria do dono de casa que tira coisas novas e velhas do seu tesouro.
Também na fé de um único cristão ou naquela de um de um determinado grupo de cristãos (por exemplo, uma escola teológica) vive a fé toda a Igreja, a plenitude do ensinamento cristão; mas a fé e o conhecimento de um único cristão ou de um determinado grupo de cristãos têm sempre os seus limites humanos (históricos, culturais, linguísticos e psicológicos) que o tornam incapaz de compreender toda a fé da Igreja na sua plenitude. Por essa razão, também os crentes individualmente e as escolas de fé e espiritualidade individuais precisam da Igreja em seu conjunto e, naturalmente, de seu Magistério, para se completar e eventualmente se corrigir.
O crente individual participa da fé da Igreja na medida em que suas limitadas capacidades pessoais lhe permitem encarnar o tesouro da fé em sua compreensão, em seu pensamento e em sua ação. Já São Tomás de Aquino ensinava a respeito da fé implícita que nenhum crente pode compreender tudo o que a Igreja crê, mas que apenas uma parte dela é "explicitamente" compreendida e acolhida.
Aquele que acredita possui uma “participação implícita” no que está além de sua compreensão e conhecimento através do ato de confiança em Deus e em sua revelação e, naturalmente, também na Igreja que apresenta tal revelação. Esta consciência deveria levar à humildade e ao reconhecimento da necessidade da comunicação e do diálogo na Igreja.
Além disso, a fé cristã nunca preenche completamente (provavelmente nem mesmo nos santos e místicos) todo o espaço da alma humana, a parte consciente e inconsciente da psique. Nesse sentido, entendo a afirmação do Cardeal Jean Daniélou de que "um cristão é sempre parcialmente um pagão batizado".
Certamente, o batismo tem o caráter de sinal indelével (signum indelible) e de participação real no corpo místico de Cristo, mas a graça do batismo opera dinamicamente no homem e lhe confere um crescimento e um amadurecimento na fé, na medida em que o homem abre a ela o espaço de sua liberdade em todos os níveis de sua existência. Se a fé da Igreja subsiste (subsistit in) na vida espiritual do crente, a ciência religiosa recebida não preenche, no entanto, todo o espaço de sua vida espiritual e assim permanece em seu espírito e em seu coração um lugar legítimo de investigação sobre questionamentos críticos e de dúvidas sinceras.
É saudável que ele se pergunte humildemente se o seu caminho de fé é autêntico, se é fiel à tradição, mas também como Deus o guia em sua consciência. Portanto, o destinatário final de seus questionamentos não pode ser apenas a autoridade eclesiástica, mas o próprio Deus, presente no santuário de sua consciência, Deus que lhe fala não só nos ensinamentos da Igreja, mas também nos sinais dos tempos e na os eventos de sua própria vida.
O dom da fé, quer lhe seja transmitido pela educação ou pela influência do ambiente, ou obtido como resultado de uma busca pessoal, é sempre um dom incomensuravelmente precioso da graça de Deus, mas igualmente preciosa é aquela "inquietude do coração humano” de que fala Santo Agostinho. Essa inquietude não permite se acomodar em uma determinada forma de fé aceita ou alcançada, mas é sempre busca e desejo de ir além. Também os questionamos críticos, as dúvidas e as crises de fé podem propiciar impulsos valiosos nesse caminho.
Também eles podem ser considerados como um dom de Deus, como uma "graça adjuvante". O Espírito de Deus não só ilumina a razão do homem, mas também atua como uma "intuição" nas profundezas de seu inconsciente e essa consciência é preciosa para refletir sobre a "fé dos não crentes"; mesmo as pessoas que não foram alcançadas pela anunciação da Igreja, ou não a receberam de forma tal a poder aceitá-la honestamente podem ter uma certa intuição da fé. O diálogo da fé da Igreja com esta "fé intuitiva" de pessoas distantes da Igreja pode ser útil para ambas as partes.
"Deus é maior do que os nossos corações", afirma São Paulo. Mas "nosso coração" é maior do que nossa razão, nossas "convicções religiosas", nossos atos de fé conscientes e refletidos, nossas "profissões de fé" sabem de Deus. Na tradição agostiniana, Blaise Pascal conhecia em especial aquela "razão do coração" (raison), da qual a razão ("razão pura") nada sabe. Mas devemos ter cuidado para não limitar o conceito bíblico, agostiniano e pascaliano do coração apenas à "emotividade".
C.G. Jung afirmava que o componente consciente e racional de nossa psique é como uma minúscula parte de um iceberg que emerge do mar; a parte maior e mais importante está no inconsciente, não apenas pessoal, mas também no "inconsciente coletivo". É aí que nascem as ideias, as inspirações, as razões ocultas de nossas ações.
Talvez se possa dizer que a psicologia do profundo descreve com outras palavras ou em outra perspectiva a experiência dos místicos, segundo a qual "a alma não tem fundo": a profundidade do homem é permeada pela profundidade que chamamos de Deus, como lemos nas palavras do salmo "o abismo chama o abismo" (42,8).
Quando Deus, que é "maior do que o nosso coração", entra na nossa vida, estende ao infinito a profundidade e a abertura do nosso ser, que chamamos simbolicamente de coração. Algo mais significativo e maior acontece em nós do que podemos "compreender" e "esgotar" com a nossa práxis religiosa comum.
Portanto, é importante não se deter no ponto em que estamos, não se contentar com a forma usual, mas continuar a busca, mesmo quando a busca é acompanhada de crises e surgem questionamentos difíceis que vão além das respostas catequéticas oferecidas pela tradição.
À medida que nossa fé amadurece em nossa história pessoal e na história da Igreja, a catolicidade da Igreja também cresce e se desenvolve. "Agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de ser" (1 Jo 3,1-2).