Como a desigualdade alimenta as mortes por covid-19. Artigo de Jeffrey Sachs

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07 Julho 2020

“Com a falta de governos coerentes, capazes e confiáveis, que possam implementar uma resposta equitativa e sustentável à pandemia e uma estratégia para a recuperação econômica, o mundo sucumbirá a maiores ondas de instabilidade geradas por um conjunto crescente de crises globais”, escreve Jeffrey Sachs, economista norte-americano, em artigo publicado pelo jornal nicaraguense Confidencial, 04-07-2020. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Três países – Estados Unidos, Brasil e México – respondem por quase 46% das mortes reportadas por covid-19 no mundo, no entanto, possuem apenas 8,6% da população mundial. Cerca de 60% das mortes da Europa estão concentradas em três países – Itália, Espanha e Reino Unido – que respondem por 38% da população da Europa. Houve bem menos mortes e taxas de mortalidade mais baixas na maioria dos países do norte e centro da Europa.

Vários fatores determinam a taxa de mortalidade de um país por covid-19: a qualidade da liderança política, a coerência da resposta do governo, a disponibilidade de leitos em hospitais, o alcance das viagens internacionais e a estrutura etária da população. No entanto, uma característica estrutural profunda parece estar dando forma ao papel destes fatores: a distribuição de renda e riqueza dos países.

Os Estados Unidos, Brasil e México possuem uma desigualdade de renda e riqueza muito alta. O Banco Mundial informa que os respectivos coeficientes de Gini para os últimos anos (2016-2018) são de 41,4, nos Estados Unidos, 53,5, no Brasil, e 45,9, no México (em uma escala de 100 pontos, um valor igual a 100 significa desigualdade absoluta, onde uma pessoa controla toda a renda ou a riqueza, enquanto que um valor igual é zero implica uma distribuição completamente igual por pessoa ou lar).

Os Estados Unidos possuem o mais alto coeficiente de Gini, entre as economias avançadas, ao passo que Brasil e México estão entre os países mais desiguais do mundo. Na Europa, Itália, Espanha e Reino Unido - com classificações de Gini de 35,6, 35,3 e 34,8, respectivamente – são mais desiguais do que seus pareces do norte e do leste, como Finlândia (27,3), Noruega (28,5), Dinamarca (28,5), Áustria (30,3), Polônia (30,5) e Hungria (30,5).

A correlação das taxas de mortalidade por milhão e a desigualdade de renda está longe de ser perfeita, há outros fatores que tem uma grande incidência. A desigualdade da França está ao lado a da Alemanha, mas sua taxa de mortalidade por covid-19 é significativamente mais alta. A taxa de mortalidade na Suécia, um país relativamente igualitário, é significativamente mais alta que em seus vizinhos, porque a Suécia decidiu que suas políticas de distanciamento social fossem voluntárias e não obrigatórias. A Bélgica, relativamente igualitária, se viu afetada por taxas de mortalidade reportadas muito elevadas, devido em parte à decisão das autoridades de reportar mortes prováveis e confirmadas por covid-19.

A alta desigualdade de renda é um flagelo social a partir de muitos pontos de vista. Como informaram convincentemente Kate Pickett e Richard Wilkinson, em dois livros importantes: “The Spirit Level” e “The Inner Level”, uma maior desigualdade conduz a piores condições sanitárias em geral, o que aumenta de maneira significativa a vulnerabilidade às mortes por covid-19.

Além disso, uma maior desigualdade leva a uma menor coesão social, menos confiança social e mais polarização política que, em seu conjunto, afetam de maneira negativa a capacidade e a disposição dos governos na hora de adotar fortes medidas de controle. Uma maior desigualdade implica que uma proporção maior de trabalhadores de baixa renda – de encarregados pela limpeza, caixas, guardas e distribuidores a trabalhadores do saneamento, da construção e da indústria – deve avançar com sua vida cotidiana, mesmo com o risco de se infectar. Mais desigualdade também significa que mais pessoas vivem em condições de aglomeração e, portanto, não podem se proteger de maneira segura.

Os líderes populistas acentuam os enormes custos da desigualdade. O presidente norte-americano, Donald Trump, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, foram eleitos pelas sociedades desiguais e socialmente divididas com o apoio de muitos eleitores da classe trabalhadora descontentes (em geral, homens brancos com um menor nível de formação que não aceitam a queda de seu status socioeconômico). Mas a política do ressentimento é quase o contrário da política do controle epidêmico. A política do ressentimento se esquiva dos especialistas, zomba da evidência científica e rejeita as elites que trabalham online e que dizem aos trabalhadores que não podem trabalhar, que fiquem em casa.

Os Estados Unidos são tão desiguais, e estão tão divididos politicamente e tão mal governados por Trump, que na verdade abandonaram qualquer estratégia nacional coerente para controlar o surto. Todas as responsabilidades foram delegadas aos governos estaduais e locais, que tiveram que se arranjar por conta própria. Manifestantes de direita sumamente armados, em certas ocasiões, organizaram distúrbios nas capitais estaduais para se opor às restrições de atividade comercial e à mobilidade pessoal. Até as máscaras foram politizadas: Trump se nega a usar uma e recentemente disse que algumas pessoas as usam apenas para expressar que desaprovam sua gestão. O resultado é que seus seguidores alegremente se negam a usá-las e o vírus, que começou nos estados litorâneos “azuis” (democratas), agora, afeta e muito a base de Trump nos estados “vermelhos” (republicanos).

Brasil e México imitam políticas dos Estados Unidos. Bolsonaro e o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, são o protótipo do populista ao estilo Trump: zombam do vírus, desconsideram o conselho dos especialistas, diminuem a importância dos riscos e rejeitam ostensivamente a proteção pessoal. Também estão conduzindo seus países a um desastre digno de Trump.

Com exceção do Canadá e outros poucos lugares, os países da América do Norte e América do Sul estão sendo arrasados pelo vírus, porque quase todo o hemisfério ocidental compartilha um legado de desigualdade massiva e de discriminação racial generalizada. Até o Chile, um país bem administrado, foi vítima da violência e a instabilidade, no ano passado, devido a uma desigualdade alta e crônica. Este ano, o Chile (junto com o Brasil, Equador e Peru) sofreu uma das taxas de mortalidade por covid-19 mais altas do mundo.

Por certo, a desigualdade não é uma sentença de morte. A China é bastante desigual (com um resultado Gini de 38,5), mas seus governos, nacional e provinciais, adotaram medidas de controle rigorosas, após o surto inicial em Wuhan, e essencialmente conseguiram conter o vírus. O recente surto em Pequim, depois de semanas sem nenhum caso novo confirmado, resultou em renovados confinamentos e em testes massivos.

No entanto, na maioria dos países, estamos sendo testemunhas mais uma vez dos enormes custos da desigualdade em massa: governança inepta, desconfiança social e uma imensa população de pessoas vulneráveis que não podem se proteger do avanço dos danos. De forma alarmante, a própria epidemia está ampliando ainda mais as desigualdades.

Os ricos hoje trabalham e prosperam online (a riqueza do fundador da Amazon, Jeff Bezos, aumentou 49 bilhões de dólares, desde o início do ano, graças à adoção decisiva do comércio eletrônico), ao passo que os pobres estão perdendo seus empregos e, muitas vezes, sua saúde e sua vida. E os custos da desigualdade certamente continuarão aumentando, enquanto os governos carentes de ingressos cortam orçamentos e serviços públicos que são vitais para os pobres.

Contudo, aproxima-se o dia do ajuste de contas. Com a falta de governos coerentes, capazes e confiáveis, que possam implementar uma resposta equitativa e sustentável à pandemia e uma estratégia para a recuperação econômica, o mundo sucumbirá a maiores ondas de instabilidade geradas por um conjunto crescente de crises globais.

 

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