Coronavírus: “Um ancião indígena que morre é uma perda para toda a humanidade”, diz Márcio Meira

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16 Abril 2020

Para o ex-presidente da Funai, governos e organizações precisam de união para enfrentar a pandemia e alerta para a escassez de alimentos aos doentes nas comunidades.

A entrevista é de Maria Fernanda Ribeiro, publicada por Amazônia Real, 12-04-2020.

O que acontece agora com a humanidade inteira é o que ocorre quando um povo indígena em situação de isolamento fica vulnerável a pessoas irresponsáveis que entram no território, como os missionários, os madeireiros, os invasores, e levam uma gripe. A reflexão é do antropólogo Márcio Meira, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) entre os anos de 2007 e 2012. Atualmente funcionário do Museu Paraense Emilio Goeldi, de Belém (PA), ele participou da demarcação das terras indígenas do Médio Rio Negro (Amazonas) no início da década de 1990.

Para Meira, a ausência de medidas específicas ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus em territórios indígenas por parte do governo federal é grave e é urgente que haja repasse de verba para a saúde indígena para que os Dseis (Distritos Sanitários Indígenas) tenham autonomia para encontrarem mecanismos no combate à entrada do vírus nas diferentes áreas indígenas pelo Brasil.

Com povos indígenas onde a presença de anciões é muito pequena, a preocupação é que se um idoso morre, vai com ele também todo o conhecimento e cultura e quem perde com isso é toda a humanidade. Meira conversou com a Amazônia Real sobre as políticas indigenistas no momento da pandemia, as especificidades das diferentes regiões amazônicas e a importância dos povos indígenas para a ciência.

O antropólogo Márcio Meira. (Foto: Arquivo pessoal)

Eis a entrevista.

O que é preciso que a Saúde Indígena, a Funai e os demais órgãos que atuam junto aos povos indígenas façam para a disseminação do coronavírus nos territórios indígenas?

A gente não tem acesso às decisões que estão sendo tomadas internamente nesses órgãos, que são controlados por pessoas que não têm o menor interesse em relação à defesa e à proteção dos povos indígenas; mas olhando de fora, a impressão que dá é que eles estão completamente desnorteados com os cuidados que devem ser feitos, mas dentro da Funai temos funcionários de carreira que têm consciência, sabem os cuidados que devem ser tomados, com as medidas necessárias, principalmente com relação à quarentena, ao isolamento, o não acesso à terra indígena.

Como o senhor enxerga a situação da saúde indígena nesse atual contexto da Covid-19?

A situação dos povos indígenas é uma questão particular dentro do contexto geral, que é grave. O subsistema de saúde indígena é parte do Sistema Único de Saúde (SUS) e o Governo Federal também não tem a menor coordenação de medidas gerais para o fortalecimento dentro do SUS. Os Dseis – vinculados ao Ministério da Saúde – precisam de recursos, de médicos. Os médicos cubanos, por exemplo, atuavam nesses distritos e com a saída deles muitos ficaram sem esses profissionais. É urgente que os recursos da saúde cheguem novamente e que reponham os recursos que foram tirados com a medida de contenção de gastos. Então tem esse aspecto, do ponto de vista de uma questão de governo, que está muito aquém do que a população indígena merece, assim como a população geral.

Garimpo na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. (Foto: Associação Hutukara)

Qual é o grande risco da disseminação do coronavírus nas comunidades?

O que está acontecendo agora com a humanidade inteira, e essa é uma reflexão que todos nós deveríamos fazer, é o que acontece quando um povo indígena em situação de isolamento fica vulnerável a pessoas irresponsáveis que entram no território, como os missionários, os madeireiros, e levam uma gripe. Esse é um vírus que ninguém tem imunidade, nenhum indivíduo do planeta. Parece até irônico, mas hoje a humanidade se encontra em uma situação igual a de um povo indígena isolado. Para eles, uma gripe, é o nosso coronavírus, que ameaça a humanidade inteira.

Sabemos que um dos impactos mais fortes do colonialismo europeu nas Américas, particularmente no Brasil, com relação ao genocídio indígena nos séculos 16 e 17 foram as pandemias. A maior parte da população indígena das américas desapareceu fisicamente por conta de pandemias de varíola e de sarampo. Historicamente temos aí situações conhecidas e sabemos como isso é delicado.

Então, estamos todos no mesmo balaio?

Não, a situação dos povos indígenas é ainda mais grave porque sabemos que o corona é mais letal com as populações acima dos 60 anos e que tem problemas de saúde crônicas. Se você olhar para a pirâmide etária da população indígena brasileira observará que é ela é achatada na base, diferente da população brasileira em geral. Isso porque houve um boom demográfico indígena a partir da década de 90 e hoje, a média, é uma pirâmide etária onde o número jovens e crianças é muito maior do que o dos idosos.

Terra Indígena Yanomami. (Foto: Cabo Vinicius Santos/FAB-2015)

Mas como interpretar essa pirâmide etária indígena?

Aparentemente ter menos idosos pode parecer benéfico, mas tem que lembrar que são 300 povos diferentes, alguns com menos de mil habitantes. A chegada do coronavírus é uma ameaça muito grande da perda eventual de pessoas detentoras de grandes conhecimentos. Então, quando falamos de um povo pequeno e a minoria sendo de idosos, você deve interpretar que boa parte do conhecimento e da cultura desses povos está ameaçada. Isso porque se um ancião se for, vai com ele toda uma história. Os jovens dependem totalmente dessas pessoas para receberem o conhecimento das tradições, que só eles possuem. É uma população pequena, mas com importância cultural imensa.

Há casos de povos indígenas com livros publicados com as tradições orais, mas a maioria dos povos indígenas não produziu nem documentos escritos e nem audiovisuais que guardem para as futuras gerações esses conhecimentos. Como vai ficar se o corona chegar em cheio nas aldeias, principalmente nas populações pequenas, onde muito já se perdeu?

Como o senhor acha que vai ficar?

Deixará de ocorrer a passagem desse conhecimento e os jovens não terão a quem recorrer e estamos falando de conhecimento no sentido amplo, desde aqueles sobre cura, xamanismo, até mesmo a sabedoria prática de como caminhar pela floresta, como identificar a fauna, a flora, quais as funções dos animais e das plantas no meio ambiente, o conhecimento sobre as paisagens.

Qual a importância dos Territórios Indígenas para o que estamos vivendo?

Os territórios indígenas reconhecidos pelo Estado têm uma função prioritária e crucial para a manutenção da biodiversidade e do clima. Estamos falando de todo o conhecimento acumulado pelos indígenas, que é imenso, e que tem contribuído inclusive para a ciência com ensinamentos sobre o meio ambiente e a biodiversidade. Tudo está na cabeça dos idosos e não é uma perda só para aquele povo, é uma perda para toda a humanidade.

O que mais deveria ser feito?

É preciso um planejamento urgente, urgentíssimo da Funai e da Sesai para investir recursos nos Dseis, mas sobretudo é preciso haver diálogo com as organizações indígenas da sociedade civil, que tem experiência, é momento de união de esforços de todos aqueles que tem responsabilidade, que tem experiência com os povos indígenas, seja do governo ou da sociedade civil para evitar o máximo possível de impacto nas terras indígenas.

O problema é que existe uma quebra de diálogo do governo federal com as organizações da sociedade civil que trabalham com os povos indígenas desde o início do governo. Uma ruptura, eu diria. Isso não ajuda porque estamos numa guerra contra um vírus que é mortal para cerca de 3% das pessoas que pegam. Ou a gente faz uma união ou a situação vai ser muito pior. Também é preciso ter recursos para a alimentação porque pode ter situação que não tem alimento para prover as pessoas que estão doentes, que não podem ir pra roça ou caçar.

São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro. (Foto Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Na Amazônia, há muitas especificidades – territoriais, geográfica, étnicas. A região do Alto Rio Negro, onde o senhor atuou, por exemplo, é na fronteira. É possível adotar um plano único?

As realidades são muito diversas. Tem uma parte imensa de fronteira da Amazônia que são povos indígenas que vivem de ambos os lados da fronteira, mas os distritos sanitários têm conhecimento disso e sabem das realidades desses territórios.

Tem a situação dos povos com uma longa história de contato com a sociedade envolvente, que são de colonização antiga, como o caso dos povos do Rio Negro, de Roraima, do Alto Solimões, as regiões Sul e Sudeste do Pará, do Oiapoque. É muito diferente de territórios isolados ou de recente-contato, como os Zo’é ou os povos do Vale do Javari, que precisam ser tratados de forma absolutamente à parte e ainda com mais cuidado porque são muito vulneráveis.

Cada território tem uma situação própria e os distritos conhecem isso. Outro aspecto é observar que na região da calha Sul da Amazônia, que é onde está o arco do desmatamento, a situação é diferente porque você tem muito mais ameaças de contatos com os madeireiros, fazendeiros, garimpeiros, invasores de terras e o contato com o invasor é logo ali. O Parque Indígena do Xingu, por exemplo, está cercado de fazendas por todos os lados, é o caso gravíssimo também das terras do Maranhão com o Pará, que tem os Guajajara, os Guajá, os de isolamento voluntário, que estão cercados por madeireiros.

A atenção com os territórios no arco do desmatamento precisa ser redobrada, o mesmo invasor que derruba madeira, é o que leva o coronavírus.

Um pressuposto básico é que o Ministério da Saúde dê recursos e respeite a autonomia desses distritos, pois eles têm mecanismos para reconhecer essas diferenças, por isso a necessidade de dar autonomia aos distritos. Passar recursos para os Dseis para que eles possam atuar com rapidez é fundamental e, de novo, é importante que essas ações sejam feitas em acordo com todos que atuam na área, com prefeituras, estados, ONG’s, com o movimento indígena. É hora de deixar de lado as divergências e centrar no esforço coletivo de defender os povos indígenas desse vírus.

Ex-presidente da Funai, Márcio Meira. (Foto: Arquivo pessoal)

Como está a situação no estado do Pará?

O Pará é um estado que tem as situações todas da Amazônia, desde povos isolados e de recente-contato, como no Norte do Pará, que é uma situação de fronteira muito específica e parecida com regiões do Amazonas, como o Javari. Por outro lado, quando olhamos para o Sul do Pará, tem a situação das terras Kayapó, Xikrin, Araweté, que estão todas no arco do desmatamento e nas beiras das estradas, como a Transamazônica. E tem os o Munduruku, na BR-163. É uma situação de vulnerabilidade por causa do desmatamento do entorno das terras e das invasões, cada situação dessa requer cuidados adequados para aquela situação. Há lugares que só chega de avião, é um atendimento que custa caro, é realmente um esforço coletivo.

Em todas as situações, é importante ter um antropólogo, um indigenista especializado, profissionais que possam ajudar a orientar os médicos porque eles conhecem a cultura, sabem falar a língua. Esses profissionais especializados são fundamentais e eles estão na Funai e nas organizações da sociedade civil.

Qual a sua visão sobre as políticas de enfraquecimento da Funai?

Levaria muito tempo para te responder, mas o que eu acho é que a Funai é uma instituição fundamental para a proteção dos povos indígenas, que no período após a ditadura e após a constituição de 88 ela foi bastante sucateada, com falta de recursos e ausência de concursos para repor a máquina burocrática. Na década de 90 teve um aumento gradual de investimento, mas nos anos 2000 houve um maior aporte de recursos e a realização de concursos, em 2004 e 2010, para repor uma parte da força de trabalho indigenista, com profissionais que serviram para repor aqueles que já tinham se aposentado, mas foi o que permitiu que a Funai não ficasse fechada. Não teria funcionário na Funai hoje se não fossem esses concursos.

Houve também aporte de recursos, ampliação de cargos, mas a partir de 2016, com o governo Temer, o que a gente observa é um processo de sucateamento, não foi feito concurso, orçamentos foram cortados, mas, sobretudo, houve uma mudança de compreensão da relevância da política indigenista para o país, que não fica só na Funai, tem a questão da educação e da saúde indígena, com cortes. A partir dos anos 2000 essa política ganhou complexidade e isso tem sido sucateado nos últimos cinco anos, com quebra de protocolos, corte de verbas, não realização de concursos e ausência da presença dessa proteção estatal pública nos territórios, que tem permitido as invasões.

Funcionárias do Dsei do Alto Rio Solimões na Aldeia Feijoal. (Foto: Dsei ARS)

 

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