Coreias. Do tecnocapitalismo definitivo ao comunismo dinástico

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12 Dezembro 2017

Dois cronistas viajaram separadamente para as Coreias do Sul e do Norte e registraram suas impressões em um livro de crônica e ensaio aplicando a obra do filósofo Byung Chui Han e seus conceitos de “sociedade do cansaço” e “panóptico digital” e um desenvolvimento que deixa para trás o modelo de “sociedade disciplinar” de Foucault a favor de outro, que ele chama de “sociedade do rendimento”.

A entrevista é de Beatriz Ardiles, publicada por Página|12, 11-12-2017. A tradução é de André Langer.

Filosofia do cansaço e da transparência – Filosofia do panóptico digital – Da muralha opaca ao panóptico digital – Opacidade e hipervisibilidade nas duas Coreias – Da sociedade do controle à sociedade do rendimento.

Dois cronistas viajaram em separado para as Coreias do Sul e do Norte, cruzaram suas percepções e recolheram seus olhares em um livro de crônica e ensaio, aplicando o trabalho do filósofo Byung Chul Han e seus conceitos de “sociedade do cansaço” e “panóptico digital”, um desenvolvimento que deixa para trás o modelo de “sociedade disciplinar” de Foucault em favor de outro, que ele chama de “sociedade do rendimento”.

O sul-coreano Byung Chul Han é uma estrela da filosofia atual, uma espécie de Foucault 2.0 com uma visão crítica da sociedade digital e suas ligações com o neoliberalismo do pós-Guerra Fria, cujos ensaios são um sucesso internacional de vendas. Inspirados em sua obra, Daniel Wizenberg e Julián Varsavsky analisaram cara e coroa da mesma moeda – a coreana – que continua girando no ar sem nunca acabar caindo, um conflito congelado no mesmo lugar desde 1953 sobre uma polvorosa nuclear. Em seu livro Coreia, dois lados extremos de uma mesma nação, os jornalistas argumentam que uma hipotética democratização da Coreia do Norte não seria tal se os rigores sulistas da “sociedade do cansaço” fossem aplicados lá.

Julián Varsavsky foi seduzido desde a infância pelas culturas asiáticas e, adulto, dedicou-se a viajar por esse continente por um ano, em diferentes incursões. A leitura de um artigo na Newsweek sobre o sistema educacional impeliu-o a mergulhar no submundo sul-coreano, que foi se desvelando como um jogo de caixas chinesas que não parava de surpreendê-lo à medida que imergia no lado menos claro do poder coreano. E foi através da leitura da obra de Byung Chul Han que ele encontrou as correntes de sentido que lhe permitiram ordenar seu olhar e interpretar suas observações depois de percorrer esse país.

Daniel Wizenberg é jornalista e cientista político formado pela UBA que cobriu a problemática dos refugiados e migrantes a nível mundial, publicando reportagens e livros sobre a vida cotidiana em áreas de conflito como a Síria e Mianmar. A Coreia do Norte o levou à pergunta sobre a vida cotidiana em um regime totalmente fechado em pleno século XXI.

Eis a entrevista.

Qual é a origem deste livro?

Daniel Wizenberg: Eu publiquei na revista Anfibia uma crônica sobre a Coreia do Norte, contando que no hotel “5 estrelas” de Pyongyang, jantei com uma jaqueta por causa do intenso frio que fazia no restaurante. E Julián fez um comentário de leitor nesse sítio dizendo que em Seul ele havia entrevistado um executivo norte-americano da Samsung que trabalhava no edifício central dessa empresa, que também tinha que trabalhar com uma jaqueta, porque não ligavam a calefação. Nós nos procuramos pelo Facebook sem nos conhecermos e durante a conversa achamos graça do fato de que as duas Coreias se pareciam mais do que imaginávamos: demorou cinco minutos para nos colocarmos de acordo para escrever um livro. Pode-se dizer que Coreia, dois lados extremos de uma mesma nação, foi concebido com a lógica do panóptico digital teorizado por Byung Chul Han.

Como Daniel Wizenberg entrou na Coreia do Norte?

Wizenberg: Eu comprei um pacote. É a única maneira de chegar lá, já que ninguém escolhe o roteiro que vai fazer pela Coreia do Norte: todos compram o pacote montado. Eu tive que mentir sobre a minha profissão, já que entre os requisitos está claro que não se admitia jornalistas. No entanto, um terço do contingente era formado por jornalistas que diziam que trabalhavam com outras coisas.

Vocês dizem no livro que a Coreia do Norte é um dos últimos recantos da terra não mapeado pelo Google Maps. Em que consiste a muralha anti-digital?

Wizenberg: O país não está conectado à internet. A população acessa uma intranet, ou seja, uma rede local com conteúdos filtrados pelo Estado; nenhum cidadão comum pode contactar-se com qualquer pessoa ou receber qualquer informação de fora das fronteiras. Nem sequer é possível telefonar para a família no sul ou receber um telefonema, nem mesmo enviar uma carta.

Ou seja, você esteve incomunicável durante uma semana. Na terceira parte do livro, vocês comparam os dois países e formulam a hipótese de um possível encontro na passagem que separa as duas Coreias na Zona Desmilitarizada. Em que consiste essa passagem? Como seria esse encontro?

Wizenberg: Chama-se Zona Desmilitarizada e é a mais militarizada do mundo: a Guerra Fria ficou congelada nesse ponto – o Paralelo 38º – fixado pela União Soviética e pelos Estados Unidos, e não pelas Coreias. De um lado e de outro da fronteira, são organizadas visitas guiadas a essa área e no livro brincamos com a ideia de que poderíamos ter concordado em nos avistar de longe na fronteira jogar um aviãozinho de papel com uma carta. Ali mesmo, em meados de novembro, um soldado norte-coreano cruzou a fronteira e foi baleado por seus companheiros. O incidente aconteceu perto da famosa passagem, que é um ponto em que não há arame farpado ou barreiras entre os dois países: é uma passagem de quatro metros de comprimento que poderia ser atravessada até por um bebê. A ideia do aviãozinho de papel é, de alguma forma, uma metáfora política sobre essa situação das duas Coreias, cujos guardas de fronteira estão tão perto uns dos outros, que podem se olhar nos olhos todos os dias. E, contudo, existe um abismo político entre um lado e o outro.

O sistema político norte-coreano é um oxímoro: uma dinastia comunista que já vai para a sua terceira geração na sucessão do comando. No livro, vocês contam muito bem em que consiste esse culto quase místico promovido pela “dinastia” Kim. Como vocês veem essa contradição?

Wizenberg: No início, Kim Il Sung, o avô do atual líder, foi um revolucionário na escala de Mao e Ho Chi Minh, que rapidamente foi se afastando do ideário comunista para desenvolver uma “filosofia” local fechada, baseada na adoração do Líder a quem se atribuem inclusive poderes milagrosos. Os guias turísticos contam que no dia em que Kim I morreu, o pico nevado do Monte Paektu deixou de ser branco para se tornar vermelho, como se o vulcão tivesse entrado em erupção, embora não esteja em atividade. Esse compêndio “filosófico” é chamado de Juche. O filho do líder revolucionário, Kim Jong Il, o sucedeu e aprofundou o regime blindado. E antes de morrer, deixou o trono para Kim Jong Un, que atualmente está no governo.

O atual líder não tem muito de revolucionário: ele estudou na Suíça com um pseudônimo e teve uma vida de menino rico. Seu principal hobby antes de chegar ao poder eram os jogos de basquete da NBA. Seus três irmãos tinham sido descartados: uma por ser mulher, o outro por ser homossexual e o terceiro por acabar no exílio após um escândalo internacional – caiu preso no Japão com um passaporte falso, um truque para visitar sem ser reconhecido a Disneylândia de Tóquio. No ano passado, ele foi envenenado no aeroporto de Kuala Lumpur.

A crônica de Varsavsky começa com uma pesquisa sobre o sistema educacional sul-coreano como uma demonstração da impiedosa Sociedade do Cansaço. Como funciona esse sistema?

Julián Varsavsky: Muitas crianças do jardim de infância começam a frequentar as aulas particulares de apoio escolar para aprender a escrever, inclusive em inglês. Esses institutos são conhecidos como hagwon e, à medida que os adolescentes avançam para o ensino médio, eles passam mais e mais horas extracurriculares ali, estudando de tudo. Um ditado muito repetido afirma que quem dorme mais de cinco horas por dia não terá aprendido o suficiente para obter uma boa nota no suneung, o exame anual comum de admissão às universidades: todo mundo quer entrar nas três melhores.

As crianças perdem sua infância brincando muito pouco – o que foi denunciado na ONU por não respeitar seu direito de brincar – e os adolescentes quase não fazem outra coisa em suas vidas senão estudar. A obsessão por entrar no hagwon chegou a tal ponto que teve que ser criada uma lei para que esses centros fossem fechados às 22 horas: deve ser a única lei do mundo que proíbe estudar. Mas muitos institutos tentam driblar a proibição, e há patrulhas noturnas para ver se estão realmente fechados. Há outros chamados kisuk hagwon, onde estudantes se internam meses para estudar, literalmente incomunicáveis, sem TV ou celular, sem poder sair nem mesmo aos domingos.

Estudantes e trabalhadores sul-coreanos vivem muito cansados e vocês aplicaram o livro de Byung Chul Han A sociedade do cansaço à pesquisa. Que relações vocês estabeleceram entre o livro e a Coreia do Sul?

Varsavsky: Byung Chul Han é sul-coreano e uma espécie de Foucault 2.0 que propõe deixar para trás a ideia da sociedade disciplinar do filósofo francês, que propunha que o modelo de uma prisão panóptica encerrava as mesmas lógicas de controle social aplicadas na sociedade industrial. Era uma estrutura de “visão total” panóptica, cujo esquema circular permitia que um único homem controlasse todas as celas a partir de uma torre central (estrutura que foi repetida em asilos, hospitais, escolas, fábricas). Os prisioneiros não sabiam quando estavam sendo vigiados e é por isso que eles tinham que se cuidar o tempo todo: assim se mantinha a disciplina. E, é evidente, houve explosões muito reprimidas de rebelião: os lados oprimido-opressor estavam claramente definidos.

Byung Chul Han propõe que essa “sociedade disciplinar” mudou para outra, que ele chama de “rendimento”, onde o poder opressor já não é mais tão visível para o trabalhador. O neoliberalismo teria conseguido impor uma psicopolítica individualista baseada na ideia da auto-superação, a fim de maximizar a produtividade individual: compete-se contra si mesmo. O que anteriormente eram as proibições do “dever” sob vigilância panóptica, agora são as liberdades mais sedutoras do “poder fazer” do empresário e do consumidor. Isto é muito mais produtivo em termos de trabalho devido ao seu caráter motivacional. Mas o “sujeito de rendimento” permanece disciplinado, de acordo com Han: o apelo à iniciativa própria gera uma exploração mais eficiente do que o controle panóptico clássico. Talvez a principal lição do sistema educacional sul-coreano seja a de obedecer, especialmente, a si mesmo: internalizar a exigência.

Han fala de auto-exploração.

Varsavsky: No trabalhador, estaria cada vez mais presente um Eu que se erige em vítima e verdugo ao mesmo tempo, em senhor e em escravo, de acordo com a metáfora dialética de Hegel. Esta seria uma mudança de paradigma para uma auto-exploração que limita a possibilidade de se rebelar contra um outro. Uma pessoa trabalha até desfalecer produzindo-se um cansaço infinito, já que o limite do dia de trabalho – ou de estudo – é a própria resistência do corpo. Por esta razão, as doenças paradigmáticas do século 21 surgem da super exploração do sistema nervoso, como a Síndrome de Burnout, o esgotamento e a depressão: estamos diante de um Eu auto-explorador que entra em colapso por superaquecimento.

E quando o “sujeito de rendimento” fracassa na sociedade neoliberal, ao não ter consciência clara da existência de um opressor, em vez de se rebelar, fica deprimido: a Coreia tem a maior taxa de suicídio no mundo desenvolvido. Em A agonia do Eros, Han diz: “O regime neoliberal esconde sua estrutura coercitiva trás da aparente liberdade do indivíduo, que já não se entende mais como sujeito submetido (subject to), mas como desenvolvimento de um projeto. Aí está o seu ardil. Quem fracassa também é culpado e carrega essa culpa para onde quer que vá. Não há ninguém a quem possa responsabilizar pelo seu fracasso. Também não há possibilidade alguma de desculpa e expiação”.

E você se dedicou a pesquisar o reverso sulista da muralha digital do norte: a hipervisibilidade da “sociedade da transparência” de Byung Chul Han. Pelo visto, é uma sociedade com altos níveis de “intoxicação digital”.

Varsavsky: Parece lógico que seja assim na pátria da Samsung: uma centena de hospitais tem serviços de desintoxicação digital para pessoas que estão presas entre a realidade física e a virtual: elas não distinguem claramente a diferença entre o dentro e o fora da rede e não conseguem se separar de seus dispositivos eletrônicos.

Existem inclusive clínicas de internamento total para curar as dependências cibernéticas, e casos patológicos foram atingidos, como o de um casal que teve um bebê que eles deixavam sozinho todas as noites, enquanto eles iam às salas de internet para mergulhar em jogos de papéis. Em um, chamado Prius, “criaram” uma menina virtual a quem dedicavam mais atenção do que à menina de carne e osso. Certa manhã, eles voltaram para casa e a encontraram morta por desnutrição. Claro que isso é uma coisa excepcional, mas o normal é que o Estádio Olímpico de Seul – e dois criados exclusivamente para videogames – fique lotado de pessoas que vão assistir em telões os combates profissionais da League of Legends.

Qual é o lado B da Samsung?

Varsavsky: Por um lado, a perseguição sindical, uma guerra declarada a qualquer forma de organização em defesa dos trabalhadores, exceto o sindicato pelego. Por outro lado, a existência, já desde as suas origens como empresa, de um orçamento fixo de milhões de dólares, que eles vêm usando permanentemente para corromper presidentes, procuradores do Estado, juízes e jornalistas. Atualmente, o principal proprietário da empresa – Lee Jae-yong, neto do fundador – está preso por um escândalo que acabou custando o próprio cargo à ex-Presidenta da Nação, Park Geun-hye.

Quem são as pessoas que, na sua opinião, quebram os cânones hiper-racionalistas de uma sociedade entregue ao alto rendimento no estudo e no trabalho? Para tentar encontrá-los, você se hospedou alguns dias em um mosteiro budista para ver como vivem aqueles que parecem ser o oposto de tudo isso.

Varsavsky: Eu me hospedei ali com o preconceito de que eles poderiam ser pessoas que fizeram um rompimento radical, pessoas que escolhem uma vida muito mais tranquila na proteção fornecida por um mosteiro situado no topo de uma montanha. Mas ali vi que a vida deles também tem sacrifícios e uma rotina muito rigorosa, que começa às 3h. Eles estudam muito e têm exercícios como de meditar sentados durante sete dias seguidos sem dormir, sob a vigilância de um mestre que bate neles com uma vara de bambu caso o seu tronco se dobrar.

O caso sul-coreano é um milagre econômico? Seu modelo pode ser aplicado na América Latina?

Varsavsky: Os milagres não existem nem na economia. Em primeiro lugar, não foi um modelo neoliberal como aquele que geralmente se propõe imitar na  América Latina para ser como a Coreia do Sul ou o Japão: o seu crescimento baseou-se em um protecionismo ferrenho que quase não permitia a entrada de importações, exceto matérias-primas. Em segundo lugar, o Estado interveio fortemente para direcionar a economia concedendo créditos industriais muito específicos e investindo na educação.

Por outro lado, os países situados em fronteiras importantes para o interesse geopolítico dos Estados Unidos – assim como também Israel, Alemanha e Taiwan – não só não sofreram os embates extrativistas de riqueza do FMI, como também receberam contribuições econômicas milionárias norte-americanas na forma de doação, que são exclusivas para essas zonas de conflito. E, finalmente, falta um espírito de submissão confucionista à autoridade combinado com altos níveis de repressão, garantindo condições de trabalho paupérrimas e uma ditadura durante décadas.

O Chile, que seria a “pupila dos olhos” do neoliberalismo no continente sul-americano, quase não produz um único carro ou televisão: os argentinos vão comprar eletroeletrônicos lá – sem impostos – trazidos da Coreia do Sul, um país que abraçou o neoliberalismo uma vez que alcançou uma posição dominante. O “modelo coreano” provocou desindustrialização no Chile, o que é lógico, porque, na verdade, o modelo aplicado ali é muito diferente.

Wizenberg: A existência da Coreia do Norte durante décadas também não é um milagre: foi possível graças ao patrocínio de potências estrangeiras como a China e a União Soviética.

De acordo com Han, a outra face da opacidade comunicacional do norte é a hipervisibilidade “cegante” que reina no sul, “criando um ruído infernal” ao nível da comunicação de massa.

Em sua obra, o filósofo não se refere a nenhum país em particular, mas vocês encontram na Coreia do Sul um paradigma de tudo isso. Em que consiste o conceito do panóptico digital?

Varsavsky: Em seu livro A sociedade da transparência, o filósofo parte da metáfora panóptica de Foucault para desenvolver o conceito de panóptico digital. Refere-se a uma nova visibilidade total que permite ver tudo através dos meios eletrônicos. Isso abarca as redes sociais e as ferramentas do GoogleEarth, Glass e Street View – e o YouTube. A hiperconectada Coreia do Sul tem a velocidade de navegação na internet mais rápida do mundo e é o laboratório mais ousado da “sociedade da transparência”.

O controle panóptico da sociedade disciplinar funcionava através de uma visão linear em perspectiva a partir de uma torre central. Os presos não se viam uns aos outros – nem divisavam o guarda – e teriam preferido não ser observados para ter mais liberdade. O panóptico digital, por sua vez, perde seu caráter perspectivista: na matrix cibernética todos veem os outros e se expõem para serem vistos. O ponto único de controle que tinha o olhar analógico desaparece; agora eles nos observam de todos os ângulos.

Mas o controle continua, de outra maneira. Porque cada pessoa dá às outras a possibilidade de que sua intimidade seja vista, provocando uma vigilância mútua. Essa visão total transforma a sociedade transparente em uma sociedade de controle mais eficiente: controlamo-nos mutuamente. Mas não nos sentimos vigiados, mas livres: interconectamo-nos permanentemente a partir de um local de isolamento, gerando uma hipercomunicação viciante, multifocal e intermitente. Isso resulta em informações desconectadas – sem passado nem futuro – onde é muito difícil estabelecer sentidos. A sobrecarga informativa e o excesso de luminosidade teriam um efeito 'cegador': o mundo acaba sendo um grande panóptico onde desaparece o muro que separa o interior e o exterior.

O panóptico digital é construído por aqueles que o habitam.

Varsavsky: Exato. O homo-digital alimenta o novo panóptico impulsionado pelo voyeurismo e pelo exibicionismo: colabora com prazer para a sua construção – algo impensável em um prisioneiro – e serve como plataforma para exibir-se e ir-se desnudando pouco a pouco. Para Byung Chul Han, a transparência sem ocultação é pornografia, e não é por acaso que a internet seja o domínio da pornografia: a exibição pornográfica e o controle panóptico são interpenetrantes.

Cada pessoa torna-se seu próprio objeto de publicidade, adquirindo valor na medida em que se expuser e for reconhecida através do “Gosto” (Like): o que não está nas redes não existe, porque não engendra valor de exposição. Consequentemente, o corpo deve ser otimizado o tempo todo e, por isso, assistimos ao auge da academia e à supervalorização da beleza física: a Coreia do Sul – como uma Meca digital – é também o paraíso asiático das cirurgias estéticas.

E como vocês aplicam a obra de Han à Coreia do Norte?

Wizenberg: Por oposição: é uma sociedade disciplinar de manual sob um controle panóptico analógico absoluto. É uma sociedade de controle à moda antiga, com escritórios, funcionários e documentos, baseada na proibição e na censura.

Todos querem saber se pode haver uma guerra nuclear na península coreana. Como se desempata esse conflito anacrônico? O desfecho depende de quais movimentos de placas tectônicas da geopolítica internacional?

Wizenberg: O jogo está em aberto há meio século; é um pouco perverso, muito tenso, e transformou o status quo dessa região. Todos os atores estão “confortáveis” neste ponto de equilíbrio: por um lado, a China não está interessada em ter um vizinho patrocinado pelos Estados Unidos e quer evitar as consequências demográficas da imigração que um conflito na Coreia traria. A ameaça da Coreia do Norte serve aos Estados Unidos para justificar suas bases militares na península. E na Coreia do Sul, historicamente, a maioria das demandas políticas de democratização e o aumento dos direitos trabalhistas foram reprimidos sob a acusação de “comunista”. Mas no sul sabe-se que, se as hostilidades forem retomadas – e especialmente em uma escala nuclear –, sofreriam baixas urbanas terríveis. Todo mundo parece estar suficientemente bem para chutar o tabuleiro. Mas há um fator de risco: o comportamento irracional e intempestivo de Donald Trump e Kim Jong Un.

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