A esquerda e sua relação com o trabalhador precarizado versus a nova direita popular e militante. Entrevista especial com Henrique Costa

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Por: Patricia Facchin | 21 Novembro 2018

Três semanas depois da eleição de Bolsonaro e de novos parlamentares que chegam ao Congresso com a bandeira da nova direita, “a ficha ainda não caiu para muita gente” e as “jogadas” do presidente eleito, como a nomeação do juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça, têm feito com que a “esquerda se volte para si mesma novamente” no seu discurso sobre as injustiças cometidas com o ex-presidente Lula e o desdobramento da Lava Jato, diz Henrique Costa na entrevista a seguir concedida pessoalmente à IHU On-Line. No atual momento político, sugere, “é extremamente necessário para a esquerda sair desse ativismo que não reflete. (...) O primeiro passo é sair deste automatismo: fazer reunião, falar mal do Moro, fazer ato, fazer reunião, falar mal do Moro e fazer ato. Nas reuniões as pessoas estão cumprindo tarefa atrás de tarefa e não existe discussão política”.

Henrique Costa esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU participando do “4º Ciclo de Estudos A reinvenção da política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas”, onde ministrou a palestra “Juventudes e periferias no cenário pré e pós-eleitoral brasileiro”, um dos temas de sua pesquisa.

Nesta entrevista, ele reflete sobre o significado do antipetismo nas eleições deste ano, que se canalizou numa espécie de “humor nacional”, e sobre os fatores que contribuíram para a eleição de Bolsonaro. Segundo o sociólogo, em vez de compreender as preocupações da população precarizada, a esquerda continua “chamando-a de ignorante. (...) Lembra aquela história de votar com o livro nas eleições? Soa algo como: veja como sou melhor porque eu leio Paulo Freire. Ou seja, é jogar na cara das pessoas o quanto elas estão numa situação inferiorizada. É preciso tratar as pessoas com generosidade e tentar entendê-las”.

Na avaliação dele, além do sentimento de antipetismo e de uma posição conservadora nos costumes, outros fenômenos contribuíram para o crescimento da nova direita no país, como os sentimentos de cansaço e esgotamento gerados pela precarização do trabalho e da crise econômica. “É bastante recorrente o discurso do cansaço e da exaustão. As pessoas não aguentam mais. Essa crise econômica está perdurando; é a pior crise do país e não se vê saída”. 

Henriquue Costa comenta ainda o discurso de pacificação do presidente eleito e adverte que “essa união numa sociedade fraturada como a nossa não tem como acontecer”. O que Bolsonaro quer, frisa, “é colocar as pessoas contra ou a favor do projeto dele. Ele diz que estamos diante de um momento cívico para resgatar o Brasil de 50 anos atrás. Aqueles que são contra esse projeto são contra o Brasil. Ele conseguiu resgatar o discurso nacionalista de um jeito muito bem-sucedido, porque conseguiu mobilizar sentimentos”.


Henrique Costa | Foto: Ricardo Machado/IHU

Henrique Costa é doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo - USP. É autor do livro recém-lançado Entre o lulismo e o ceticismo. Um estudo com bolsistas do Prouni de São Paulo, (São Paulo: Alameda, 2018), baseado na etnografia política com bolsistas do Prouni, tema de sua dissertação de mestrado. Henrique Costa concedeu a entrevista “A esquerda optou pela obsolescência da transformação social e se rendeu à ideia de que as coisas são feitas aqui e agora” à IHU On-Line em 2016, quando a pesquisa estava sendo realizada.

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Que análise está fazendo do cenário pós-eleitoral no país?

Henrique Costa — A ficha ainda não caiu para muita gente. A eleição deixou de ser uma surpresa a partir da metade do primeiro turno, porque ainda durante a campanha de Bolsonaro ela começou a se consolidar com uma base social muito fiel, apegada, aguerrida e militante, a qual demoramos para ver. No segundo turno essa base conseguiu se expandir e começou a ganhar corpo a partir de setores mais moderados, que tinham menos afinidade com Bolsonaro no primeiro momento, e a partir do guarda-chuva do antipetismo.

O antipetismo não é um movimento que é contra o PT necessariamente. É quase que um humor nacional. O sentimento de antipetismo é contra coisas que se acredita que o PT representa. Por exemplo, no Rio de Janeiro, Jean Wyllys é visto como um porta-voz do guarda-chuva antipetista, que por sua vez representa várias bandeiras de esquerda. As pessoas resolveram se revoltar e ser contra essas bandeiras. No segundo turno houve uma pequena agitação na esquerda, uma vontade de fazer virar a eleição. Isso movimentou muitos setores, principalmente a classe média de esquerda, mas foi bastante ilusório.

O pós-eleição dá a impressão de que a ficha não caiu para muita gente. Enquanto isso, Bolsonaro tem feito jogadas muito interessantes e sagazes, pelo menos nesse primeiro momento, e uma delas é a indicação de Sérgio Moro para o Ministério da Justiça. A indicação de Moro fez com que a pauta da esquerda se voltasse para si mesma novamente. Mas é extremamente necessário para a esquerda sair desse ativismo que não reflete. Não sabemos como será o governo Bolsonaro, mas de imediato ele fez a esquerda se voltar para si mesma e se concentrar na questão do Lula e da Lava Jato.

IHU On-Line — Por que avalia que a escolha de Moro foi uma estratégia de Bolsonaro para que a esquerda se voltasse para si mesma e não uma estratégia para legitimar o seu mandato e atender uma demanda social contra a corrupção?

Henrique Costa — As duas coisas não são excludentes. Sérgio Moro tem muita popularidade e tende a ser alguém que traz credibilidade para o governo — algo que é escasso. O novo presidente consegue ter ao seu lado pessoas com quem possa compartilhar responsabilidades. Ele é a antítese da Dilma nesse sentido, pois ela concentrava muito em si mesma e por conta disso acabava sendo o receptáculo de toda a insatisfação. Bolsonaro consegue delegar: Paulo Guedes representa isso na economia e Moro representará isso na Justiça e na área de segurança.

Para além desse lado que é vantajoso para ele, Bolsonaro consegue mobilizar a esquerda por mais um longo período: a esquerda vai passar mais um bom tempo discutindo por que Lula está preso, se foi preso injustamente e como isso tem sido uma conspiração contra o PT. É claro que para alguns setores da esquerda, a esquerda mais institucionalizada, interessa não parar para pensar. Veja que, poucos dias depois do fim das eleições, a esquerda já organizou atos, fez discurso de resistência, porque a ideia é manter um estado de alerta permanente. Quando se está nesse estado psicológico, acaba não se parando para pensar e não se reflete. É por isso que há um ato atrás do outro, reuniões, declarações na imprensa.

Fernando Haddad teve um resultado eleitoral que foi além da expectativa em relação a ele, mas sabemos que boa parte desses votos não é dele, é do Lula. Se Haddad tivesse sido candidato sem a comoção com a prisão do ex-presidente, teria certamente mais dificuldades para ir ao segundo turno.

Muitos estão preocupados não só com o rumo da esquerda, mas com questões materiais: muitas pessoas de esquerda estão com medo de perder o emprego, com medo de serem perseguidas na rua, como os LGBTs, mas, enquanto isso, para as cúpulas partidárias parece que nada mudou. Acredita-se que em 2022 haverá eleições de novo e a estratégia já está toda planejada para isso, passando pela oposição ao governo Bolsonaro. 

IHU On-Line — Haddad, que foi o principal nome do partido nesta eleição, declarou que fará política fora do partido. Como tende a ficar o PT nas eleições de 2022?

Henrique Costa — É o que ele sempre fez e continuará fazendo. Ele nunca aderiu ao partido integralmente, inclusive é muito questionado e criticado por isso. A própria Gleisi [Hoffmann] não gosta dele. Haddad tem uma base social interessante em São Paulo, composta de classes médias e jovens, mas isso é muito insuficiente. De todo modo, ele parece muito satisfeito com essa base e não sei se ele entendeu o que o Mano Brown disse no discurso dele. Do ponto de vista das cúpulas não dá para esperar nada. Como que o PT vai fazer oposição parlamentar? A questão é muito mais dramática: estamos em um momento muito mais dramático de problemas sociais no país.

Rotulação

Agora todos dizem que não dá para chamar a população em geral de fascista, mas até outro dia estavam todos sendo chamados de fascistas, de bolsominions. Esse tipo de afirmação não é profunda, porque desde 2013 até a véspera da eleição, qualquer um que tivesse uma opinião divergente da esquerda era rotulado. Ou é rotulado de antipetista ou de golpista ou, na pior das hipóteses, de fascista.

É muito interessante o que aconteceu no segundo turno das eleições, quando o PT foi buscar o apoio do Fernando Henrique e de todos aqueles que estavam sendo chamados de golpistas até outro dia. Para o PT, assim como para os partidos que estão no entorno do PT, não existe mais visão de longo prazo: os partidos não conseguem entender que amanhã terão que dialogar com as pessoas que estão chamando de golpistas hoje. Joaquim Barbosa, por exemplo, é interessantíssimo, virou uma referência e todos diziam que ele tinha que se manifestar e ele até se manifestou. Mas basta lembrarmos o que aconteceu à época do julgamento do “mensalão”.

IHU On-Line — Por que o discurso petista de rotulação se espraiou para a esquerda como um todo? Isso demonstra que o PT ainda tem um peso significativo no restante da esquerda ou que a esquerda adota os discursos do partido?

Henrique Costa — Ele se espraiou inclusive para partidos que estão próximos ao PT, como o PSOL. O PSOL fez oposição ao PT por muitos anos, mas hoje seus dirigentes dizem que o PSOL amadureceu ao ter dado apoio formal a Haddad no segundo turno. Na verdade esse apoio não é de hoje, ele vem desde o impeachment. É como a história do Jean Wyllys: para quem o odeia no Rio de Janeiro, tanto faz se ele é do PT ou do PSOL. Portanto, primeiro, é preciso romper com essa ideia de que existe tanta diferença entre PT e PSOL. PT, PCdoB, PSOL são muito parecidos aos olhos da população. O PCdoB tem feito, inclusive, um movimento muito curioso de ficar mais parecido com o PSOL. Mas o que é o PCdoB histórico? É aquele partido que sempre foi visto como leninista, autoritário, que negocia com quem for. No movimento estudantil sempre se questionou os métodos do PCdoB e, de repente, um certo setor do PCdoB ganhou espaço. Esse setor inclui a Manuela D’Ávila e o Orlando Silva, de São Paulo. Eles representam uma ala um pouco mais jovem, que conseguiu ganhar espaço dentro do partido contra a casta leninista.

O que o Orlando Silva, a Manuela, a direção da UNE e esse núcleo mais jovem estão fazendo? Tentando transformar o PCdoB numa coisa mais palatável para uma certa vanguarda progressista. É exatamente o que o PSOL faz há muitos anos: o PSOL tem uma base de classe média consolidada no Rio de Janeiro; em São Paulo, no Centro Expandido da Zona Oeste; e também em Porto Alegre e outras grandes cidades. São núcleos muito pequenos de pessoas que têm um ativismo. Não estou questionando a boa vontade das pessoas, mas esse é um setor muito restrito da sociedade, e não sei qual é a intenção do PCdoB em ser mais um PSOL, porque no fim das contas está tudo ficando igual.

O PT ainda tem uma característica de origem que é essa base de trabalhadores, da qual ele não se livra facilmente. Como o PSOL é um partido praticamente sem programa ou tem um programa muito fluido, ele aceita quase qualquer coisa: no PSOL tem desde uma militância mais identitária até o Daciolo; cabe quase tudo no partido. O PCdoB está tentando virar isso, tentando fazer esse movimento para também caber uma parte do ativismo progressista. Isso significa mudar a cara sem mudar nada, porque as decisões continuam sendo das cúpulas. Mas, de outro lado, o PT enfrenta uma reação do antipetismo, da corrupção e da Lava Jato. Nesse sentido o PSOL acaba sendo uma opção mais palatável para quem, no fundo, também é antipetista. 

A retomada de um discurso oitentista

A retomada de um discurso oitentista por parte do PT tem a finalidade de tentar não perder mais espaço, porque espaço na classe trabalhadora o partido já perdeu. O lulismo é outro fenômeno e, como diz [André] Singer, “a fortaleza lulista se mantém”, principalmente no Nordeste e no Norte de Minas — não à toa o PT ganhou as eleições no Nordeste. Mas, fora a herança do lulismo, o que o PT tem para disputar é muito pouco. A base militante do PT hoje é muito diferente, mudou sociologicamente ao longo dos últimos anos, perdeu trabalhadores e ganhou setores mais universitários, intelectualizados, que têm sua importância. No entanto, em um país como o Brasil, que tem tanta gente com trabalhos e educação precários, não basta dizer que os trabalhadores têm que votar no Partido dos Trabalhadores por uma identificação a priori. Isso não cola mais. O partido não se democratiza, não dá espaço, não refaz suas formulações. Há muitos anos Tarso Genro — particularmente não concordo com as ideias dele — diz que é preciso fazer essa mudança e ninguém lá dentro dá ouvidos.

Muitas pessoas saíram do PT ao longo dos últimos 20 anos e isso não aconteceu somente por causa do mensalão. As pessoas saem porque não têm espaço para discutir. E isso não acontece só no PT. Há uma disputa por poder tão aguerrida nos partidos que os militantes não têm espaço, a menos que sirvam para legitimar posições. Então, não dá para ser um intelectual que só serve para legitimar posições de cúpula partidária.

 

IHU On-Line – Há uma crítica de que o PT dividiu o país entre nós e eles e Bolsonaro fez uso desse discurso durante a campanha eleitoral com a proposta de unir e pacificar o país. Essa divisão foi criada pelo PT? Em contrapartida a esse discurso, como avalia o discurso de pacificação do presidente eleito?

Henrique Costa - É impossível unir o país nesse sentido, como não foi possível na época do PT, que usou o discurso do “nós” e “eles” até recentemente. Isso foi um tiro no pé, como alguns petistas admitiram. Haddad nos seus discursos dizia: “eles não querem ver pobre na universidade”. Eles quem? De quem ele estava falando? O PT não pensa no dia de amanhã. Ele quer se manter no poder e a governabilidade é algo que se resolve depois.

Subestimação de problemas reais

Essa união nacional numa sociedade fraturada como a nossa não tem como acontecer. O que Bolsonaro quer é colocar as pessoas contra ou a favor do projeto dele. Ele diz que estamos diante de um momento cívico para resgatar o Brasil de 50 anos atrás. Aqueles que são contra esse projeto, são contra o Brasil. Ele conseguiu resgatar o discurso nacionalista de um jeito muito bem-sucedido, porque conseguiu mobilizar subjetividades. Bolsonaro está acenando para aquele trabalhador branco e empobrecido que acha que está sendo desqualificado porque o negro tem cota e está tendo privilégio. Ele está mobilizando sentimentos recalcados nas pessoas. O pessoal que votou em Bolsonaro acredita que seus valores estão sendo agredidos e isso é uma coisa que a esquerda subestimou muito em sua estratégia política. As pessoas têm valores e isso não vai mudar. 

IHU On-Line – Nesse sentido a eleição de Bolsonaro representa não só um antipetismo, mas também um antiesquerdismo, uma recusa a uma visão de mundo que é manifestada pela guerra cultural?

Henrique Costa – Acho que tem isso, mas não podemos ficar apenas na dimensão da guerra cultural. Precisamos analisar os elementos concretos e por isso trago esses exemplos. O trabalhador pobre e precarizado olha quem está fazendo o discurso pela democracia, quem está participando do #elenão e quem está defendendo a “ideologia de gênero”. Quem está fazendo esses discursos? Para muitos deles, é uma classe universitária bem formada. São pessoas privilegiadas, que estão na ponta de lança do capitalismo globalizado, que têm uma vida estruturada, que viajam para fora do país, falam três línguas.

A guerra cultural nos EUA é assim: os estudantes universitários e a classe média votaram em Hillary Clinton. Os mapas de votação demonstram que grandes cidades como Nova Iorque, Los Angeles e Chicago têm um ponto azul, que é a cor do partido democrático. O entorno dessas cidades, que são os subúrbios, é totalmente vermelho, que é a cor do partido republicano. Está muito claro porque a esquerda tem mais sucesso nas grandes cidades e não consegue penetrar mais nas periferias, porque as pessoas que moram nas grandes cidades são vistas como vencedoras e privilegiadas nessa guerra contemporânea.

IHU On-Line – O que suas pesquisas mais recentes demonstram sobre como votaram os moradores das periferias paulistas nesta eleição? Eles aderiram ao discurso de Bolsonaro?

Henrique Costa - A adesão da periferia a discursos de candidatos como Bolsonaro é histórica. André Singer tem um livro no qual mostra como o eleitorado das periferias aderiu ao Collor nas eleições de 1989. Pesquisas dessa época mostravam que as pessoas mais pobres são contra as greves, são mais a favor da repressão policial etc. Depois houve um realinhamento, quando Lula fez um movimento de aderir à ordem com alguma mudança social, permitido por um pacto conservador e pela explosão das commodities.

Em 2013 as pessoas que entrevistei — e isso consta no meu livro — estavam apoiando as manifestações timidamente. De todos que entrevistei, somente um tinha participado de uma manifestação. Os moradores das periferias não participam desses atos porque sentem um medo físico de serem agredidos, mas também sentem medo de serem vítimas da radicalização, porque eles sabem que a corda estoura do lado mais fraco. Ao mesmo tempo em que as pessoas defendiam a manifestação, pois também achavam que "tem que mudar tudo que está aí", elas mantinham o discurso da ordem - em vários sentidos -, ou seja, manifestavam para ter mais ordem e não para ter uma revolução.

Expectativa por mudança

Tenho conversado com algumas pessoas, fiz uma pesquisa de campo há poucos dias e vejo que há uma expectativa de mudança. O pessoal de esquerda faz piada disso, dizendo que as pessoas querem mudanças, mas não sabem o que querem. Não temos que fazer piada desse anseio; temos que entender por que as pessoas querem uma mudança. As pessoas querem voltar a ter esperança na vida, porque estão sem expectativa. Isso cria um mau humor que é perceptível quando você conversa com um motorista de aplicativo, por exemplo.

Recentemente fiz uma entrevista com um deles, e ele está querendo ir para os EUA. Ele trabalha em dois empregos, tem um emprego formal que paga mal, mas quer ficar nesse emprego para poder pedir o visto. Outro entrevistado disse que quer ir para o interior, porque cansou da cidade, ou seja, é bastante recorrente o discurso do cansaço e da exaustão. As pessoas não aguentam mais. Essa crise econômica está perdurando; é a pior crise do país e não se vê saída. A única percepção correta do Lula nessas eleições é que temos que dar esperança para as pessoas.

Todos os candidatos da esquerda diziam que iriam criar um número X de empregos, mas a questão é: é honesto vender esperança enlatada, dizer coisas que não irão acontecer? Haddad prometeu muitas coisas, como o Fies sem fiador e a redução do preço do gás.

IHU On-Line – Bolsonaro também está fazendo o mesmo discurso ou ele adota outra linha?

Henrique Costa – Ele não é uma saída melhor, mas quantos empregos ele prometeu? Nenhum. Ele promete coisas que pode cumprir: vai aprovar o projeto escola sem partido, vai abrir a caixa-preta do BNDES. Promete questões ligadas à guerra cultural, mas isso não vai mudar a vida de ninguém. Essas pautas simbólicas do bolsonarismo ele vai cumprir, porque o PSL vai ser o maior partido do Congresso e terá apoio de outros partidos.

IHU On-Line – Seu diagnóstico, numa entrevista recente após as eleições, é o de que a direita conquistou corações e mentes nos últimos anos. Essa conquista está ligada a valores ou a quais pautas especificamente?

Henrique Costa – Nós da esquerda e analistas em geral subestimamos a importância de valores como Deus e família. Recentemente li um texto do Mia Couto, no qual ele explica como a diáspora em Moçambique levou a uma desagregação familiar, e como os colapsos econômicos também desagregaram famílias. Nós podemos até questionar valores, mas temos que ser generosos com essas pessoas, porque para muitos, se não for a família, não existe ninguém. Para uma mãe que vê um filho entrar para o crime ou tem uma filha que engravidou precocemente, a família é algo fundamental, principalmente em momentos de crise econômica.

Um perfil do Bolsonaro na Revista Piauí em 2016 mostra que moradores de periferias foram a um evento do PSL e disseram que foram até lá por terem sido acolhidos, porque a esquerda os chama de reacionários, porque a esquerda os ridiculariza, porque o professor do filho fala mal dos valores da família para o filho. Nós continuamos cuspindo na cara dessas pessoas e as chamando de ignorantes. Vejo muitos pesquisadores dizerem que o país não investe em educação e por isso as pessoas não dão valor à democracia. Mas as pessoas não dão valor à democracia porque elas têm outras coisas com as quais se preocupar.

A Rosana Pinheiro-Machado relatou ao El País que um motorista de um aplicativo disse a ela numa das pesquisas feitas em Porto Alegre que quando ele ia buscar pessoas na UFRGS, era sempre para levá-las para bairros ricos e não para a periferia. Isso afeta a percepção das pessoas. É quase uma luta de classes subvertida. É engraçado como as pessoas podem olhar para um rico e dizer que ele pode ser de esquerda porque ele é rico.

Por exemplo, se você só come orgânicos e diz que todo mundo tem que comer orgânicos e acha o fim do mundo as pessoas comerem produtos industrializados, você não entende que as pessoas comem isso porque é o que elas podem pagar ou porque não têm tempo para preparar outro tipo de refeição. Se mulheres trabalhadoras não cozinham para seus filhos, são criticadas. É muito complicado fazer esse tipo de julgamento. A mulher periférica vê esquerda, que está confortável com a sua vida universitária, e não quer saber dela.

Então, junto com o antipetismo está o anti-intelectualismo. Lembra aquela história de votar com o livro nas eleições? Soa algo como: veja como sou melhor porque eu leio Paulo Freire. Ou seja, é jogar na cara das pessoas o quanto elas estão numa situação inferiorizada. É preciso tratar as pessoas com generosidade e tentar entendê-las.

IHU On-Line – Como a ascensão da direita está sendo vista e o que tende a mudar na política depois da eleição da nova direita no Executivo e no Congresso?

Henrique Costa – A vitória da extrema direita é um fenômeno mundial. A tendência é que se leve a sociedade toda para a direita. Se vê aqui e ali um clima de perseguição e, mais grave ainda, há uma autocensura em escolas e editoras. Por exemplo, considerando o projeto escola sem partido, seria preciso censurar muitas coisas que são ditas, como, por exemplo, deixar de falar que houve uma ditadura no país. Já existem pessoas em posições importantes na área da educação se antecipando nesse sentido e dizendo que é melhor não chamar o que aconteceu em 1964 de ditadura, mas de movimento, como o Dias Toffoli fez. Então, na base da sociedade já tem um movimento de “direitização”.

Além disso, a sociedade é e sempre foi conservadora, mas hoje há uma militância para isso. Kim Kataguiri, por exemplo, é muito articulado. A direita, então, não tem mais vergonha de se dizer de direita e isso não é de hoje. Kataguiri falou sobre participação popular na entrevista que concedeu a Mario Sergio Conti. Eu fiquei impressionado com a desenvoltura em se apropria de uma bandeira de esquerda. Como lidamos com isso?

IHU On-Line – Quando Kataguiri fala de participação popular, ele está tentando trazer demandas sociais para a pauta da nova direita e tentando aproximar a sociedade da nova direita?

Henrique Costa – Com certeza, mas ele está usando o discurso da esquerda. O pessoal da direita lê os autores da esquerda e é por isso que eles estão mais preparados. É claro que tem uma dimensão demagoga no discurso deles, mas veja que o PSDB era a direita que conhecíamos até então. Essa era uma direita muito elitizada, mas essa nova direita não é assim; o [Alexandre] Frota, por exemplo, foi para a rua. Haddad, no último dia de campanha, foi para a periferia porque tomou uma dura do Mano Brown. Muita gente com quem tenho conversado está dizendo que hoje as zonas da cidade estão divididas. Lugares que antes eram de esquerda, hoje não são mais. Eles ganharam terreno com militância.

A direita fez o trabalho a partir de baixo e entendeu que a esquerda não tem o monopólio dos pobres e se preocupou apenas com a sua gestão pelas políticas públicas. A questão é: a esquerda hoje tem gente para fazer esse trabalho de formiguinha? As pessoas mais conscientes são aquelas que dizem que precisam sair do Facebook, sair da sua bolha, mas não sabem o que fazer. Elas dizem que o PT e o PSOL fazem sempre a mesma coisa, que precisam ir para a periferia, mas elas não sabem como começar. É difícil chegar na periferia e tentar conversar, porque o PT e os partidos não têm mais militância nessas regiões. O sujeito que era da Associação de Moradores sumiu porque ele virou um burocrata do partido. Como você desloca as pessoas do centro para a periferia para fazer trabalho de base? De início as pessoas serão rechaçadas. É preciso restabelecer a relação de confiança, porque ela foi rompida.

A direita popular

A nova direita se vê como uma direita popular, diferente da direita do PSDB. Os youtubers de direita e o Frota são populares. Então, como a esquerda vai voltar a ser popular se ela se especializou em ser elite cultural e econômica? O primeiro passo é sair deste automatismo: fazer reunião, falar mal do Moro, fazer ato, fazer reunião, falar mal do Moro e fazer ato. Nas reuniões as pessoas estão cumprindo tarefa atrás de tarefa e não existe discussão política. Quando fui do PSOL, havia um grupo que queria pensar um programa a longo prazo, em vão, pois a ideia é justamente não ter programa. Quanto mais programa você tiver, menos pessoas você consegue agregar.

IHU On-Line – Como vê a nomeação do juiz Sério Moro para o Ministério da Justiça e a proposta de trazer o Coaf para o ministério?

Henrique Costa – Foi uma jogada inteligente de curto prazo, porque Bolsonaro tem feito jogadas inteligentes, mas ele não é o gênio da política. Ele tinha a pauta da moralização da corrupção, a pauta de não negociar cargos, de ser contra a partidarização, então ele está tentando cumprir essas promessas. Nesse primeiro momento, Bolsonaro está recusando indicações políticas e está tentando nomear pessoas que dão legitimidade ao governo, quer começar o governo com alta popularidade. Ele ficou um pouco frustrado com o resultado da eleição, porque achava que teria pelo menos 60% dos votos. Se ele tivesse chegado com essa força toda, iria passar o trator. Esse movimento final de virar voto para Haddad ajudou a amenizar o impacto.

Estofo político x fisiologismo

Os primeiros movimentos dele tendem a criar coesão no governo. Ele está fazendo o discurso de união nacional e precisa de gente que dê estofo a isso. Moro é alguém que dá estofo ao governo porque a maioria da população acredita que ele é o homem mais honesto do Brasil e, inclusive, ele já é visto como candidato à presidência em 2022. O primeiro movimento é criar estofo, chegar forte e dizer que o governo será sério. É uma jogada arriscada porque é preciso ver como o fisiologismo irá operar no médio e no longo prazo.

Trazer o Coaf para o Ministério da Justiça significa que Moro poderá investigar todos os políticos sem ter que lidar com governabilidade. Tenho dúvidas de como isso será feito, mas será infernal para os políticos. A situação mudou, o mecanismo de funcionamento parlamentar mudou, e agora tem um cara que vai lidar com a situação de um jeito diferente, ao menos de imediato, porque ele precisa de apoio popular para fazer o que propõe.

IHU On-Line – A tendência é a de que o presidente eleito e o Ministério da Justiça tenham apoio popular ou sejam derrubados pela classe política?

Henrique Costa – A classe política vai tentar mostrar força, não vão abrir mão. Obviamente houve uma renovação grande no Congresso e a própria direita se renovou. A nova direita tem uma pauta ideológica; ela não está no Congresso por fisiologismo. Claro que não há como prever o que vai acontecer, mas essas pessoas estão entrando no Congresso por conta das suas ideias. A população tirou alguns políticos que ora compunham com a Dilma, ora com o Aécio, e os substituiu por pessoas que não comporiam com a Dilma, com o FHC etc. O fisiologismo diminuiu e agora eles vão bancar uma pauta ideológica. O centrão diminuiu e o MDB diminuiu muito também. O PSDB está indo para um lado ideológico da direita. Desse ponto de vista, Bolsonaro tem uma base que não é fisiológica. Claro que para compor maioria constitucional ele vai precisar do fisiologismo. Veja que a Dilma também veio com a ideia da faxina, todo mundo comprou essa ideia no início, mas isso não durou porque ela começou a perder apoio.

Moro dá estofo ao governo e consegue dizer “coloca na cadeia”, mas é difícil saber como será a relação entre eles. Bolsonaro vai demitir Moro? Como faz para demitir alguém como Moro, se for preciso?

IHU On-Line – Que saldo faz da Lava Jato?

Henrique Costa – Na esquerda temos um déficit de debate sobre a Lava Jato, porque a esquerda passou todos esses anos só denunciando a Lava Jato, sem fazer um debate. Entendo que a Lava Jato está dentro de um contexto maior de mudança para uma judicialização da política que não é nova, nem começou na Lava Jato. Ao contrário, a judicialização da política está presente em ONGs, em movimentos sociais, em partidos; tudo é judicializado. Trabalhei tanto em ONGs quanto em partidos, e se o governo fez algo polêmico, essas instituições entram com ação de inconstitucionalidade, fazem moção de repúdio, ou seja, coisas que tendem à judicialização. A judicialização virou o novo normal.

A falência do modelo de gestão lulista é a falência da maneira do PT de fazer política. Isso gerou um vácuo e os promotores e juízes passaram a ocupar esse vácuo. Não existia oposição social até o surgimento da nova direita. Quando só existem grupos que só disputam o poder e ninguém faz política, os juízes ocupam esses vácuos, e eles ocuparam.

Moro era um sujeito que não tinha destaque, e como essa operação caiu no colo dele, ele resolveu dar vazão a suas ambições. Mas juízes sempre conseguiram manipular a legislação. Se existem 200 mil presos provisórios no país, é porque se manipulou a lei. Como pode as pessoas estarem presas sem terem sido julgadas? Eles começaram a aplicar numa dimensão superior o que já aplicavam na base da justiça. Já aplicavam o estado de exceção para a massa marginalizada e começaram a aplicar isso num nível superior, tanto que colocaram empresários e políticos na cadeia.

O PT era governo e estava dentro desse caldo que estava fermentando. O PT deixou isso acontecer, ele comandou a Petrobras com indicação de pessoas que estavam lá para roubar. Por que se coloca alguém como o [Nestor] Cerveró na Petrobras? Ele está lá para isso e foi o PT quem colocou essas pessoas lá ou no mínimo corroborou para que estivessem lá. O PT também não tomou precauções para que a coisa não perdesse a linha. Eles não viram a fragilidade política e não veem isso até hoje. Eles não viram que os juízes tinham adesão social. Então, o PT pecou por deixar a coisa acontecer e por não prever as consequências dessa dilapidação. O PT era o governo e se fosse o PSDB seria a mesma coisa. Esses juízes também são muito ativistas e cada um torce para o seu lado.

IHU On-Line – A partir de agora a militância de direita tende a se consolidar ou a se dissipar?

Henrique Costa – A direita tem um núcleo de militância, sim. Pode não ter 60 milhões de militantes, mas com certeza tem uns 30 milhões que já estão com Bolsonaro há muito tempo, como parte da classe trabalhadora, como os caminhoneiros. Num país em que só se faz transporte por ferrovia, esse é um setor fundamental.

No médio e no longo prazo, se a economia não der resultado – no longo prazo vai afundar –, talvez isso mude. A esquerda estará preparada para esse momento? Se há uma crise e a esquerda não consegue dar direção, a culpa é da esquerda e de mais ninguém. O PT e o PSOL não viram o que estava acontecendo: que o Mamãefalei (canal do You Tube) tinha cinco milhões de seguidores e que o Fernando Holiday seria um dos candidatos mais votados para a Câmara dos Vereadores de São Paulo. Inclusive Ciro Gomes fez um comentário racista com ele. Discordo do que o Holiday fala, mas temos que entender o que ele diz, porque isso representou algo para os que votaram nele. Temos que entender de onde veio essa onda liberal de pessoas que acham que tem que privatizar tudo mesmo.

IHU On-Line – Num discurso similar ao da privatização, a equipe de Bolsonaro mencionou durante a campanha eleitoral a possibilidade de os estudantes de universidades públicas pagarem pelo estudo. Como essa discussão sobre o ensino público nas universidades aparece nas suas pesquisas com jovens de periferias?

Henrique Costa – Essa pauta vai ter adesão porque passamos anos e anos falando de educação pública de qualidade para todos e todas, mas as pessoas não esperam mais isso. Muitos estudantes mais jovens — comento isso no meu livro — não querem fazer um cursinho para entrar na universidade pública. Lhes parece um esforço desnecessário, até incompreensível. Além disso, têm a imagem de que nas universidades públicas fazem greves, alguns professores gostam de fazer pesquisa, mas não gostam de dar aula, então esse discurso da escola pública de qualidade já não tem tanta adesão em uma sociedade que assimilou a lógica da iniciativa privada.

IHU On-Line – Que temas precisam ser revistos no discurso da esquerda daqui para frente, na sua avaliação?

Henrique Costa – Entender o que é o novo mundo do trabalho, que não é tão novo assim, porque a reestruturação do mercado de trabalho já está acontecendo desde os anos 70 na Europa. É importante ver que tipo de trabalhador essa reestruturação gerou. Quando falo em trabalhador, estou falando em um sentido lato sensu, não do operário, mas os trabalhadores que foram criados pela reestruturação produtiva.

Temos que entender como é ser um trabalhador desestimulado, como é ser um trabalhador que não se vê como trabalhador, mas como empresário. Não estou desprezando as outras bandeiras, como gênero, racismo, mas essas questões estão atravessadas. Já entrevistei meninos LGBTs que trabalham em empresas de telemarketing e que estão cansados do trabalho; eles querem ser empresários de si. Esse é um sentimento muito presente tanto na classe média como entre as pessoas de baixa renda.

Se as pessoas não estão mais se entendendo dessa maneira - como trabalhadores -, a primeira coisa que a esquerda tem que fazer é tentar entendê-las. A esquerda tem dificuldade nisso. A direita nos imitou e agora seremos obrigados a imitá-la. Se a direita estava fazendo trabalho de base desde 2013, nós estávamos fazendo o que nesse tempo? Nada. Então agora teremos que correr atrás para entender o que é o novo mundo do trabalho.

Assista à conferência Juventudes e periferias no cenário pré e pós-eleitoral brasileiro:

 

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A esquerda e sua relação com o trabalhador precarizado versus a nova direita popular e militante. Entrevista especial com Henrique Costa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU