Cuba. Reflexão sobre o 11 de julho

Havana, Cuba. Foto: Pedro Szekely | Flickr

05 Agosto 2021

 

“Essas manifestações são inéditas e chamam a atenção para os problemas internos da sociedade cubana agravados pelas medidas coercitivas unilaterais do governo dos Estados Unidos, que empobrecem a população e perseguem o governo cubano”, escreve Carlos Alzugaray, diplomata e educador cubano, em artigo publicado por Nueva Sociedad e Jesuítas da América Latina, 27-07-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Duas semanas depois dos protestos, o governo cubano vem realizando operações de controle de danos que vão mais além da reação inicial, principalmente repressiva. Em qualquer caso, é difícil superar a prova de fogo da atual direção cubana sem escutar às reivindicações legítimas da população.

Goste ou não, pese a quem pesar, o 11 de julho de 2021 ficará gravado de maneira indelével no imaginário nacional. Para a maioria dos cubanos, foi um dia triste que prefeririam não ter que recordar, porém aí está. A informação sobre o que ocorreu ainda está demasiado dispersa e manchada pelo ambiente de notícias falsas e respostas do governo cubano. Para fazer algo mais me proponho a uma tentativa de reflexão. Por que o que se sabe até agora, naquele domingo ocorreram por todo o território nacional manifestações massivas contra o governo, algumas delas vindas de violentos distúrbios, um fato sem precedentes em Cuba, que pegou muitos observadores e até as próprias autoridades de surpresa. Ficou assim uma imagem de ingovernabilidade e violência que objetivamente prejudica o governo cubano e que será difícil de apagar ainda em um cenário favorável que não aparece no horizonte.


Mapa do Mar do Caribe. Fonte: Guia Geo

Porém, não deveria surpreender a ninguém que estes fatos foram precisamente essa liderança que há meses vem denunciando que se estava gestando um “golpe brando” ou uma “revolução colorida” desenhada pelo sempiterno inimigo estadunidense. Talvez devido à surpresa, a reação governamental inicial estava marcada por uma perniciosa tendência de responder preferencialmente com ferramentas repressivas e com a repetição ad infinitum de uma estratégia comunicativa cuja inoperância parece cada vez mais evidente.

Em suma, o que sim é assombroso, dadas as penúrias que foram submetidas a população cubana, sobretudo desde o início da pandemia, é que esses distúrbios não foram produzidos antes. Porém ocorreram tendo repercussões negativas e a relativamente nova liderança cubana está em crise apenas a três meses de ter celebrado o VIII Congresso do Partido Comunista Cubano, e a dois de ter sido aprovada uma nova Constituição. Não deixa de remeter a situações anteriores aos colapsos nos países socialistas da Europa Oriental.

Mas este caso é diferente. Cuba é um país do Terceiro Mundo e nele ocorreu uma revolução nacional libertadora após anos de opressão neocolonial. Essa revolução radicalizou-se num agudo confronto com o imperialismo estadunidense, ao qual soube resistir numa série de confrontos. Nesse processo, adotou um modelo socialista que ofereceu amplos benefícios populares pelo menos nas primeiras três décadas, graças à sua aliança com a União Soviética.

Se esses motins não ocorreram antes, isso se deve às conquistas sociais de seus primeiros anos e à trajetória internacional do país, que o levaram não só a sobreviver ao confronto com os Estados Unidos, mas a ter um papel excepcional na política internacional e, particularmente, no hemisfério ocidental, durante e após a Guerra Fria. Tudo isso deu ao atual governo um capital político substancial e margem de manobra, a partir de seu slogan “Somos Continuidade”, que evocou a incrível liderança de Fidel Castro durante 47 anos.

Sem dúvida, essas conquistas e sucessos estão na base da resiliência do regime cubano e da tolerância estoica dos cidadãos diante das dificuldades excepcionais que sofrem, que objetivamente são causadas em grande parte pelo embargo dos Estados Unidos, mas também por deficiências e erros em políticas governamentais. Um elemento adicional, que não foi objeto de muita análise por parte dos observadores do drama cubano, é que não surgiu nenhuma informação que nos permita avaliar a participação ou o papel dos diferentes setores da oposição em Cuba, alguns deles, mas nem todos ligados à política de subversão realmente existente, promovida oficial e extra-oficialmente dos Estados Unidos.


Bandeira de Cuba em frente à Casa Branca. Foto: Victoria Pickering | Flickr

Algo parece ser evidente: embora aparentemente tenha havido alguma participação visível de líderes do conhecido Movimento San Isidro e dos movimentos 27N, movimentos dos ativistas mais patrocinados pelos Estados Unidos, foi praticamente nula, e nenhum parece ter estado em posição de capitalização destas manifestações. Uma explicação para esse fenômeno pode ter que ser buscada em pesquisas recentes sobre revoluções sociais e durabilidade autoritária, como a de Jean Lachapelle, Steven Levitsky, Lucan A. Way e Adam E. Casey, recentemente publicada na revista World Politics, na qual tenta-se explicar a estabilidade de regimes como o cubano.

Apesar do exposto, não há dúvida de que os motins foram alimentados nas redes sociais, principalmente por operadoras e influenciadores que não moram em Cuba, muitos deles residentes de Miami, onde o anti-castrismo continua sendo uma importante indústria local, financiados de muitas formas por fundos federais e privados. Não é sem razão quem argumenta que as redes sociais se tornaram um elemento tóxico na realidade nacional, já que milhões de dólares são gastos no lançamento de campanhas desestabilizadoras de notícias falsas.

Embora o “impulso externo” pudesse ter sido o fator desencadeante, também é verdade que não teria sido eficaz se não houvesse um terreno fértil para os seguintes fatores endógenos, fruto de erros e cálculos errôneos do governo cubano:

1. Deterioração da situação social em bairros pobres;

2. Dificuldades enormes em conseguir comida;

3. Deterioração recente da situação de saúde após vários meses de uma política de muito sucesso contra a pandemia de covid-19;

4. Tendência a ignorar, limitar e até criminalizar a dissidência.

5. Estratégia comunicativa ineficiente que tende a esconder seus próprios erros e inadequações argumentando que “a culpa é do embargo”;

O governo subestimou e continua subestimando até que ponto suas próprias ações ou deficiências, estas percebidas ou reais, causam desconforto ao cidadão, pois tem se concentrado no fato de que o estímulo exógeno a um surto social é o único ou pelo menos a causa principal.


Manifestação em defesa da Revolução Cuba, 26-07. Foto: Presidencia Cuba | Flickr

Não há dúvida de que a política de medidas coercitivas unilaterais contra Cuba, que está em vigor há quase 60 anos, é uma espécie de “guerra econômica” contra uma “praça sitiada”, como afirmou Peter Beinart no New York Times de 15 de fevereiro em uma coluna intitulada “Outra Guerra Permanente da América”. Beinart critica as políticas de sanções econômicas, argumentando que Washington usa esse tipo de estratégia contra países como Cuba e as equivale a fazer a guerra por outros meios, com pouquíssimas chances de sucesso no objetivo proposto: “a mudança de regime”.

É claro, o governo estadunidense rechaçou as acusações cubanas, porém é correto afirmar que o governo de Biden manteve as sanções impostas a Cuba pelo governo republicano de Donald Trump entre 2017 e 2021, 247 ao total, inclusive em plena pandemia. Trata-se de uma política de pressão máxima que empobrece o povo cubano enquanto acossa seu governo e não alcança o objetivo confesso de derrotar o regime. E o faz apesar de prometer exatamente o contrário durante a campanha eleitoral.

É evidente que se estava criando uma tempestade perfeita a 90 milhas das costas estadunidenses. É interessa que apenas uma semana depois de que o presidente Biden classificara Cuba como um “Estado falido”, a Casa Branca anunciou duas medidas que, caso se materializem, aliviariam praticamente as tensões em Cuba: o reestabelecimento do envio de remessas e a reabertura dos serviços consulares na Havana. Ambas medidas foram parte do assédio de Trump. Se estas propostas conseguiram atravessar o “campo minado” do processo de tomada de decisões sobre Cuba em Washington e uma difícil negociação com o governo cubano, isso pode significar que o governo Biden reconhece tacitamente que continuar com as sanções exacerba a crise cubana e poderia provocar uma rebelião social incontrolável, o que não está no interesse nacional dos Estados Unidos porque, entre outras coisas, poderia estimular a perigosa ideia de intervir militarmente.

Em todo o caso, Biden demonstrou que não é Barack Obama no que se diz respeito à Cuba. Porém isso é um sintoma de fraqueza da sua liderança, o que pode ter repercussões na América Latina e Caribe, região na qual Cuba e as esquerdas que a apoiam seguem tendo importância, como demonstraram os recentes processos políticos no México, Argentina e Bolívia – e até Equador.

Durante seis meses, o governo dos Estados Unidos esteve adiando o cumprimento das promessas de campanha e ficou amarrado no estreito marco da variante trompista da política republicana para Cuba, que está baseada em uma ilusão: que mediante a aplicação de medidas coercitivas unilaterais externas será possível acabar com o regime surgido em 1959. Os acontecimentos na ilha e as decisões e propostas de outros atores a colocaram em uma posição impossível. O resultado final é que muito provavelmente, durante os próximos três anos, as sanções serão mantidas e empobrecerão ainda mais o povo cubano e assediarão seu governo, que precisará se convencer de que apenas uma política econômica eficaz, que fomente o desenvolvimento das forças produtivas poderá tirar o país de sua crise atual.

Ao momento em que escrevo estas linhas, duas semanas depois dos protestos, observa-se o governo cubano realizando operações de controle de danos que transcendem a reação inicial, principalmente repressiva, ainda que não pareça tê-la abandonado. Para continuar controlando o dano é imprescindível avaliar corretamente a situação política e social, e não cometer o erro de culpar apenas os fatores externos sem atender autocriticamente os internos. Deve-se acometer com urgência as reformas prometidas, especialmente no que se refere ao fornecimento de alimentos.

Um problema adicional que complica a situação é como enfrentar atores violentos que aproveitaram a situação para provocar distúrbios sem, ao mesmo tempo, criar a imagem, tanto na sociedade cubana como no ambiente internacional, de repressão excessiva contra manifestantes pacíficos. Há relatos de que julgamentos sumários estão ocorrendo sem garantias processuais adequadas. As penalidades impostas nesses julgamentos variam de dez meses a um ano. Muitos dos condenados não parecem ter cometido atos violentos. Continuar por este caminho alienará ainda mais os setores ainda identificados com a Revolução, mas que se opõem à repressão excessiva. Na sociedade cubana, a experiência de ter debatido e aprovado uma nova Constituição que contém elementos importantes de respeito ao devido processo legal não é um fato menor. Entre os cidadãos é maior a exigência de cumprimento da lei a que as autoridades policiais estão obrigadas.

Quanto à estratégia de comunicação, deve-se buscar o equilíbrio adequado para agregar e recuperar apoios e evitar perdê-los ainda mais. Há uma erosão evidente do poder de persuasão do argumento de que tudo se deve ao bloqueio, independentemente de ser uma verdade verificável. Abusar desse argumento sem foco autocrítico em seus erros leva o governo a uma perda ainda maior de credibilidade. As autoridades devem tentar superar dois importantes obstáculos político-ideológicos: o primeiro é que a velha mentalidade estreita do socialismo ainda prevalece na burocracia como um modelo estatista baseado no planejamento centralizado, que minimiza o papel do mercado na alocação de recursos; a segunda surge de concepções que definem o socialismo em termos autoritários, ignorando ou criminalizando a dissidência daqueles que recomendam mudanças no modelo social para torná-lo mais eficiente economicamente e mais democrático e respeitoso do Estado de Direito estabelecido pela Constituição de 2019.

Esta tendência ataca quem discorda, muitas vezes dotando-os de epítetos como “centrista”, que procuram tornar sinônimo de contrarrevolucionários.

As interpretações que a mídia oficial está dando sobre o que aconteceu naquele domingo, 11 de julho, demonstram esse ponto. Há uma tentativa de desacreditar, diminuir e até criminalizar todos aqueles que aderiram aos protestos, chamando-os de “anexacionistas”, criminosos ou “confusos”. É claro que alguns que participaram se enquadram nessas descrições. Existem demandas reais feitas de forma pacífica, cujo desconhecimento pode ser arriscado.

A isso deve-se acrescentar que o discurso oficial justifica o uso da violência repressiva e isso tem um impacto negativo em setores da população que permanecem à margem, mas observam com consternação tudo o que acontece. Um exemplo relevante é o de intelectuais e artistas que tornaram públicas suas convicções. Os acontecimentos tiveram um impacto negativo na imagem internacional de Cuba. Percebe-se que as autoridades, incluindo as autoridades de segurança, foram pegas de surpresa. Também há uma avaliação de que o nível de repressão está sendo escondido.

Ainda não há um número de presos ou informações sobre quantas manifestações ocorreram, quantas foram pacíficas, quantas perturbações geraram ou quantos cidadãos participaram. E, claro, há vozes que exigem a libertação de todos que protestaram pacificamente, entre essas a do cantor e compositor Silvio Rodríguez, muito respeitado no meio governamental.

Esse vazio de informação faz com que tanto o público quanto os atores externos possam ser desinformados por aqueles que têm o propósito óbvio de erodir a liderança cubana. Não se leva em conta que a ideia de que o protesto público pacífico é legítimo e deve ser protegido por lei, ao qual o governo parece ter uma atitude negativa, já se enraizou no público, quando reage proclamando que “a rua pertence aos revolucionários. Essa não é a resposta mais conveniente, nem do ponto de vista interno nem externo, além do fato de que viola o estado de direito socialista.


Bandeira de Cuba em Havana. Foto: Presidencia Cuba | Flickr

Em suma, essas manifestações são inéditas e chamam a atenção para os problemas internos da sociedade cubana agravados pelas medidas coercitivas unilaterais do governo dos Estados Unidos, que empobrecem a população e perseguem o governo cubano.

Este é um desafio de grande magnitude para um líder político cubano que, apesar de que já tenho sido posto à prova, está em processo de consolidação em condições excepcionalmente adversas, não apenas pela pandemia. Os desafios são sumamente complexos, porém são também decisivos. Os líderes cubanos fariam bem em considera que, em situações similares em outros contextos, a estratégia exitosa seguida por homólogos políticos similares tiveram como divisa somar e não subtrair; escutar, e não tapar os ouvidos para as reivindicações legítimas.

 

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