A ideologização da Sociologia (além de uma simples distração). Artigo de Carlos A. Gadea

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21 Outubro 2019

Martins foi bastante generoso com o ambiente acadêmico e a Sociologia, em particular. Chama de ‘distração’ (ou de desatenção) o produto de uma atitude acadêmica e intelectual que, na realidade, não emergiu da falta ou ausência de ‘prontidão’, por exemplo, por parte dos pesquisadores nativos, mas sim de um agir acadêmico convencido de que não existiria divórcio possível entre as ideologias (valores subjetivos, de grupo, interesses) que o pesquisador carrega e a produção de conhecimento capaz de elaborar acerca da sociedade”, afirma o sociólogo Carlos A. Gadea, ao comentar a ideologização das Ciências Sociais, tema da entrevista concedida por José de Souza Martins à IHU On-Line.

 

Carlos Gadea. (Foto: Arquivo Pessoal)

Carlos A. Gadea é graduado em História pelo Instituto de Professores Artigas - IPA, no Uruguai, mestre e doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Realizou pós-doutorado na Universidade de Miami, nos EUA, e foi professor visitante na Universidade de Leipzig, na Alemanha e na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México - UNAM, no México. Atualmente leciona no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.

Eis o artigo.

O sociólogo José de Souza Martins, em entrevista publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no mês de setembro de 2019, foi contundente acerca do ambiente acadêmico dominante nos últimos 20 anos nas Ciências Sociais no país. Afirma que “houve uma ideologização da produção do conhecimento sociológico, aquela coisa do politicamente correto, a coisa do engajamento”. Também afirma que “o Brasil não foi na direção suposta pelos governos e muito menos pelos sociólogos e, de repente, há uma mudança brutal na sociedade brasileira e fica todo mundo surpreso. Surpreso com o quê? Não há que ficar surpreso; significa que o pessoal estava distraído. Então, faço a crítica da distração e da falta de prontidão dos sociólogos brasileiros, de uma certa vulnerabilidade ao que parece, mais do que aquilo que é. Isso não é bom para um sociólogo”. Estas palavras de Martins, no alto da sua experiência acadêmica e intelectual, soaram fatais para muitos. Em mim, uma manifesta cumplicidade.  

Seu diagnóstico acerca de que “as ideologias (...) que têm invadido a sociologia são as ideologias de esquerda, de um marxismo mal digerido, desvinculado do método dialético”, vincula-se a uma preocupação que muitos outros sociólogos compartilham há bastante tempo, motivo de conversações, por exemplo, nos intervalos dos eventos científicos da área. Também como certo “conformismo dos intelectuais” (M. Maffesoli) [1] se revestiu de uma poderosa camada de ideologias que acompanharam os destinos de um ciclo político recente, diagnóstico que muitos guardaram na intimidade dos seus pensamentos com certos receios e temores. Mas, oportuno é dizer, que Martins foi bastante generoso com o ambiente acadêmico e a Sociologia, em particular. Chama de “distração” (ou de desatenção) o produto de uma atitude acadêmica e intelectual que, na realidade, não emergiu da falta ou ausência de “prontidão”, por exemplo, por parte dos pesquisadores nativos, mas sim de um agir acadêmico convencido de que não existiria divórcio possível entre as ideologias (valores subjetivos, de grupo, interesses) que o pesquisador carrega e a produção de conhecimento capaz de elaborar acerca da sociedade.   

Neste sentido, tem que ficar evidente que a motivação desta atitude tem sido, como bem sustenta o próprio Martins, a de confirmar as convicções extracientíficas destes pesquisadores e “intelectuais” (políticas, de valores culturais, morais, estilos de vida), enganando-se ao supor que a “sua verdade” (surgida do seu condicionamento ideológico) revelaria aquilo que foi realmente observado e pesquisado. Como resultado tivemos uma Sociologia limitada ao jogo dos embates ideológicos e os sutis posicionamentos políticos, aos a prioris do mundo, e que, evidentemente, levou a um autoengano: à produção de conhecimento ao serviço de uma “causa maior”, ou melhor, como inserido numa cadeia de significados que adquire sentido em um relato previamente concebido acerca da sociedade e o indivíduo. Ao que Martins chama de uma sociologia cujo pressuposto é o de uma evolução linear da sociedade, permito-me descrever como uma sociologia excessivamente carregada de metarrelatos e certezas, produtora de discursos e narrativas sobre a sociedade e os indivíduos.

Como correlato surgiria a cultura do engajamento e da militância política, e entre ambas a promessa da emancipação. Não se trata de algo novo, certamente. Esta categoria surge do espírito do iluminismo do século XVIII, e ganharia força em intelectuais forjados nas tensões políticas e culturais do século XX. A geração de intelectuais da redemocratização política, e dentre eles, os que, inclusive, estiveram participando na luta contra os regimes autoritários dos anos de 1960 e de 1970, tiveram, justamente, muito protagonismo nesta cultura acadêmica. A militância política tinha subjetivamente impactado o agir acadêmico de muitos intelectuais, encontrando-se com novas gerações ávidas por debates e discussões que dessem conta do espírito crítico do seu presente. Assim, os objetos da pesquisa passaram a adquirir status de sujeito da emancipação. Por exemplo, a figura do “outro” (o trabalhador, o pobre, o negro, a mulher, o camponês, etc.) emergiria em sintonia com a tentativa de torná-lo uma voz passível de um conhecimento único e próprio, e cuja experiência incomensurável dever-se-ia “libertar” das amarras estruturais da vida social. Diante disso, apareceria uma Sociologia com pressupostos claros, e de tradição crítica forte: de contribuir (e conduzir) a dilucidar o conteúdo oculto das estruturas opressoras da sociedade para emancipar aqueles que estariam na condição social de eventual sofrimento. Assistir-se-ia à passagem de uma Sociologia que diagnosticava, debatia teorias e procurava compreender a dinâmica do mundo social para uma que se constituía em âmbito das lutas políticas que se suscitavam na vida em sociedade, lutas que, evidentemente, correspondiam-se com determinadas agendas aprioristicamente consideradas válidas pelos pesquisadores que tinham previamente concebido seu objeto de análise como um sujeito da emancipação.

Fora o papel histórico que certo ambiente acadêmico se atribuiu tal qual herdeiro de uma missão política importante no contexto da redemocratização política no país, da eventual ampliação dos direitos políticos e sociais e os debates acadêmicos considerados necessários para emancipar a sociedade, o problema fundamental desta Sociologia foi ter passado a considerar o produto das suas alucinações ideológicas a realidade concreta tal qual se estaria apresentando. Quer dizer, quando passou a acoplar aquilo que previamente considerava que a realidade e os indivíduos era (e/ou deveria ser) e o que a realidade pragmaticamente oferecia perante seus olhos. Neste exercício complexo, a crise desta Sociologia se tornaria iminente, e a perplexidade com o real não conseguiria o necessário revisionismo sobre os pressupostos ideológicos existentes. Longe disso, a realidade era entendida como uma distorção ou uma miragem cacofônica. Assistia-se a uma Sociologia que praticamente negava a realidade ou, simplesmente, a tratava com desprezo.   

Esta sorte de esquizofrenia traria como substituição uma espécie de “energia moral” que, de partida, terminaria ferindo seriamente a própria legitimidade desta Sociologia como campo de conhecimento científico. Por “energia moral” se entende, aqui, em certo sentido, o que Martins chama como o “politicamente correto”, mas que, em termos gerais, entender-se-ia como aquilo que, finalmente, dotaria a Sociologia de uma função social particular em um contexto histórico e político. Esta Sociologia entraria, então, a fazer parte de um discurso ou relato a mais no cardápio de alternativas sobre como construir uma sociedade mais justa, sobre como emancipar sujeitos; função que, diga-se de passagem, não necessariamente foi constitutiva na sua consolidação como área de conhecimento científico. Por momentos, parece estarmos assistindo a uma Sociologia que está atravessando uma “face mística” ou new age fora de tempo, com suas mirabolantes análises sobre a sociedade. 

Por outra parte, quem poderia se opor a que aqueles que sofrem deixem de fazê-lo pelas injustiças da vida social? Certamente, o conhecimento deve estar em sintonia com as necessidades da vida social e moral dos indivíduos e grupos, e deve servir para que, com base nele, se possam assumir compromissos para o bem comum. No entanto, o que está em questão é se determinadas visões de mundo com uma típica nomenclatura, se um marco ideológico, o engajamento e a militância que o acompanham são condizentes com a produção do conhecimento sociológico que necessitamos. Qual a garantia que o engajamento é tal por parte daquele que se define engajado, e que tal posicionamento é um “lugar de enunciação” legítimo para a produção do conhecimento sociológico? Engajado em quê? Para quê? Qual o a priori do mundo que levou a tal ação de estar engajado por parte de um tal pesquisador? Esta Sociologia pouco nos oferece além de deixar em evidência qual ideologia está representando.

Como bem afirma Mark Lilla[2], vivenciamos uma “era ideológica”, e é sob este guarda-chuva que se deve compreender, também, esta ideologização da Sociologia  que tanto vem preocupando a muitos. Esta era ideológica se caracteriza, em parte, por um ambiente acadêmico do “quem-dá-mais” na elaboração de narrativas - oriundas de pesquisas (!) - que procuram a emancipação, a liberação, daqueles que podem definir-se como sujeitos da opressão. À falta de critérios e aproximação adequada ao campo sociológico, mede-se o valor do conhecimento produzido pelo reconhecimento intelectual entre os iguais da capacidade de ter achado um “novo sujeito” a libertar, uma nova relação social de opressão ou um mecanismo oculto de poderes em disputa. Nada contra tal importante lavor investigativo. O problema está na constituição de um ambiente acadêmico que termina sendo, praticamente, um terreno de especulação acerca de quem seria o próximo a “libertar”: os catadores de lixo?, os portadores de uma nova identidade sexual?, o coletivo dos ofendidos por uma palavra que os ofendeu? Quem-dá-mais?

Com que legitimação se conta para continuar tal empreendimento? Lyotard [3] muito bem nos lembra de que as ideias de progresso e desenvolvimento supunham, para as sociedades modernas, saber, a cada instante, quem era o sujeito que, em verdade, era vítima da falta de desenvolvimento, o pobre, o excluído, o analfabeto, preocupação que atravessou os séculos XIX e XX. Não obstante as controvérsias surgidas, todas as tendências coincidiam em um ponto: que as iniciativas, os conhecimentos e as instituições só gozavam de certa legitimidade na medida em que contribuiriam à emancipação da humanidade. Nos termos que interessam aqui, isto significa considerar que a produção do conhecimento sociológico estaria assentada na sua capacidade de, igualmente, emancipar sujeitos. Mas, como também lembra Lyotard, a emancipação é uma Ideia, e se define de distintos modos segundo as filosofias da história, os metarrelatos sob os quais tentamos ordenar a série de acontecimentos. 

Parece obviedade afirmar que se o valor da emancipação e a liberação de sujeitos passíveis de tal ação por parte de um pesquisador é dependente da própria forma de definir tal Ideia, ao que se assiste é a uma predisposição da ideologia política e à atitude estética da militância para a final produção do conhecimento sociológico. Por isso, não haveria nada de distração, e sim explícita predisposição. Volta-se, assim, ao problema de origem: em tempos de grandes e aceleradas mudanças sociais e culturais, continuarão as ideologias disciplinando as realidades sociais que vivenciamos? Poderemos ter, no horizonte, um ambiente acadêmico amadurecido na tentativa de separar o ideológico da produção de conhecimento sociológico? Haverá espaço para uma Sociologia mais performática (Lyotard), sem os excessos das certezas sobre como o mundo deve ser? E uma Sociologia que não se distancie da realidade tal qual se apresenta?

Muito resta por discutir a respeito. Muitos episódios fazem parte deste capítulo da Sociologia no país, exigindo mais reflexões. Pelo momento, desideologizar o ambiente acadêmico, e sociologizar a sociologia, eis a mensagem final que gostaria de dar.

Assista à aula magna de José de Souza Martins na Unisinos:

Notas:

[1] Em referência ao próprio título do excelente livro de Michel Maffesoli e Héléne Strohl, “O conformismo dos intelectuais”, 2015, Ed. Sulina, Porto Alegre. 

[2] “O fim do liberalismo identitário”, acesse aqui.

[3] Lyotard, J. F, (2008), La Posmodernidad (Explicada a los niños), Gedisa, Barcelona, p. 91.

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