Morreu Hans Küng, célebre e polêmico teólogo suíço

Foto: UNED | Universidad Nacional de Educación a Distancia

07 Abril 2021

 

O padre e teólogo católico Hans Küng, o renomado estudioso e prolífico escritor que convivia com o mal de Parkinson, a degeneração macular e a artrite desde 2013, morreu nessa terça-feira, 6 de abril, em sua casa em Tübingen, Alemanha. Ele tinha 93 anos.

 

A reportagem é de Patricia Lefevere, publicada por National Catholic Reporter, 06-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Poucos homens em toda a cristandade tiveram tanto a dizer ou tiveram a sua obra lida por tantos cristãos – e outros – quanto Küng, o célebre e controverso teólogo suíço e padre católico.

Abra uma revista ou ligue a televisão na Europa, e é provável que você veja o rosto e escute a voz em tom germânico do famoso professor suíço que viveu, ensinou e proferiu conferências por mais de 40 anos na Alemanha.

Muitas vezes, ele era fotografado na companhia de chefes de Estado – Tony Blair da Grã-Bretanha, Mikhail Gorbachev da União Soviética, Helmut Schmidt da Alemanha – assim como de líderes religiosos mundiais.

Ele frequentemente participava de diálogos públicos com representantes acadêmicos do budismo, das religiões chinesas, do hinduísmo, do islamismo e do judaísmo. Ele também se encontrou com o secretário-geral da ONU Kofi Annan em sua busca por uma ética global como um caminho para a paz internacional no século XXI.

Dezenas de milhares de seus leitores que vivem além das fronteiras da Europa, na América, Austrália, Ásia e África, também o ouviram ou pelo menos leram um ou mais de seus livros. Ele foi o principal teólogo católico a falar na China sobre religião e ciência, o primeiro teólogo a discursar para um grupo de astrofísicos e, mais tarde, no Congresso Europeu de Radiologia sobre o tema de uma medicina mais humana.

As razões para a sua popularidade eram onipresentes: legibilidade, clareza, erudição, honestidade, destemor. Ele era inteligente, ocasionalmente profundo. Alguém menos dotado intelectualmente podia entender seus argumentos e ser atraído pelos seus textos e pelas suas palestras exatamente por esse motivo.

Ele disse e escreveu aquilo que achava que precisava ser transmitido naquela que ele considerava como a sua luta implacável pela liberdade intelectual e a sua busca apaixonada pela verdade.

Em seu livro mais popular – “Christ sein” (“Ser cristão”, Ed. Vozes, 1979) – que rapidamente vendeu mais de 200.000 cópias em alemão quando foi lançado em 1974, Küng disse que investigou questões teológicas que preocupam qualquer pessoa instruída.

Ele escreveu para aqueles “que creem, mas se sentem inseguros”, para aqueles que costumavam crer “mas não estão satisfeitos com a sua descrença” e para aqueles que estão fora da Igreja e não estão dispostos a abordar “as questões fundamentais da existência humana com meros sentimentos, preconceitos pessoais e explicações aparentemente plausíveis”.

 

Bíblia e jornal

 

Para um público tão amplo, Küng mantinha as Escrituras e o jornal diário à mão. A partir dos 10 anos de idade, quando os nazistas invadiram a Áustria, vizinha da Suíça, dando início à Segunda Guerra Mundial, o jovem Hans – o mais velho de sete irmãos – começou a ler o jornal diário. Era uma disciplina que ele manteve até a sua morte, apesar do declínio da visão. Manter-se informado sobre os assuntos religiosos e mundiais o tornava “um realista, e não um romântico”, disse ele a esta repórter em vários de nossos encontros.

Muitas vezes polêmico, o nome “Küng” trazia a sua própria marca de adjetivos na Igreja conservadora e nas publicações políticas conservadoras: ele era o dissidente Küng, a bête noire, o desobediente, o herege, o apóstata, o errante, o protestante. Em suma, “l’enfant terrible da Igreja Católica”, gritavam muitas manchetes.

Seu livro de 1971 “Infallible? An Inquiry” [Infalível? Uma investigação], causou alvoroço em todo o mundo católico, contestando a declaração de infalibilidade papal promulgada em 1870 no Concílio Vaticano I. Küng investigou a base teológica da declaração e descobriu que a reivindicação da autoridade papal suprema era um impasse para a unidade com as outras Igrejas cristãs.

O livro foi publicado apenas três anos depois que o Vaticano pedira a Küng que respondesse a acusações contra seu livro anterior, “Igreja Católica” (Ed. Objetiva, 2002). Autoridades católicas contestaram a compreensão do teólogo sobre a autoridade papal e solicitaram que ele comparecesse em Roma para responder às acusações.

Küng manteve a sua posição. Ele não se retrataria. Ele queria ver o arquivo que o Vaticano acumulou sobre ele. Ele exigiu uma lista por escrito das questões a respeito do seu livro, assim como os nomes daqueles que examinaram a obra. Ele pediu para falar em alemão durante qualquer reunião com as autoridades vaticanas e ainda solicitou que o Vaticano pagasse as suas despesas de viagem para Roma ou então realizasse as audiências na casa de Küng em Tübingen.

Além de abordar a infalibilidade, Küng também criticou a lei do celibato, favorecendo, ao invés disso, um clero e um diaconato casados, ambos abertos tanto a mulheres quanto a homens. Ele defendeu que o celibato compulsório era a principal razão para a escassez de padres e acusou a hierarquia de preferir negar aos fiéis uma celebração da Eucaristia perto de casa para manter o celibato obrigatório. A lei contradizia o Evangelho e a tradição católica antiga, e deveria ser abolida, escreveu ele.

Ele criticou a proibição das dispensas para padres que desejassem deixar o sacerdócio – introduzida pelo Papa João Paulo II após a sua eleição como pontífice em 1978 – por considerá-la uma violação dos direitos humanos.

Sua abordagem histórico-crítica à pesquisa o levou a concluir que as primeiras comunidades cristãs em Corinto e em outros lugares tinham membros leigos que presidiam os serviços eucarísticos na ausência de um padre.

Ele discordou da proibição da Igreja à contracepção artificial e as suas inibições em questões de sexualidade humana. Ele até teve a ousadia de criticar o primeiro ano do pontificado de João Paulo II. Em um artigo publicado em oito jornais da Europa, das Américas e da Austrália, Küng questionou se o novo papa estava aberto ao mundo, se era um líder espiritual, um verdadeiro pastor, um colega bispo colegial, um mediador ecumênico ou até mesmo um verdadeiro cristão.

Küng reconheceu que os católicos tradicionais considerariam que fazer tais perguntas ao papa popular era “mais imperdoável do que a blasfêmia”. Mas ele disse que suas críticas surgiram do “compromisso leal” com a Igreja e sentiu que “o papa tem o direito de receber uma resposta da sua própria Igreja em solidariedade crítica”.

 

Revogação da licença para lecionar

 

Os redatores de manchetes e jornalistas em geral tiveram um dia cheio em 18 de dezembro de 1979, quando o Vaticano puxou o tapete da carreira de professor de Küng, revogando sua missio canonica, ou licença para lecionar como teólogo católico na Universidade de Tübingen, onde ele estava desde 1960. Tal licença é exigida para lecionar como teólogo católico em uma instituição reconhecida pelo pontífice, como a escola de teologia católica de Tübingen.

A secular universidade alemã tem há muito tempo escolas separadas de teologia católica e protestante. A sua escola católica, na qual Küng atuou como professor de teologia dogmática de 1963 a 1979, é renomada pela sua interpretação moderna do Novo Testamento.

Em “Disputed Truth” [Verdade controversa], o segundo livro dos seus três volumes de memórias, Küng gastou 80 páginas revisando as acusações contra ele – as reuniões secretas de bispos alemães e autoridades vaticanas fora da Alemanha, a traição de sete de seus 11 colegas de Tübingen e quase um colapso físico e emocional causado pela exaustão dos seus esforços para responder às acusações do Vaticano, enquanto preservava seu posto em uma universidade estatal.

No fim, Küng manteve seu cargo de professor, não no corpo docente católico, mas no Instituto de Pesquisa Ecumênica, um órgão secular da universidade, que ele havia fundado e dirigido desde o início dos anos 1960. Ele também continuou sendo “um padre em boa situação”, o que irritou aqueles que buscavam a sua excomunhão. Apesar de sua franqueza, Roma reconheceu a sua dedicação de uma vida inteira à Igreja e permitiu que Küng pregasse e publicasse até que a doença e a deficiência o desaceleraram em 2013.

 

Küng e Ratzinger

 

Küng mostrou uma certa consternação em 1979, quando soube do envolvimento do cardeal Joseph Ratzinger na remoção de sua licença de ensino. Como decano da teologia em Tübingen no início dos anos 1960, Küng havia oferecido – e Ratzinger aceitou – uma cátedra em Tübingen. Mas, depois das revoltas estudantis na Alemanha em 1968, Ratzinger deixou a academia, voltando para a sua cidade natal, Munique, onde se tornou arcebispo e depois cardeal. Mais tarde, ele chefiou a Congregação para a Doutrina da Fé durante 25 anos, sob o comando de João Paulo II.

Para surpresa de muitos, Küng solicitou um encontro com Ratzinger logo depois que este foi eleito papa em abril de 2005. Os dois padres mantiveram o respeito um pelo outro e uma correspondência limitada por mais de 45 anos. Ratzinger, agora Papa Emérito Bento XVI, concordou rapidamente em se encontrar com Küng. Os dois conversaram por quatro horas e jantaram na residência de verão de Bento XVI em Castel Gandolfo.

Um comunicado emitido pelo Vaticano dois dias após o encontro no dia 24 de setembro de 2005 indicou que o encontro foi amigável e que Bento XVI elogiou Küng pelos seus esforços para construir um código de ética global que consagrasse os valores que eram mantidos em comum entre as religiões e reconhecido por líderes seculares também.

Os dois não abordaram quaisquer questões doutrinais. Küng também não pediu que sua licença de ensino fosse restaurada. Em vez disso, eles encontraram um consenso sobre questões relativas à ciência e à religião, fé e à razão, e a questões sociais relacionadas com a ética e a construção da paz.

Embora essa noite compartilhada por eles fosse apenas uma centelha de tempo em comparação com o quarto de século em que Küng estivera em um estado de relações tensas com o Vaticano, o teólogo viu isso como um sinal de abertura e até mesmo um prenúncio de esperança para aqueles que compartilhavam a sua visão crítica da Igreja em relação àquilo que ele frequentemente chamava de “procedimentos inquisitoriais” contra ele e outros dissidentes.

Durante anos, Küng pediu aos padres e bispos que mostrassem alguma coragem contra aquilo que ele chamava de sistema repressivo romano, que demandava obediência acima da razão e conformidade acima da liberdade de consciência.

O que foi, de fato, que deu a esse pensador renegado uma confiança tão duradoura em meio a décadas de luta?

Uma indicação é fornecida em “Ser cristão”, que teve muitas edições e foi traduzido para dezenas de línguas. Küng o chamava de “uma pequena Summa”, na qual trabalhou por sete anos. Suas 720 páginas investigam se a fé cristã podia continuar enfrentando os desafios do mundo moderno e se a mensagem cristã era adequada para os homens e as mulheres de hoje. Küng disse que escreveu o livro porque não sabia o que era especificamente cristão e precisava descobrir.

No início da obra, Küng citou o físico e filósofo alemão Carl Friedrich von Weizsäcker, que disse: “Há uma coisa que eu gostaria de dizer aos teólogos: algo que eles sabem e que outros deveriam saber. Eles detêm a única verdade que vai mais fundo do que a verdade da ciência, sobre a qual repousa a era atômica. Eles têm um conhecimento da natureza do ser humano que está mais profundamente enraizado do que a racionalidade dos tempos modernos. Inevitavelmente sempre chega o momento em que o nosso planejamento falha e perguntamos e perguntaremos acerca da verdade”.

A busca da verdade foi a tarefa escolhida para a qual Küng ofereceu a sua investigação insaciável e o seu intelecto inextinguível.

“Eu tenho uma curiosidade intelectual infinita”, disse ele a esta jornalista durante o primeiro de muitos encontros ao longo de quase 40 anos. “Eu nunca estou satisfeito. Devo sempre saber mais sobre tudo, para detectar exatamente quais são os problemas. Eu não tenho muitos preconceitos antes de começar, pois não temo o resultado.”

“A cristologia apresenta muitos problemas, e por isso as pessoas dizem: ‘É perigoso tocar na questão do nascimento virginal, da pré-existência de Cristo, da Trindade’. Mas eu acho que a verdade não pode fazer mal – nem a mim pessoalmente nem à Igreja”, disse ele ao NCR.

A chance de refletir sobre Deus dava a Küng um enorme prazer e satisfação, relatou ele em “My Struggle for Freedom” [Minha luta pela liberdade], o primeiro volume de suas memórias.

 

“Eu sei nadar”

 

Quando jovem, Küng se lembra de ter voltado para casa “radiante” quando se deu conta de que “eu posso nadar (...) a água me sustenta”. Para ele, essa experiência ilustrava “a aventura da fé, que não pode ser provada teoricamente por um curso em ‘terra firme’, mas simplesmente deve ser tentada: uma aventura bastante racional, embora a racionalidade só surja no ato”, ele escreveu em seu primeiro livro de memórias.

Amante da natureza ao longo da vida, Küng passou muito tempo nos seus arredores – nadando quase todos os dias de sua vida e esquiando até os 80 anos durante as breves férias na Suíça. Esquiar o ajudava, pelo menos por algumas horas, a “arejar o meu cérebro e a esquecer todos os estudos, muitas vezes desafiando o frio, o vento, a neve e a tempestade”, afirmou ele em suas memórias.

Quase todos os seus livros foram compostos à mão enquanto Küng se sentava em seu espaçoso terraço em Tübingen, perto das margens do Rio Neckar, ou em sua casa junto ao Lago Lucerna, em Sursee, sua cidade natal na Suíça. O sol e o ar fresco permeiam seus textos tanto quanto a pesquisa, a história, os estudos exaustivos e as análises e soluções para problemas teológicos e filosóficos específicos.

Os elementos inclementes aos quais Küng aludia enquanto estava nas encostas dos Alpes tornaram-se o material de crítica da Congregação para a Doutrina da Fé. De fato, o Santo Ofício – como ela era conhecida nos tempos anteriores ao Vaticano II – abriu um arquivo secreto (o infame 399/57i) sobre Küng logo após ele ter escrito o seu primeiro livro, fruto da sua tese de doutorado, “Justification” [Justificação], em 1957.

Nele, Küng previu que era possível um acordo de princípio entre a teologia católica conforme estabelecida no Concílio de Trento do século XVI e a teologia da Reforma do século XX como evidenciada na “Dogmática Eclesiástica” (Fonte Editorial, 2019) do teólogo luterano Karl Barth.

Embora tivesse apenas 28 anos de idade quando publicou essa conclusão, essa seria a primeira de muitas investigações ecumênicas e inter-religiosas que solidificaram as suas próprias raízes em uma fé viva em Cristo, que, segundo ele, perdurou durante toda a sua carreira e o ajudou a estar sempre aberto a outras fés. De fato, Küng sustentou por muito tempo que a firmeza na própria fé e a capacidade de diálogo com os de outra crença são virtudes complementares.

Quatro décadas depois de escrever “Justificação”, Küng publicou livros sobre o cristianismo, o judaísmo, o islamismo e as religiões chinesas. No decorrer de sua pesquisa, ele se encontrou frequentemente com líderes religiosos na Ásia, África e Oriente Médio. Nesses encontros, ele disse que inicialmente tinha mais questões de fé (dogmática) do que de ética (moralidade). Mas, com o passar do tempo, ele percebeu que, apesar das diferenças dogmáticas entre as religiões, já havia características comuns decisivas na ética que poderiam ser o fundamento para uma ética global.

 

Ética mundial

 

Assim, no início dos anos 1990, Küng estava bem preparado para assumir a tarefa de preparar uma Declaração para uma Ética Global para o Parlamento das Religiões Mundiais que se reuniu em Chicago em 1993. A parte mais referenciada da declaração era a de que não há paz entre as nações sem paz entre as religiões.

Não surpreende que o menino que descobriu que sabia nadar se tornou o homem que reconheceu os três grandes sistemas fluviais das grandes religiões da China, da Índia e do Oriente Próximo semita, os quais ele conheceu ao preparar uma viagem de muitas semanas para a África subsaariana, em 1986, e enquanto trabalhava em uma série de televisão alemã na Austrália em 1998.

Nada disso teria acontecido se a sua licença de ensino não tivesse sido retirada em 1979, admitiu ele mais tarde.

Isso também não teria ocorrido se ele não tivesse sido ordenado padre católico. Esse evento ocorreu em 1954 em Roma. Küng celebrou sua primeira missa na Basílica de São Pedro e pregou para a Guarda Suíça, alguns dos quais ele conhecia bem depois de sete anos estudando filosofia e teologia em latim na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.

Ele completou mais três anos de estudo em francês para o seu doutorado na Sorbonne e no Institut Catholique de Paris, onde escreveu a sua tese sobre a “Justificação”.

Küng voltou para a Suíça, atuando dois anos como padre assistente em Lucerna. Barth o convidou para uma conferência em Basel sobre o tema: “A Igreja sempre precisa de reforma”. Alguns na plateia acharam seu entusiasmo pela renovação excessivamente otimista. No entanto, no dia 25 de janeiro de 1959 – a semana seguinte à sua palestra – o Papa João XXIII convocou o Concílio Vaticano II. E Küng, ao preparar a sua conferência sobre a reforma do dia 19 de janeiro, já havia reunido extensas notas para um livro justamente sobre tal empreendimento.

Esse livro, “The Council, Reform and Reunion” [O Concílio, Reforma e Reunião], tornou-se programático para uma série de documentos do Vaticano II, incluindo aqueles sobre o estudo das Escrituras, o culto, a liturgia em língua vernácula, o diálogo com outras culturas e crenças, a reforma do papado, a liberdade religiosa e a abolição do Índice de Livros Proibidos.

O observador vaticano e ex-correspondente do NCR em Roma Peter Hebblethwaite aventurou-se a afirmar que nenhum teólogo jamais exerceria tanta influência na pauta de um concílio quanto Küng. O livro “O Concílio, Reforma e Reunião” não foi apenas um best-seller na Alemanha, na Holanda, na França e no mundo de língua inglesa, mas também recebeu a aprovação do cardeal Franz König, de Viena, que ditou seu imprimatur a Küng a partir do seu leito de hospital após sofrer graves ferimentos em um acidente de carro.

Conselheiro do Concílio

Pouco depois do lançamento do livro, o bispo de Küng, Carl Joseph Leiprecht, de Rottenburg, Alemanha, o convidou para ser seu perito pessoal, ou especialista, no Concílio vindouro. Küng não estava muito entusiasmado com um retorno a Roma. Mas vários colegas o persuadiram de que o Concílio prometia ser o evento eclesial do século e de que Küng não ousaria perdê-lo.

“Como eu poderia suspeitar que esse ‘sim’ determinaria o meu destino por mais de uma década?”, anotou ele em suas memórias.

Aos 34 anos de idade, Küng era o perito mais jovem do Concílio, logo acompanhado pelos dominicanos Edward Schillebeeckx, da Bélgica, e Yves Congar, da França; pelos padres alemães Ratzinger e Karl Rahner, além dos clérigos estadunidenses John Courtney Murray, George Higgins, John Quinn, Gustave Weigel e Vincent Yzermans.

Não eram apenas os bispos progressistas que procuravam a perspicácia e as habilidades de escrita de Küng, mas a sua fluência em francês, italiano, holandês, alemão, inglês e latim também o tornaram uma referência para lidar com a imprensa.

Ele era rápido em publicar seus pontos de vista sobre os textos do Concílio e as manobras dos bastidores em jornais importantes e era um frequente convidado da televisão, lembrado tanto pela sua boa aparência e pelos seus ternos, quanto pela sua expertise.

Durante a terceira sessão do Concílio em outubro de 1964 – quando o Papa Paulo VI já havia substituído o falecido João XXIII – parecia que o novo pontífice estava prestes a adiar a votação de declarações importantes sobre a liberdade religiosa e os judeus, devolvendo-as primeiro para uma verificação posterior por parte da Cúria altamente conservadora.

Trabalhando nos bastidores, mas em nome de poderosos homens da Igreja progressistas, Küng ajudou a convocar reuniões com 13 cardeais que rapidamente redigiram uma carta de protesto ao papa. Antes que a tinta secasse, Küng rompeu o sigilo imposto aos periti e revelou tudo ao público. Ele telefonou para os repórteres dos principais jornais europeus e os informou sobre as “escandalosas maquinações” contra as duas declarações.

Quando os bispos voltaram para a sessão da manhã de segunda-feira, eles foram recebidos por uma tempestade na imprensa internacional. O alvoroço, mais a intervenção pessoal dos cardeais junto ao papa, fez com que ambos os esquemas permanecessem na pauta do Concílio. O esboço sobre os judeus foi aprovado por 1.770 votos contra 185 no dia 20 de novembro de 1964.

Um ano depois, os bispos votaram a favor da Declaração sobre a Liberdade Religiosa por 2.308 votos a 70.

No dia 2 de dezembro de 1965, Paulo VI convidou Küng para uma audiência privada. Ela durou 45 minutos – mais do que o dobro do tempo previsto. Küng contou que o pontífice lhe disse que, depois de examinar tudo o que Küng havia escrito, o papa teria preferido que ele não tivesse escrito “nada”. Isso depois que o pontífice o elogiou pelos seus “grandes dons” e sugeriu que Küng usasse seus talentos a serviço da Igreja.

 

Conformar-se

 

Confuso, mas ainda sorridente, o teólogo assegurou ao chefe supremo: “Já estou a serviço da Igreja”.

Para isso, o papa deu a entender que Küng deveria se “conformar”, se realmente pretendia servir à Igreja. Antes de sair da biblioteca papal, Küng conseguiu direcionar a conversa para a controversa questão da contracepção, oferecendo ao papa um memorando com uma dezena de pontos a serem entregues à sua comissão papal que estudava a questão do controle de natalidade.

Mais tarde, ele lembrou que a audiência com Paulo VI o confrontou vividamente com a pergunta: para quem ele estava fazendo teologia? Ainda no fim de 1965, Küng entendeu: “A minha teologia obviamente não é para o papa (e seus seguidores), que claramente não quer a minha teologia como ela é”.

Naquele mesmo dia, Küng resolveu que faria teologia “para os meus semelhantes (...) para aquelas pessoas que precisam da minha teologia”.

Ao longo dos anos que se seguiram ao Concílio, Küng frequentemente assinalava as centenas de cartas que recebia e os comentários de multidões de apoiadores que compareciam às suas conferências na Alemanha e no exterior, testemunhando que eles permaneceram na Igreja por causa dos seus pontos de vista, da sua teologia e dos seus escritos.

Suas conferências na primavera de 1963 nos Estados Unidos, após a primeira sessão do Vaticano II, atraíram mais de 25.000 pessoas para a Universidade de Notre Dame, o Boston College e a Georgetown University, e para outros locais na Califórnia, Texas, Minnesota, Illinois, Pensilvânia e Washington.

Na Universidade de St. Louis, ele recebeu o primeiro de muitos doutorados honoris causa, mas a instituição jesuíta foi punida por não pedir primeiro a permissão de Roma para homenagear Küng.

No dia 30 de abril de 1963, o presidente John Kennedy acolheu Küng na Casa Branca, apresentando-o ao vice-presidente Lyndon Johnson e aos líderes do Congresso com as palavras: “E isto é o que eu chamo de um novo homem de fronteira da Igreja Católica”.

 

Entre dois “Joões”

 

Em novembro de 1983, no 20º aniversário do assassinato de Kennedy, Küng compartilhou com esta repórter como ele se sentiu privilegiado por ter vivido durante “o reinado dos dois Joões” [John Kennedy e João XXIII].

Observando que a morte de João XXIII ocorrera apenas cinco meses antes da de Kennedy, Küng lembrou que o tempo de cada um deles no cargo foi encurtado. No entanto, cada um teve uma breve janela de oportunidades que foi aproveitada – o papa ao convocar o Concílio, o presidente ao trabalhar no controle de armas com os soviéticos, disse Küng, enquanto relaxava em seu quarto de hotel em Ann Arbor, Michigan, onde ele estava para ministrar aulas na Universidade de Michigan.

Em visitas à sua casa em Tübingen em 1977 e 1985, e durante encontros subsequentes em Berkeley, Califórnia; Nova York; Ann Arbor; Detroit; Chicago; Pittsburgh; e Mahwah, Nova Jersey, esta repórter manteve amplas conversas com Küng sobre a sua fé, a sua família, o papel de Deus, a oração e a liturgia em sua vida.

Aqueles que tiveram o privilégio de ver Küng celebrando a missa – como esta repórter, em Greenwich Village, onde ele pregou sobre a Filiação de Deus no fim dos anos 1980 – viram um homem de profunda fé que dava tanta atenção às palavras e aos símbolos da liturgia quanto para compor seus livros e palestras.

Durante anos, ele presidiu a missa dominical das 11 horas na St. Johannes Kirche (Igreja de São João) no centro do campus de Tübingen. Küng havia proposto a missa para os professores.

“Eu tenho uma aversão real à má liturgia”, dizia ele. “Eu acho que é essencial que as pessoas sintam imediatamente que o homem que preside acredita no que diz, está comprometido com esta causa, está se dirigindo a elas, e não apenas encenando orações. As belas palavras litúrgicas e o maior louvor a Cristo – a menos que respaldados pelas Escrituras e compreendidos pelo povo – simplesmente não são úteis”, dizia ele em Tübingen.

Anos depois, em um seminário final sobre a “Vida Eterna”, ministrado a 20 estudantes e a 20 professores auditores na Universidade de Michigan, Küng se concentrou na Última Ceia.

“Vemos um homem enfrentando a sua morte. É muito simples. É uma cerimônia no contexto judaico tradicional. Ele pega o pão, dá a sua bênção, parte-o e distribui-o”, disse Küng, estendendo seus braços para as pessoas próximas. “Ele sabe que é a sua última vez com elas. Ele diz: ‘Tomem. É o meu corpo. Lembrem-se de mim. Desta noite’”.

Os estudantes trocaram olhares. Pessoa para pessoa. Católicos e hindus. Olhos úmidos e silêncio. Uma sensação de comunhão encheu a sala do seminário.

“Há profundezas de piedade nesse homem que ainda não começamos a sondar”, disse o estudioso bíblico David Noel Freedman ao NCR após o seminário. Freedman creditou a forte fé de Küng à sua formação católica suíça muito tradicional, à sua mãe forte e ao seu pai, que dirigia uma loja de sapatos no meio de Sursee – “e às cinco irmãs dele”.

 

Leia mais