Marie Collins explica decisão de sair da Comissão para a Tutela dos Menores

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02 Março 2017

“Acho impossível ouvir declarações públicas sobre a preocupação profunda na Igreja pelo cuidado daquelas vidas que foram prejudicadas por abuso sexual e, no entanto, assistir em privado uma congregação vaticana se recusar a reconhecer as cartas enviadas por estas pessoas. É um reflexo de como toda essa crise de abuso na Igreja vem sendo trabalhada: com belas palavras em público, e com ações contrárias atrás de portas fechadas”, afirma Marie Collins, em nota, explicando os motivos que fizeram com que se demitasse da Pontifícia Comissão para a Tutela de Menores.

A irlandesa Marie Collins foi nomeada em 2014 para ser um dos dois sobreviventes de abuso sexual clerical a atuar na Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, do Papa Francisco. Ela renunciou a este cargo na quarta-feira, dia 1º de março. Para o National Catholic Reporter, Collins escreveu a seguinte nota sobre a decisão tomada.

A nota é publicada por National Catholic Reporter, 01-03-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Eis a nota.

Em seus três anos de existência, a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores teve dificuldades a superar.

Eu, obviamente, pretendo respeitar a confidencialidade dos meus ex-colegas de Comissão e o trabalho que estão fazendo. Mas alguns dos principais obstáculos que posso mencionar já foram detalhados por membros da própria Comissão que prestaram depoimento à Comissão Real para Respostas Institucionais a Abuso Sexual Infantil, da Austrália, em 23 de fevereiro.

Estes obstáculos incluem a falta de recursos, estruturas inadequadas para os colaboradores, lentidão e resistência cultural. O problema mais significativo foi a relutância de alguns dos membros da Cúria Romana em implementar as recomendações da Comissão, apesar da aprovação pelo papa destas mesmas recomendações.

Em seu depoimento, Kathleen McCormack, membro australiana da Comissão, resumiu as lutas e enfatizou a necessidade de se manter a esperança. “Como a água sobre uma rocha”, disse, “temos de nos manter constantes”.

Eu cheguei a um ponto onde não consigo mais me manter apenas com a esperança. Como sobrevivente, assisti a alguns eventos se desdobrarem com consternação.

Durante o nosso primeiro ano, tivemos de seguir em frente sem ter um local nem equipe de trabalho. Depois, encontrar um método pelo qual a Comissão poderia entrar em diálogo com os dicastérios vaticanos foi difícil por um período bastante prolongado.

Isso acabou sendo superado em 2016, quando pessoas específicas de cada departamento do Vaticano foram designadas para ficarem disponíveis a interagir com a Comissão, porém houve um longo atraso na área extremamente importante da comunicação e cooperação.

A recomendação feita pela Comissão para que um tribunal fosse posto em prática onde bispos negligentes pudessem ser responsabilizados foi aprovada pelo Papa Francisco e anunciada em junho de 2015. No entanto, a Congregação para a Doutrina da Fé, conforme afirmado por Sheila Hollins diante da Comissão Real australiana, encontrou dificuldades “jurídicas” não especificadas, e assim o tribunal acabou não vingando.

Com o motu proprio “Como uma Mãe amorosa” de 2016, Francisco deu sequência em suas iniciativas de responsabilização. Esse texto não só cobriria os bispos negligentes, mas também os superiores religiosos. Ele teria entrado em vigor em 5 de setembro, mas é impossível saber se ele, de fato, começou a vigorar.

O modelo de salvaguarda desenvolvido pela Comissão, cujo objetivo é ser usado pelas conferências episcopais como uma base para a elaboração de seus próprios documentos, ainda não foi disseminado. O dicastério responsável por rever os documentos normativos das conferências dos bispos e que tem o seu próprio modelo também está recusando-se a cooperar com a Comissão.

No depoimento dado à Comissão Real, o membro neozelandês Bill Kilgallon, coordenador do grupo de trabalho dedicado às diretrizes para a salvaguarda dos menores, empregou uma analogia do governo para expressar como este tipo de resistência pode vir a ser. Ele falou sobre “o ciúme que os departamentos governamentais guardam em seus próprios domínios, e aí pode haver algumas resistências quanto a receber conselhos de outros setores”.

A relutância de algumas pessoas na Cúria Romana para implementar as recomendações ou cooperar com o trabalho de uma comissão, quando o propósito é melhorar a segurança das crianças e dos adultos vulneráveis ao redor do mundo, é inaceitável.

Será que essa relutância é impulsionada por uma política interna, por um medo de mudar, pelo clericalismo que instila a crença de que “eles sabem melhor”, ou ainda por uma mentalidade fechada que vê o abuso sexual como uma inconveniência ou pelo apego a velhas atitudes institucionais?

É horrível ver em 2017 que as pessoas ainda conseguem pôr outras preocupações antes da segurança dos menores e adultos vulneráveis.

A última gota d’água para mim, além da recusa em cooperar, foi a recusa, por um mesmo dicastério, em implementar uma das recomendações mais simples que a Comissão apresentou até o momento.

No ano passado seguindo um pedido nosso, o papa instruiu todos os departamentos do Vaticano a garantir que toda a correspondência enviada pelas vítimas/sobreviventes receba uma resposta. Eu soube por uma carta enviada pelo mesmo dicastério em particular no mês passado que eles estavam se recusando a assim proceder.

Acho impossível ouvir declarações públicas sobre a preocupação profunda na Igreja pelo cuidado daquelas vidas que foram prejudicadas por abuso sexual e, no entanto, assistir em privado uma congregação vaticana se recusar a reconhecer as cartas enviadas por estas pessoas. É um reflexo de como toda essa crise de abuso na Igreja vem sendo trabalhada: com belas palavras em público, e com ações contrárias atrás de portas fechadas.

Quando aceitei a nomeação para a Comissão em 2014, disse publicamente que se achasse que o que ocorria atrás de portas fechadas estivesse em conflito com o que estava sendo digo ao público, eu não permaneceria. Esse momento chegou. Sinto que não tenho escolha senão renunciar caso queira manter a minha integridade.

Sei que meus ex-colegas na Comissão irão dar continuidade, e espero que tenham sucesso na superação das dificuldades, trazendo a real mudança que se faz necessária.

Ainda há um membro sobrevivente de abuso no grupo, ainda que esteja sob licença. Não sei se quando o seu mandato terminar um outro sobrevivente será convidado. Espero que a voz dos sobreviventes esteja incluída, independentemente da forma como isso venha a acontecer.

Nos últimos três anos, nunca tive a oportunidade de me sentar e conversar com o papa, mas se tivesse eu pediria três coisas:

1.- Dar à Comissão a responsabilidade e o poder de supervisionar a implementação das recomendações quando forem aprovadas. Não importa o quanto de trabalho é destinado às recomendações dadas ao Santo Padre, e não importa o quanto ele as apoie, elas devem ser apropriadamente implementadas para ter algum efeito.

2.- Dar à Comissão um orçamento adequado, independente para realizar o seu trabalho sem que cada gasto precise passar por um processo de aprovação interna no Vaticano.

3.- Remover a restrição ao recrutamento de profissionais de fora do Vaticano.

Apesar de tudo o que tenho dito, creio que há um valor na Comissão ao continuar o seu trabalho. Os membros estão sinceramente se esforçando, em todos os projetos existentes, a fim de fazer as coisas avançarem.

Não obstante as recentes notícias decepcionantes sobre a redução das sanções aos perpetradores condenados, creio que o papa entende o horror dos abusos sexuais e a necessidade de deter aquelas pessoas que magoaram os menores.

Embora eu não concorde, até onde sei nenhuma das ações do papa pôs de volta um perpetrador em um cargo onde as crianças estariam correndo risco. Caso tivessem feito isso, eu teria uma opinião bem diferente.

Aqueles que apelam ao seu compromisso com a misericórdia em casos como estes prestam um desserviço a todos, ao próprio papa, quem penso que não percebe exatamente como as suas ações de clemência enfraquecem tudo o mais que ele faz nesta área, incluindo o apoio ao trabalho da Comissão.

Desejo o melhor aos meus ex-colegas quando seguem em frente nesta importante tarefa. A questão de melhorar a segurança das crianças e adultos vulneráveis é tão importante que ela tem de continuar, não importa os obstáculos em seu caminho.

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