Meu diálogo incessante com o invisível

15 Junho 2021

 

No teatro de uma vida após a morte Paolo Ricca - teólogo, ministro da Igreja valdense e curador das obras de Lutero - representa a dúvida construtiva. Sua força reside em não ter certezas. Ele vive em Roma e não mudou muito desde a última vez que nos encontramos. Alguns anos se passaram, ele está um pouco mais velho e trabalhou bastante para reunir os escritos de Lutero sobre a revolta dos camponeses.

 

O intransigente Martinho era extremamente duro com aquela classe de pobres que, no início do século XVI, os príncipes expropriaram de quase todos os seus bens. Li alguns dos livros recentes de Ricca: I Sermoni (publicados pela EDB), as pregações, algumas muito belas, como aquela dedicada a Jó e Domande di vita (publicado pela Claudiana), um texto em que aborda questões teológicas sob forma de diálogo.

 

Na mesa que separa as duas poltronas em que estamos sentados, está um livro sobre Dietrich Bonhoeffer, o teólogo torturado e fuzilado pelos nazistas. O assunto voltará na nossa conversa.

 

A entrevista com Paolo Ricca é de Antonio Gnoli, publicada por Robinson - La Repubblica, 16-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Diante de um teólogo, é certo começar com uma pergunta sobre Deus.

 

O risco é que a imponência do assunto esbarre na escassez da resposta.

 

Fiquei impressionado com um comentário sobre Jó, que você faz sobre uma das páginas mais escuras da Bíblia, onde se pode ver a obstinação, até mesmo a maldade, do Senhor para com o infeliz Jó.

 

Lembro-me dessas passagens, impregnadas de autêntica dramaticidade. Foram escritas há mais de dois mil anos e parecem um manifesto da Europa moderna e secularizada. Como homem justo e puro, se rebela contra as injustiças e sofrimentos que tem de padecer sem que Deus levante um dedo para ajudá-lo. Ele está convencido de que Deus o abandonou. Mas não abandona Deus. Este é o ponto.

 

É a fé, apesar de tudo?

 

Claro, mas não uma fé cega e insípida. é como Jesus a quem Deus abandona na cruz, mas Jesus não abandona a Deus. e Jesus são como o povo judeu que não abandonou a Deus nem mesmo depois da tragédia de Auschwitz. Aqui está o milagre, apesar de tudo.

 

Algo que a Europa, você nos lembra, perdeu.

 

Depois de ter sido a pátria do cristianismo durante séculos, a Europa perdeu a força para se indignar, para se levantar contra os abusos, as prepotências, as violências e as injustiças. Perdeu a decisão de de se rebelar para não se resignar ao conformismo e ao ceticismo. Ninguém melhor do que Kierkegaard foi capaz de exprimir esta condição, quando em Temor e tremor, falando de Jó, escreve: “Preciso de ti, preciso de um homem que saiba reclamar a Deus.

 

Você é um valdense que sempre aceitou a confrontação com outras confissões.

 

As distinções não podem nos fazer esquecer que estamos todos no mesmo barco que está afundando. Dietrich Bonhoeffer previu, com bastante antecedência, o fim das religiões. A torre do sino e a igreja foram suplantadas pela Internet e pelo banco. A secularização será cada vez mais a figura do futuro. A questão que eu proporia é como poderemos conviver com essa derrota.

 

Você chama de derrota o que para os outros é apenas progresso.

 

Eu sei que existem outras versões da vida. Ainda tenho a fidelidade pela que eu vivi.

 

Por que você escolheu a Igreja Valdense?

 

Talvez porque todo o meu pequeno mundo girasse em torno dessa experiência. Ficava fascinado pela história do movimento valdense, achava as perseguições sofridas aberrantes. E, além disso, nasci em Torre Pellice, onde os valdenses estabeleceram seu centro. Minha família está lá desde 1600. Meu avô, um simples funcionário de hotel, fez meu pai estudar como pastor e eu segui esse caminho.

 

Como alguém se torna pastor?

 

Diploma de ensino médio clássico, quatro anos de estudos teológicos que fiz parcialmente em Florença e Roma e depois um período no exterior, onde fiz o doutorado com Oscar Cullmann e acompanhei as aulas de Karl Barth. Depois de terminar meus estudos, fui ordenado pastor em uma cerimônia pública que ocorre durante o culto inaugural do sínodo que reúne as várias igrejas valdenses todos os anos. A assembleia impõe suas mãos sobre o futuro pastor. Desempenhei a minha prática durante alguns anos na Alta Sabina, perto de Rieti, e depois em Turim.

 

Que lembrança você tem das palestras de Karl Barth, considerado um dos grandes teólogos do século XX?

 

Ele podia ser um homem espirituoso, mas também era muito rigoroso. Além de palestras universitárias, ele realizava três seminários em Basel: um em alemão e os outros dois em francês e inglês. Em alguns casos, aconteciam no saguão de um restaurante e, alternativamente, ele hospedava uma dezena de alunos em sua casa, para ler a Dogmática. Lembro-me de um estudante alemão que fez alguns comentários impertinentes e ele lhe disse muito bruscamente: tenha cuidado, Deus não é um brinquedo com o qual você possa se divertir.

 

No entanto, mudou várias vezes de opinião sobre Deus.

 

 No primeiro Barth, Deus era o" totalmente outro ", no final da segunda guerra repensou-o aproximando-o do humano, para depois chegar à conclusão de que Deus é como nós. Toda a Dogmática, em suas oito-nove mil páginas, descreve essa passagem fundamental. O Barth dos anos 1930 combatia o Deus nazista do Gott mit uns (Deus conosco, ndr): Deus não poderia estar com eles.

 

Como os nazistas se apropriaram de Deus?

 

Puderam contar com a timidez da Igreja alemã e com a conivência doutrinal de uma parte importante da teologia, que releu as ordens naturais de Lutero segundo a doutrina de Hitler.

 

Explique-se melhor.

 

Para Lutero, Deus baseia o mundo principalmente em três instituições: o Estado, a Igreja e a Família. O nazismo estendeu esses conceitos argumentando que entre as ordens da criação deveriam ser incluídos também o povo, a nação e a raça. Para a transição para o infame Blut und Boden, ou "sangue e terra", levou só instante.

 

Deus então se tornou o instrumento da doutrina racista, segundo a qual, se as raças dependem de sua vontade, então também pode estabelecer que existe uma raça superior e uma inferior. Karl Barth, junto com Paul Tillich, foi um dos poucos a se opor a esse projeto. Tillich foi mandado embora da universidade e Barth expulso.

 

A oposição de Barth foi apenas teológica?

 

De certa forma também foi política. Por uma década, ele foi pastor do condado operário da Suíça alemã de Safenwil, em Aargau. Em meados da década de 1910, ingressou no Partido Socialista, causando um grande escândalo na comunidade protestante. Nos mesmos anos escreveu o famoso comentário à Epístola aos Romanos, um texto de combate concebido mais do púlpito do que da universidade. O comentário, entre outras coisas, era também uma resposta àquela teologia que havia louvado e santificado a guerra de 1915-18.

 

Barth não foi o único a comentar a "Epístola aos Romanos". Por que o texto de Paulo é tão importante?

 

É o principal documento da fé cristã, que fala da morte entrando na vida do homem, da lei e depois da graça. Contém todos os grandes temas da revolução cristã. Depois dos Evangelhos, é o texto mais importante que temos. Ainda que Lutero parecesse preferir a Epístola de Paulo aos Gálatas, uma espécie de resumo da Epístola aos Romanos, mas onde se dizia mais claramente que a fé está ligada diretamente a Cristo, sem a intermediação do Papa ou da Igreja.

 

Você não se sente um pouco deslocado?

 

O que você quer dizer?

 

Antes você falava de derrota. Se os textos que você leu e aprofundou servissem, no final, apenas para fornecer uma bela ilusão cultural ou um álibi, como você se sentiria?

 

Posso dizer que cada livro que li e estudei teve um impacto na minha formação, ajudando-me a ver o mundo de uma forma não previsível. Mesmo na derrota, o bom cristão sabe abrir uma passagem para a palavra fé. Era o que acreditava Bonhoeffer, por exemplo, quando interpretou o Cristianismo como ser para os outros.

 

No tempo da secularização, ele viu a pregação acontecendo nos lugares menos previsíveis, em todos os lugares, mas não necessariamente na igreja. Ele foi enforcado pelos nazistas, culpados de conspirar contra Hitler, em 9 de abril de 1945. A guerra já estava perdida. Mas a ordem para executá-lo veio do próprio Hitler. Era uma segunda-feira. No dia anterior, na estrada Flossenbürg, ele praticou o culto com 4 ou 5 outros prisioneiros. Naquela meditação, disse que o fim a que estava destinado era para ele o início da vida.

 

O que é a ressurreição para você?

 

É o fundamento da vida. Um evento que acontece antes da vida.

 

Parece um paradoxo.

 

Eu sei, e também sei que uma vida inteira não é suficiente para aprender que é o invisível que dá fundamento ao visível e não vice-versa.

 

O que exatamente deveríamos aprender?

 

Para ver o que não se vê. Não é um truque de mágica ou de palavras o que eu digo. Mas uma forma de estar no mundo. Fala-se muito da verdade. Mas alguém já a viu? Eu não. Como nunca vi a Liberdade, o Amor, a Ressurreição, justamente. Mas vejo seus sinais e os frutos.

 

A ressurreição é em nome de um Juízo e uma vida após a morte a que talvez estejamos destinados. Você acredita nisso?

 

Existem várias teorias sobre o que acontece quando morremos, começando pela que nos consideraria envolvidos em um longo sono, à espera do despertar. Sinceramente, não creio que haja uma dimensão que encontraremos além de Deus, Ele é o além e não há um sono do qual alguém nos despertará, como acreditava Lutero. Karl Barth disse que a vida é uma ocasião única, precisamente porque não é infinita, não é eterna.

 

Portanto, não deve ser desperdiçada. A vida eterna é algo que não podemos imaginar, só podemos afirmar. Quanto à vida após a morte que prefiguramos em nossas cabeças, ela vem da tradição cristã. Foi Dante quem em grande parte inventou o além vida. Nesse sentido, a Bíblia não oferece muitas ideias.

 

Quando você diz que Deus é o além, o que quer dizer?

 

Na Torá está escrito que o povo de Deus não pronuncia o seu nome. O que é surpreendente.

 

Por quê?

 

Por um motivo que pode surpreender: o conhece bem demais para poder dizê-lo. Deus está além das palavras. Etty Hillesum - a judia que morreu em Auschwitz - conhecia Deus melhor do que os cristãos e, por isso, não podia dizer seu nome. Ela só poderia desenterrá-lo dos horríveis escombros em que ambos tinham acabado. Deus não podia ajudá-la, mas ela podia ajudar Deus. Isso era conhecimento. Lembro-me das minhas antigas aulas de hebraico com o professor Alberto Piattelli, quando nas letras que compunham o nome aparecia a combinação do verbo ser como passado, presente e futuro.

 

Mas, na gramática hebraica, não se pode dizer simultaneamente: fui, sou, serei. Deus é precisamente o impronunciável. O ser Deus por natureza é inefável, indizível. Quando Lutero definiu a Igreja como uma assembleia de corações, ele proferiu uma verdade que existe e que ninguém vê.

 

Paradoxalmente, tal afirmação poderia ser estendida a esta época da pandemia.

 

Que é um tempo de sofrimento. Mas o vírus que nos agrediu tem uma ‘invisibilidade’ diferente daquela de que falamos até agora. A ciência diz, ou especula, como chegou até nós. São seus sinais que nos falam sobre ele. Os rastros que ele deixou e dos quais aos poucos estamos nos recuperando. Essa também é uma forma de ressuscitar. Mas eu teria o cuidado de não confundir a fé com o contágio.

 

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