Veganismo: por uma outra ética humana que valorize a história dos animais. Entrevista especial com Ana Paula Perrota

A vaca é um símbolo sagrado para os indianos | Foto: Granda Noia

Por: João Vitor Santos | 16 Março 2019

A antropóloga Ana Paula Perrota problematiza a opção modo de vida vegano a partir da relação que se tem com o alimento. “O ato de se alimentar de carne produz e encontra sentido no modo como definimos a nós mesmos como humanos, e no modo como nos situamos no mundo”, observa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ela, “fazer da carne fonte de alimento, ou negar que o corpo do animal possa ser transformado em comida, mobiliza um universo de usos e significados integrados às relações pessoais que no limite alcançam a própria definição do humano”. Assim, pensar o animal não como comida, ou algo coisificado para o consumo, eleva humanos e animais ao mesmo patamar. “A interdição do consumo de carne fundamentada em outra percepção sobre os animais confronta também a percepção que temos sobre nós mesmos”, acrescenta.

Além disso, Ana Paula lembra que adotar o veganismo não significa apenas não comer carne, mas rejeitar toda e qualquer prática que possa causar algum tipo de sofrimento a outro. “Ser vegano não significa apenas uma forma de ativismo individual ao boicotar certos produtos e serviços, mas significa principalmente atuar politicamente em torno da ‘causa animal’”, analisa. Ou seja, realinha também a ideia de individual e coletivo. “O veganismo resulta então na combinação das dimensões pública e privada do engajamento individual em favor dos animais. E reflete que a ‘causa animal’ é defendida não apenas enquanto uma virada moral, ao igualar o status de humanos e não humanos enquanto sujeitos de direitos”.

Logo, em alguma medida, ser vegano é assumir uma outra condição de humano não para humanizar os animais, e sim conceder a eles a possibilidade de vida digna. Ou, como a antropóloga formula, é lutar “para que a história animal também seja contada. Tanto a partir do seu reconhecimento como sujeitos, quanto através de uma luta política por justiça e direito”.

Ana Paula Perrota (Foto: Instituto Três Rios - UFRJ)

Ana Paula Perrota é docente do Departamento de Ciências Administrativas e Sociais do Instituto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ e professora também do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas, na mesma instituição. Doutora e mestra em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, em 2015 finalizou a pesquisa intitulada Humanidade estendida: a construção dos animais como sujeitos de direitos. O objetivo foi compreender a elaboração de uma política multiespécie, que visa conferir aos animais a mesma consideração moral atribuída aos humanos.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreende o veganismo e no que consiste a ideia de veganismo como um projeto ético? Ou o veganismo deve ser entendimento como projeto moral?

Ana Paula Perrota – Em linhas gerais, o veganismo consiste num projeto epistemológico, político e individual que tem como objetivo principal a reivindicação de que a vida de humanos e animais seja igualmente protegida e considerada como inviolável. Ou seja, reivindica-se que assim como os humanos os animais também sejam sujeitos de direitos.

Tratando de forma prática, o que isso significa? Em termos individuais, que todos nós sejamos capazes de tomar a decisão de nos abster de quaisquer produtos, serviços e atividades que façam uso de animais: na alimentação, no entretenimento, no vestuário, em medicamentos, cosméticos, etc... Em termos políticos, o veganismo reivindica o surgimento de novas leis, principalmente proibitivas, ou um movimento na sociedade para que seja banido o uso de animais em circos, rodeios, vaquejadas, a existência de zoológicos, o uso de animais em rituais religiosos, a venda de animais domésticos, a experimentação científica com animais, bem como o seu uso como recurso didático, e lutam também para o aumento da pena para o crime de maus-tratos etc. E todas essas demandas trazem implicações em diferentes áreas da vida social.

Atualmente, o veganismo ganha espaço no debate público a partir de uma discussão sobre alimentação vegetariana e vegana. Mas o veganismo, tal como é construído e levado à frente pelos militantes da “causa animal”, consiste e pode ser compreendido como um projeto bem mais complexo. Levando em conta essa complexidade, a dimensão moral tem um papel central nessa discussão. Todas essas reivindicações citadas trazem uma discussão sobre o que seria o correto a ser feito e têm como elemento fundamental a transformação do status animal de objeto para sujeito. Sem considerar a moral como uma instância predefinida que regula nossas relações, mas tratando-a como um conjunto de regras e sanções baseadas na ação de grupos sociais, vemos que o veganismo coloca em cheque a nossa moral hegemônica, que faz dos animais seres (a)morais.

Ampliação da fronteira moral

Compreendendo em termos filosóficos que a moral está ligada às ideias de responsabilidade e justiça, vemos que o veganismo busca incluir também os animais nesse âmbito. E é justamente aí que reside o que seria o caráter complexo do movimento, pois na modernidade a moral convencionou-se a incluir nessa discussão sobre responsabilidade e justiça apenas os humanos. Portanto, mais do que mudanças práticas, as exigências veganas repousam sobre uma transformação da moral que se liga ao sujeito (humano) e exclui como alvo de sua preocupação o objeto (animal).

Assim, o veganismo não diz respeito apenas a uma mudança na moral, mas de uma ampliação de sua fronteira para incluir novos seres. Todo o desconforto trazido pelos defensores reside no fato de que entendem e reclamam uma transformação social baseada na perspectiva de que humanos e animais sejam igualmente sujeitos de uma vida.

Os fundamentos para as demandas dos veganos encontram argumentos na ideia de que os animais também fazem parte da comunidade moral dos humanos e, por isso, sua existência tem valor em si mesma, e não deve servir para atender aos desígnios humanos. Mas, ao mesmo tempo, esses argumentos só possuem sentido se a moral se transformar num domínio ligado também aos animais. Portanto, para incluir os animais nessa dimensão, os defensores alargam também a fronteira do que entendemos como humanitário e contam com as disposições básicas da moralidade para nos convencer a agir com responsabilidade sobre a vida dos animais, nos termos como defendem: que nos abstemos de todo qualquer uso desses seres.

Perturbação filosófica

O veganismo é então complexo porque perturba a filosofia política e a ideia que temos sobre a moral, que, como discute Bruno Latour [1], desde a modernidade exclui os animais, desestabilizando normas e valores básicos que constituem a cultura hegemônica da sociedade ocidental. E nesse sentido, o veganismo, enquanto um projeto epistemológico, político e individual, é também um projeto moral porque consiste na elaboração do que seria a “boa vida” dos animais e que se faz acompanhada de uma prescrição de práticas fundadas na “ética animalista” – como identificam.

IHU On-Line – O que significa para os humanos o ato de alimentar-se?

Ana Paula Perrota – É possível dizer que desde que o antropólogo Claude Lévi-Strauss [2] disse que as espécies naturais não são apenas boas para comer, mas também são boas para pensar, tornou-se consensual que a relação entre a sociedade e a natureza, e mais especificamente, a nossa relação com a comida, não pode ser entendida apenas como uma relação utilitarista. Definimos a comestibilidade ou não comestibilidade dos alimentos, bem como o papel que ocupam em nossas práticas alimentares para além do que seriam nossas necessidades biológicas, ou interesses individuais, mas também através de uma razão cultural. Conforme nós humanos não somos apenas seres biológicos ou indivíduos atomizados que agem racionalmente, mas fundamentalmente sujeitos sociais, o ato de alimentar-se é orientado a partir do seu papel simbólico. Portanto, muitos autores discutem sobre como os alimentos não se ligam apenas às questões materiais de sobrevivência, mas também com elementos simbólicos e socialmente construídos.

A partir dessas considerações, é possível citar trabalhos que tratam da importância social da farinha de mandioca no Maranhão, do peixe para as comunidades ribeirinhas do Amazonas, ou mesmo da carne para os países ocidentais. O que esses trabalhos têm em comum é o esforço de evidenciar que o ato de alimentar-se, obviamente, possui importância nutricional, é influenciado por aspectos econômicos e de gosto, mas está ligado também ao sentido de nós mesmos e à nossa identidade cultural. Os alimentos possuem aspectos simbólicos ligados à força/fraqueza, refinado/singelo, progresso/decadência, e ao próprio significado acerca da humanidade/animalidade.

Desse modo, quando nos questionamos sobre o ato de comermos, discute-se que não ingerimos alimentos simplesmente, mas nos alimentamos de uma maneira específica. No que diz respeito então à comida e à produção de alimentos, é preciso localizá-los na sociedade, uma vez que produzimos alimentos não para seres biológicos apenas, mas para sujeitos sociais específicos.

IHU On-Line – De que forma o consumo ou não de carne revela a noção que os sujeitos têm sobre o “humano” e o “animal”?

Ana Paula Perrota – E é justamente pelo papel simbólico que os alimentos possuem que o ato de comer carne, ou de aderir a uma dieta vegetariana, não diz respeito a uma escolha simples, baseada numa decisão racional. Ao contrário, o ato de se alimentar de carne produz e encontra sentido no modo como definimos a nós mesmos como humanos, e no modo como nos situamos no mundo. Fazer da carne fonte de alimento, ou negar que o corpo do animal possa ser transformado em comida, mobiliza um universo de usos e significados integrados às relações pessoais que no limite alcançam a própria definição do humano. Portanto, a interdição do consumo de carne fundamentada em outra percepção sobre os animais, confronta também a percepção que temos sobre nós mesmos.

Conforme as escolhas alimentares possuem razões culturais, escolhemos o que comer pensando na identificação com o grupo a que pertencemos ou ao qual aspiraríamos pertencer. E, de acordo com o entendimento aqui proposto, comer carne está relacionado ao nosso entendimento mais fundamental enquanto ser humano. Como já afirmou o antropólogo Tim Ingold [3], o cultivo da natureza aparece como corolário lógico do cultivo do homem, de si mesmo e de seu poder de razão. Sendo assim, rejeitar uma dieta carnívora significa deixar de cultivar a natureza, o que significaria então em abdicar da nossa própria ideia de humanidade, ou seja, do que nos torna humanos. Portanto, o ato de comer carne ou de retirar esse alimento de nossa dieta não diz respeito apenas a uma mudança prática. Mas trata-se de uma transformação dos valores que norteiam, de modo mais geral, a relação entre sociedade e natureza na medida em que faz do ato de comer carne uma ação moralmente condenável porque atentaria contra a vida animal.

Conforme a alimentação carnívora se liga de maneira mais profunda do que o entendimento de nossa identidade cultural, ao entendimento que temos enquanto humanos, entendemos então que a explicação sobre a preeminência da carne em nossa dieta encontra significado além dos seus aspectos nutricionais e de gosto, mas em diferentes e complexos significados, que, dentre eles, dizem respeito ao predomínio humano sobre a natureza. A dieta carnívora faz parte de um modo de vida e de determinadas práticas que articulam todo um sistema cultural e econômico, baseados na ideia de separação entre humanos e animais, enquanto sujeitos e objetos, bem como no projeto científico-econômico de dominação da natureza.

Um outro significado para a carne

A interdição exigida pelo veganismo do abate de animais para a produção de alimentos é baseada na atribuição de um novo significado à carne e à prática de se alimentar de bens de origem animal, que condena moralmente essa atividade por serem consideradas cruéis aos animais. O veganismo luta para que a história animal também seja contada. Tanto a partir do seu reconhecimento como sujeitos, quanto através de uma luta política por justiça e direito.

Nesse sentido, a importância dada à vida animal inaugura um novo modo de entendimento das vidas de humanos e não humanos, e, portanto, uma confusão a respeito de nós mesmos. Sendo assim, embora o veganismo traga transformações sobre os sistemas agroalimentares, os fundamentos da “moral vegana” bagunçam também o entendimento que possuímos sobre a relação entre humanos e animais e que repousa, na modernidade, sobre a separação radical entre natureza e cultura.

IHU On-Line – Quais as questões de fundo em torno da produção e consumo de alimentos de origem animal?

Ana Paula Perrota – Do ponto de vista da “moral vegana” qualquer uso de animais para fins de satisfação humana é considerado uma forma de violência contra a vida animal. Contudo, uma análise sobre a crítica vegana a respeito da produção e do consumo de alimentos de origem animal, notadamente carne, leite e ovos, nos permite afirmar que é feita principalmente sobre o sistema industrial de produção animal. Esse sistema, inaugurado desde final do século XIX em países como França e Estados Unidos, e que se espalhou ao redor do mundo, determinou um novo modo de produção animal, organizado nos moldes da indústria fordista.

A criação e abate de animais em escala industrial é alvo então de denúncias em razão de suas práticas de criação, manejo, transporte e abate dos animais. Essas atividades técnicas que estruturam a rede de produção da carne são tidas pelos veganos como ações que “desanimalizam” os animais na medida em que estes seriam tratados apenas como números, contados aos milhares e considerados como máquinas a serem ajustadas para melhor atender aos interesses de rendimento econômico.

A descrição dos procedimentos técnicos realizados com os animais nesses estabelecimentos, e que são chamados de “campos de concentração”, é realizada a partir da transformação ontológica dos animais, elaborada pelos veganos e que os insere nos termos humanistas que versam sobre o valor da vida. Nesse sentido, a crítica vegana sobre a produção e o consumo de alimentos de origem animal ressignifica, por exemplo, o abate, fazendo dele não um procedimento técnico, mas uma ação moral condenável: o assassinato. E a carne, enquanto matéria-prima final, é compreendida como um pedaço do corpo de um animal morto e não uma fonte de alimento. Nesse sentido, a defesa da restrição da carne pressupõe a consideração de que as atividades que fazem uso de animais consistem em formas de violência e tortura e estes seriam fatos inquestionáveis e moralmente injustificáveis.

Ainda que não seja nos termos reivindicados pelos veganos, é também possível falar de uma mudança pública sobre a sensibilidade com as condições de vida e morte dos animais de produção, pois vemos a problemática do bem-estar animal transpor as pesquisas científicas e serem incorporadas por instâncias governamentais fiscalizadoras e por agentes do mercado. E, considerando o caso brasileiro, isso se dá justamente por exigências de países compradores e também dos consumidores para que as práticas de bem-estar animal sejam realizadas em toda a rede de produção da carne.

No entanto, a “lente vegana”, que por exemplo faz do abate de animais uma forma de assassinato, não é compartilhada por todos e ao mesmo tempo diz respeito a um sistema de produção e consumo que faz parte do cotidiano de milhões de pessoas, sem que estes pensem de algum modo que estão cometendo um crime ao se alimentar de bens de origem animal ou trabalhar na rede de produção da carne.

Moral vegana questionada

Desse modo, embora possamos discutir sobre o aumento de adeptos e de produtos veganos nos últimos anos, não podemos perder de vista que há concomitantemente o aumento da produção e do consumo de carne. É possível então afirmar que o projeto de uma dieta vegetariana, bem como o compartilhamento da “moral vegana”, não faz parte da preocupação de uma parte preponderante da população brasileira, e também de outros países do mundo.

A questão que quero chamar atenção é que a tradução vegana sobre as práticas relacionadas à produção de alimentos de origem animal não é compartilhada pela maioria, assim como é contestada por razões culturais e econômicas. Como pude discutir através de uma pesquisa relacionada com pessoas que possuem uma dieta onívora, justifica-se a continuidade da produção e do consumo desse bem alimentício seja em razão de argumentos naturalistas e biológicos, que afirmam de um ou de outro modo que animais existem para atender aos interesses dos seres humanos, seja em razão da não disposição em aderir a uma dieta vegetariana porque não querem abrir mão dos “prazeres da carne”. Ou ainda, por não se considerarem fortes o suficiente para empreender essa mudança em seus hábitos alimentares.

IHU On-Line – Do ponto de vista social e ético, o que distingue o veganismo do vegetarianismo?

Ana Paula Perrota – A distinção fundamental entre vegetarianismo e veganismo é que este último não é só uma dieta, mas consiste num conjunto de valores e regras que consideram todos os usos animais como práticas condenáveis. E além disso, embora o vegetarianismo possa ser motivado por uma preocupação moral com os animais, este não seria o único motivo para esta decisão, e nem um critério necessário. O vegetarianismo pode ser uma escolha motivada por questões de saúde, pela preocupação com o meio ambiente, ou por razões relacionadas ao gosto.

Contrariamente, o veganismo diz respeito a práticas e valores fundamentados na ideia de que humanos e animais são igualmente sujeitos de uma vida. Nesse caso, o veganismo inaugura um novo mal-estar em se alimentar de carne na medida em que tornaria o consumo desse bem alimentício irreconciliável com a moral. E nesse sentido, o vegetarianismo ético, pautado no reconhecimento do valor da vida animal, seria impositivo.

Há ainda outras diferenças, pois o veganismo não faz prescrições apenas sobre a carne, mas de todos os bens alimentícios de origem animal, como leite, ovos e mel. E trata também de outros pontos como produtos testados em animais, atividades de serviço e entretenimento que envolvem animais etc. Além disso, como os próprios militantes da causa animal enunciam, outro aspecto que distingue o veganismo do vegetarianismo reside no engajamento político. Nesse caso, ser vegano não significa apenas uma forma de ativismo individual ao boicotar certos produtos e serviços, mas significa principalmente atuar politicamente em torno da “causa animal”.

Dimensões pública e privada

O veganismo resulta então na combinação das dimensões pública e privada do engajamento individual em favor dos animais. E reflete que a “causa animal” é defendida não apenas enquanto uma virada moral, ao igualar o status de humanos e não humanos enquanto sujeitos de direitos. Mas é defendida também como uma virada pessoal, pois somente com o rompimento do consumo e serviços que fazem uso de animais que estes estariam livres de todas as formas de exploração. Portanto, se o vegetarianismo versa sobre práticas alimentares, o veganismo coloca em questão a situação moral dos animais, e, por conseguinte, a nossa própria situação.

IHU On-Line – Como compreender a “causa animal”? Em que medida pode ser considerada um projeto intelectual e quais os limites dessa visão de “causa animal”?

Ana Paula Perrota – Durante a pesquisa feita para a realização do Doutorado com os chamados defensores dos animais [4], compreendi que uma parte importante dessa forma de atuação política consiste no esforço que identifiquei como “militantismo acadêmico”. Os atores engajados nessa forma de militância fazem da “causa animal” um projeto intelectual na medida em que visam corrigir a moralidade ocidental, por considerá-la equívoca ou injusta na medida em que teria sido responsável por rebaixar os animais à condição de seres (a)morais. Os “militantes acadêmicos” (juristas, filósofos, biólogos, médicos veterinários, historiadores) realizam então um esforço de pesquisa a fim de demonstrar em termos científicos e filosóficos tais equívocos e injustiças e comprovar que os animais, assim como os humanos, são equivalentes do ponto de vista moral.

Desse modo, se desde Aristóteles [5] a questão filosófica central foi responder como seres humanos são diferentes dos animais, os militantes em torno da “causa animal” buscam responder inversamente a essa problemática, pois investigam como os animais são semelhantes aos humanos. Os defensores dos animais buscam então aproximá-los, identificando características nos animais que se constituíram enquanto exclusivas e distintivas dos seres humanos. As respostas nesse sentido são dadas, demonstrando principalmente através de pesquisas neurológicas e sobre comportamento animal, que assim como os humanos, os animais possuem as mesmas capacidades intelectuais que fazem de ambos indivíduos que possuem o interesse de viver e de não sofrer.

Os esforços acadêmicos como esses são entendidos como um modo de levar informações às pessoas para que tomem consciência da verdadeira realidade dos animais e passem então a adotar a “moral vegana”. A “causa animal”, nesses termos, pode ser entendida através da motivação de descortinar a realidade dos animais, para que então o veganismo seja adotado por todos. Ou seja, acredita-se que com a comprovação científica e a divulgação dessas informações, haveria uma mudança natural ou racional, por exemplo, em direção à adoção de uma dieta vegetariana restrita, pois somente assim estaríamos de acordo com a moral, ou com o que seria o certo a ser feito. Esse aspecto da causa animal pode ser descrito através de uma frase proferida por Paul McCartney [6] e que se tornou mundialmente emblemática entre pessoas pertencentes a esse movimento: “caso os matadouros tivessem paredes de vidro ninguém comeria carne”.

Causa animal: um projeto complexo

Contudo, o que pretendo discutir é que a “causa animal” é um projeto muito mais complexo do que os próprios defensores consideram ao tratá-la como um esforço de desvelamento da realidade. O que está em jogo nesse projeto, como pude compreender, é um questionamento das respostas dadas à pergunta: O que é o humano? E o que é o animal? E que encontra explicações bem sedimentadas, há pelos menos uns três séculos, através da constituição moral, filosófica, científica e política que pensa natureza e cultura e animais e humanos como pares dicotômicos e que fazem parte de domínios ontológicos antagônicos. O projeto intelectual dos defensores, mais do que desvendar a realidade, busca a elaboração e a concretização de uma nova constituição da sociedade fundada em uma realidade ontológica dos animais em que estes fazem parte da mesma comunidade moral que os humanos.

A reivindicação do veganismo, entendido como um conjunto de prescrições morais, relativiza as categorias humano e animal, o que por si só já é um projeto intelectual inquietante, pois tais categorias são pensadas cientificamente como anteriores à cultura, e que possuem seu significado no âmbito natural. Mas trata-se de um projeto inquietante também porque busca um novo entendimento sobre os animais e, por conseguinte, sobre o nosso lugar no mundo, repercutindo em diferentes áreas da vida social.

Empreendedores morais

A dimensão moral, presente no projeto intelectual dos defensores, busca transformar a relação entre humanos e animais que se estabeleceu não apenas em razões de barreiras físicas ou pela falta de conhecimento. Mas a partir de princípios científicos, filosóficos e teológicos que conformou o que entendemos como o paradigma civilizacional moderno. Nesse sentido, mais do trazer informações, os defensores atuam como empreendedores morais, nos termos discutidos por Howard Becker [7]. De acordo com o autor, o empreendedor moral é um reformador moral, pois entende seus valores como absolutos e a partir deles reivindicam transformações na sociedade. Enquanto empreendedores morais, os defensores buscam aplicar regras e sanções baseadas na “moral vegana”, fazendo então do que é amplamente aceito e tido como natural, um desvio e um grave problema moral.

Enquanto empreendedores morais, as ações e a crítica vegana sobre atores e práticas que fazem uso de animais se constituem de forma normativa e absoluta. O que significa dizer que não há qualquer abertura crítica, compreensiva ou relativa a essas ações. O veganismo consiste numa tomada de decisão teórica e prática que visa garantir a libertação irrestrita e indistinta a todas as espécies e indivíduos animais de qualquer forma de exploração. Conforme a perspectiva dos defensores, apenas é possível falar efetivamente de uma preocupação ética com os animais quando se fala em abolir todas as práticas que fazem uso de animais.

Carne

Tratando especificamente sobre a produção e o consumo de carne, as perspectivas em torno das práticas de bem-estar animal na rede de produção dos alimentos de origem animal e que têm como objetivo minimizar e evitar o sofrimento desnecessário seriam limitadas, restritas e, portanto, insuficientes para uma atitude verdadeiramente moral. O veganismo, portanto, não poderia ser um comportamento casual. Ou seja, não se pode fazer uso desses bens eventualmente, ou a partir de certos critérios, mas deve haver um comprometimento integral com o rompimento do uso de bens e serviços que façam uso de animais. Nesse caso, não existiria carne possível na “moral vegana”, o que torna o diálogo entre veganos e agentes implicados como consumidores e/ou produtores de carne foco constante de tensão.

Entretanto, na medida em que o projeto vegano é entendido por eles próprios mais em termos de conscientização da população, ao invés de ser compreendido como um projeto intelectual e político profundo que desestabiliza algumas das bases morais e filosóficas da sociedade moderna, os defensores produzem em muitos casos julgamentos superficiais e desconsideram os aspectos sociais em jogo em cada uma das atividades que denunciam, seja a produção de bens de origem animal, o uso de animais em experimentos científicos, ou atividades de entretenimento, como rodeios.

Limites da moral vegana

Uma limitação importante da "moral vegana" é que este pensamento tem uma visão que universaliza a categoria animal, mas perder de vista que o que chamamos de animais diz respeito a espécies de seres muito diferentes e que, portanto, participam de formas múltiplas na relação estabelecida entre os humanos. Os inúmeros significados atribuídos às condições animais não divergem apenas com relação aos diferentes grupos sociais, mas em razão das diferentes espécies também. E a reivindicação de interdição do uso de espécies animais, a partir de um discurso único, perde de vista o modo como cada uma dessas relações se constitui e que são bem heterogêneas.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Ana Paula Perrota – É possível observar, nos últimos três ou quatro anos, a apropriação vegana em espaços públicos, inaugurando uma nova situação social em que a palavra veganismo se torna conhecida pelas pessoas de uma maneira mais ampla. Esse novo momento chama a atenção na medida em que a apropriação vegana tem sido feita principalmente pelo mercado, com o lançamento de “produtos e serviços vegans”, mas que chegam destituídos da crítica sobre a “causa animal”.

Diante desse fato, observamos, por exemplo, tanto a consideração de que o veganismo seria uma nova dieta, quanto a consideração de que essa prática seria um modo de vida distintivo das elites, ou mais uma moda passageira. Como exemplo disso, gostaria de citar o produto lançado por uma empresa mundial de eletrodomésticos que faz leite à base de vegetais. Embora este produto carregue no nome a palavra vegan, nenhuma menção é feita sobre a questão animal em suas embalagens ou material de propaganda. Todo o apelo do produto está centrado em questões ligadas à saúde humana e à sustentabilidade ambiental.

Nesse sentido, é interessante observar como os adeptos da causa animal respondem a essa nova situação social. Em muitos casos, os veganos se ressentem dessa nova onda, problematizando se produtos sem origem animal de empresas que testam em animais, ou que possuem em sua linha outros produtos que possuem ingredientes animais seriam de fato veganos. Problematizam ainda que as pessoas estariam mais interessadas em consumir alimentos em feiras veganas do que em se engajar politicamente em manifestações contra determinadas práticas que fazem uso de animais.

De todo modo, o veganismo apresenta, a partir de seus valores e práticas reivindicados, desafios teóricos e de pesquisa tendo em vista o impacto que produz em diferentes áreas da vida social. Esse novo momento em que o veganismo, ou a causa animal, é incorporado de forma mais ampla no debate público traz ainda outras agendas a serem investigadas.

Notas: 

[1] Bruno Latour (1947): filósofo francês, é um dos fundadores dos chamados Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT). É reconhecido, entre outros trabalhos, por sua contribuição teórica - ao lado de outros autores como Michel Callon e John Law - no desenvolvimento da ANT - Actor Network Theory (Teoria ator-rede) que, ao analisar a atividade científica, considera tanto os atores humanos como os não humanos, estes últimos devido à sua vinculação ao princípio de simetria generalizada. (Nota da IHU On-Line)

[2] Claude Lévi-Strauss (1908-2009): antropólogo belga que dedicou sua vida à elaboração de modelos baseados na linguística estrutural, na teoria da informação e na cibernética para interpretar as culturas, que considerava como sistemas de comunicação, dando contribuições fundamentais para a antropologia social. Sua obra teve grande repercussão e transformou, de maneira radical, o estudo das ciências sociais, mesmo provocando reações exacerbadas nos setores ligados principalmente às tradições humanista, evolucionista e marxista. Ganhou renome internacional com o livro As estruturas elementares do parentesco (1949). Em 1935, Lévi-Strauss veio ao Brasil para lecionar Sociologia na USP. Interessado em etnologia, realizou pesquisas em aldeias indígenas do Mato Grosso. As experiências foram sistematizadas no livro Tristes Trópicos (São Paulo: Companhia das Letras), publicado originalmente em 1955 e considerado uma das mais importantes obras do século 20. (Nota da IHU On-Line)

[3] Timothy Ingold (1948): antropólogo britânico e presidente da Antropologia Social da Universidade de Aberdeen. Seus interesses são amplos e sua abordagem acadêmica é individualista. Eles incluem percepção ambiental, linguagem, tecnologia e prática qualificada, arte e arquitetura, criatividade, teorias da evolução na antropologia, relações homem-animal e abordagens ecológicas na antropologia. (Nota da IHU On-Line)

[4] A íntegra do texto da tese de Ana Paula está disponível aqui. (Nota da IHU On-Line)

[5] Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322 a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões filosóficas – por um lado, originais; por outro, reformuladoras da tradição grega – acabaram por configurar um modo de pensar que se estenderia por séculos. Prestou significativas contribuições para o pensamento humano, destacando-se nos campos da ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e história natural. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)

[6] Paul McCartney (1942): cantor, compositor, multi-instrumentista, empresário, produtor musical, cinematográfico e ativista dos direitos dos animais britânico. McCartney alcançou fama mundial como membro da banda de rock britânica The Beatles, com John Lennon, George Harrison e Ringo Starr. (Nota da IHU On-Line)

[7] Howard Saul Becker (1928): sociólogo americano que fez importantes contribuições para a sociologia do desvio, sociologia da arte e sociologia da música. Becker também escreveu extensivamente sobre estilos e metodologias de escrita sociológica. O livro de Becker, Outsiders, de 1963, forneceu as bases para a teoria da rotulagem. Becker é frequentemente chamado de interacionista simbólico ou construcionista social, embora ele não se alinhe com nenhum dos dois métodos. Formado pela Universidade de Chicago, Becker é considerado parte da segunda Escola de Sociologia de Chicago, que também inclui Erving Goffman e Anselm Strauss. (Nota da IHU On-Line)

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