Jean-François Colosimo: “Carta aberta aos ortodoxos da França que não estão errados em se sentir mal”

Fonte: Wikimedia Commons

13 Abril 2022

 

“Hoje, diante da tragédia abismal que se desenrola nessas terras da ortodoxia que não deixaram de ser terras de sangue durante o terrível século XX, é de todas as partes do Patriarcado de Moscou que se erguem as vozes de protesto que denunciam Kirill”, escreve Jean-François Colosimo, em carta aberta publicada por Orthodoxie, 09-04-2022. A tradução é do Cepat.

 

Jean-François Colosimo é teólogo ortodoxo francês, historiador, editor, documentarista e ensaísta. É diretor administrativo das Éditions du Cerf desde 2013, depois de ter sido presidente do Centro Nacional do Livro.

 

Eis o texto.

 

Queridas irmãs e queridos irmãos em Cristo,

 

“O que é a verdade?”, suspira Pôncio Pilatos antes de entregar Cristo aos carrascos. Recusando-se a decidir entre a justiça e a injustiça, aquele que se vê no dever de julgar se vê condenado. Sua ilusória neutralidade no momento crucial o fará refletir para sempre sobre sua falta fatal. A de ter pensado que escolher era complicado, que a situação era complexa, que havia questões não resolvidas, contradições intransponíveis, que era difícil decidir. Que nada estava claro e tudo estava embaralhado. Como se a distinção entre a mentira de Satanás e a verdade de Deus não fosse óbvia quando chega a hora de separar “o joio do trigo”. Em nenhum momento a Providência nos engana fazendo-nos confundir o bem com o mal. Desde sempre ele não passa de um trapaceiro, o adversário da humanidade. É por isso que João, o amado apóstolo aos pés da Cruz, nos exorta a não nos comportarmos como “netos idólatras” que se deixariam “seduzir” pelo “assassino desde o início”.

 

“A verdade da Igreja está no Povo de Deus” lembram-nos, mais perto de nós, os Patriarcas Orientais na sua resposta encíclica à proclamação, por parte do Vaticano, em 1872, da infalibilidade papal. Os dogmas, os sacramentos e as hierarquias não existem sem a assembleia sacerdotal dos batizados. E não há autoridade real exceto quando inspirada pelo Espírito Santo. O que não impede a alguns de nós de sermos mais papistas que o papado. E de idolatrar, sem discernimento, abandonando a eles todo contrapoder, batinas, mitras e báculos. No entanto, a crônica cristã, incluindo a latina, está repleta de exemplos de primados depostos por heresia, cisma, imoralidade ou simplesmente incompetência. Apenas nossa ignorância da história, onde nossa fé na Encarnação, no entanto, se manifesta, pode explicar a exaltação das instituições que reaparece a cada crise grave. Mas os idólatras do clero são duplamente revelados como “filhos do diabo” quando disfarçam o Bem último em Mal extremo.

 

Hoje, estamos pasmos com a guerra iníqua, fratricida e criminosa na Ucrânia, submetida à sentença perseguida pelo déspota Vladimir Putin de seu palácio do Kremlin e abençoada pelo pontífice Vladimir Gundiayev de seu palácio Danilov. É do ambão que Kirill, patriarca de Moscou em título pela desonra do título, maquia o dilúvio de ferro e fogo, a destruição das cidades e a deportação de pessoas, o reino desenfreado da força e da crueldade que abraça um país e um povo, numa “luta metafísica contra as forças do mal”. A verdade é que essa postura é uma farsa total. A mentira é atribuir-lhe a menor circunstância atenuante.

 

 

Hoje, diante da tragédia abismal que se desenrola nessas terras da ortodoxia que não deixaram de ser “terras de sangue” durante o terrível século XX, é de todas as partes do Patriarcado de Moscou que se erguem as vozes de protesto que denunciam Kirill. São seus bispos de Simferopol a Vilnius que se afastam dele, seus padres e seus fiéis de Sumy a Vladivostok, de Amsterdã a Madrid, que fazem petições contra ele, seus teólogos de São Petersburgo a Nova York que se rebelam contra ele.

 

Hoje, porém, há alguns de nós, ortodoxos na França e da França, que fogem da decisão a que a guerra na Ucrânia os obriga a tomar. E é uma desgraça para eles, mas também para todas e todos nós. E para o testemunho da ortodoxia francesa.

 

Não estou falando aqui de pessoas que nascem cegas, felizes por serem assim e satisfeitas por continuarem assim; que confundem comunhão eclesial e identidade patrimonial. Ou, pior, que calculam benefícios materiais e vantagens honoríficas. Ou, pior ainda, que se converteram à ortodoxia para subvertê-la, afirmando amá-la apenas para odiar melhor o Ocidente e canibalizar a Boa Nova com grandes golpes de suas obsessões paranoicas e seus delírios conspiratórios. Esses têm a decência de se fazerem esquecer. Pelo menos por respeito aos cadáveres de civis inocentes empilhados em Mariupol, a “cidade de Maria, Mãe do Salvador”.

 

Não, eu falo aqui das mulheres e dos homens de boa fé que se sentem mal, mas preferem se abster e acreditam sinceramente que seu sentimento doloroso será suficiente para justificá-los. É a eles que me dirijo e, em primeiro lugar, a vocês, ortodoxos franceses que vivem no regaço de Moscou e que agora experimentam as mesmas dores do procurador romano sem ousar a coragem que os patriarcas orientais exigem de você. No entanto, se vocês estão aflitos como eu acho que muitos de vocês estão, não deixem que o seu silêncio os domine.

 

 

Doloroso é o seu embaraço, é verdade, seja qual for a “Igreja russa” à qual vocês declaram pertencer, se vocês pertencem a um ou outro dos três ramos nascidos na emigração após a Revolução de 1917 e há muito tempo hostis entre si: o Exarcado Patriarcal, o Sínodo além-fronteiras, a Arquidiocese da Europa Ocidental. Kirill, sabendo habilmente, durante os anos 2000, anexar os dois últimos, historicamente refratários, à sua tiara, o desconforto agora é totalmente compartilhado entre vocês e é de fato na mesma desordem que se resume a vã promessa de sua “comunhão” encontrada. Assim como resta apenas amargura, quando não lágrimas, de sua chamada “autonomia”. Os ucasses de papel não podem ser usados nem como mortalhas para crianças assassinadas. Suas dores serão cada vez mais agudas, porque vocês serão cada vez menos capazes de ignorar que sua radiante reunificação “russa” está se transformando em um túmulo obscuro sem um dia depois. Que só terá o objetivo e o efeito de transformá-los em instrumentos de influência a serviço de um projeto mundano de hegemonia.

 

Não me interpretem mal: não pretendo castigá-los porque, eu sei, em muitos de seus corações, as miragens da fidelidade, da nostalgia, da grandeza, da sustentabilidade com que vocês foram cobertos estão agora se transformando em um pesadelo da submissão. Porque, a maioria de vocês não vai negar, a provação do erro espiritual que vocês devem suportar pateticamente: a terrível notícia que a ruína da Ucrânia traz para vocês dia após dia. Mas é um longo caminho, como diz o antigo provérbio, da xícara aos lábios, e por mais que eu ouça, não ouço nada realmente convincente. Ou melhor, quase nenhuma verdade pura. Às vezes me chegam, como a vocês, as palavras de boas-vindas, embora na maioria das vezes tardias e sem as ações que exigiriam se não tivessem a intenção de contemporizar.

 

Na realidade, onde vocês estão? Embora diversamente, aqui estão todos vocês, vocês que se renderam a Moscou, que se tornaram presas por Moscou. Vocês estão amarrados. Amordaçados. Imobilizados. No impasse. A ponto de, através de mil contorções, tentar desesperadamente se tranquilizar, em segredo, dizendo para si mesmos, no fundo do coração, por que e como chegaram a essa situação. A estarem envolvidos em tal traição, porque essa é a palavra do Evangelho. Cuidem, no entanto, para sair do seu monólogo antes que o escândalo que Kirill lança na face da consciência cristã universal e da opinião planetária seja “gritado dos telhados”. Mas já está sendo o caso.

 

 

Onde está o Exarcado? Ele se fecha em sua fortaleza diplomática do Quai Branly e mantém um silêncio ensurdecedor, sem dúvida, para não ter que postar declarações humilhantes por simples bom senso, mas ditadas de cima. Quanto aos pedidos de esclarecimento que algumas paróquias patriarcais enviaram a Kirill em sinal de reprovação muda, até agora ficaram sem resposta e, muito provavelmente, estão destinados a permanecer letra morta. Permito-me, portanto, entregar aos seus editores a mensagem viva da Tradição: se era permitido no passado ser solidário com a Igreja perseguida a todo custo, devemos agora deixar a qualquer preço a Igreja perseguidora.

 

Onde está o Sínodo além-fronteiras? Ele luta para admitir que concorda e discorda do conflito tal como definido pelo Kremlin. No modo pietista que o caracteriza, ele, no entanto, se abstém de denunciá-lo. É o que ilustra a declaração oficial entregue à imprensa por seus bispos europeus, “lamentando e condenando” a guerra de antemão e como esperado. No entanto, não falta nenhum argumento: a reescrita tendenciosa da história celebrando o “batismo da Rússia”, a denúncia polêmica da “parcialidade da mídia ocidental”, o desejo surreal de ver por milagre “apaziguar os corações nos países [sic] da Ucrânia”, a ficção geopolítica do “mundo russo”, incluindo, é claro, Belarus. Exceto que uma oração pela Ucrânia, somos avisados, será inserida na liturgia divina ali onde anteriormente já tinha sido inscrita uma súplica pela “libertação dos povos” cativos do “poder do ateísmo”.

 

Apesar de aderir ao mesmo messianismo imperial, a lacuna está aumentando na memória dos mártires do comunismo. Essa discrepância se tornará intolerável para o Sínodo além-fronteiras quando perceber que o atual Patriarcado de Moscou é de fato uma ideologia neototalitária e que consiste em um ressurgimento soviético. Na verdade, a ruptura já está em andamento nos círculos sinodais, portanto tão voluntariamente conservadores. Lenta, mas seguramente, vocês, seus sacerdotes e fiéis preocupados, começam a distinguir entre o patriotismo lúcido e o nacionalismo mortífero. E cainita. Mais um esforço, digo-lhes fraternalmente, para não acabar absurdamente classificados entre os camaradas e outros idiotas úteis do remake putiniano da ex-URSS!

 

Onde fica a Arquidiocese da Europa Ocidental? É terrível dizer isso, mas é preciso admitir, ela sofre da ressaca que obscurece as madrugadas de embriaguez. Para sobreviver, para não se tornar o vicariato a que sua realidade residual a destinou, para perseverar sozinha e orgulhosa de estar em sua inexorável agonia condicionada por seu singular ato de nascimento que necessariamente a tornou transitória (sim, isso também deve ser ouvido, meus irmãos e irmãs, especialmente em vista da implosão que, mais do que nunca, os ameaça), e tudo isso em vez de preservar o essencial de sua herança de liberdade em um quadro justo para poder transmitir sua mensagem de emancipação, vendeu-se a esse justamente contra o qual sempre, com tanta honra, lutou. Que espetáculo lamentável foi ver os anteriormente ferozes defensores da catedral de Nice sendo condecorados com cruzes de pedra sob o ouro das basílicas de Moscou em homenagem à sua débil rendição.

 

O que me autoriza a me pronunciar dessa maneira? Eu dediquei trinta anos da minha vida ao ensino no Instituto São Sérgio, quatro anos para presidi-lo em um período difícil em que se tratava, nem mais nem menos, de salvaguardar a sua existência. Em janeiro de 2019, renunciei a todas as minhas funções, incapaz de me obrigar a seguir a inclinação negativa que meus queridos colegas estavam determinados a tomar, prontos para abraçar a deriva da arquidiocese que foi desviada de sua vocação. A maneira como eles aceitaram ou fingiram aceitar enganar a si mesmos, retorcer-se e, finalmente, inevitavelmente, negar-se não deixou de me surpreender, mas também não me deixou outra escolha senão sair. Um capitão de mar tem o dever de permanecer a bordo e afundar com o navio, a menos que a tripulação, aquecida pelo armador, persista em afundá-lo.

 

 

Isso foi, para mim, uma perda. Mas primordial. Embora incompreendido em virtude de uma surdez acomodatícia. Tive que explicar novamente minha decisão ao meu amigo Michel Stavrou quando ele achou prudente me convidar, quase três anos depois, para uma conferência sobre os cristãos do Oriente. Começando por observar, na minha resposta de 3 de junho de 2021, a pertença de São Sérgio ao Arcebispado da Europa Ocidental e do Arcebispado ao Patriarcado de Moscou, comentei: “Qualquer que seja a lei a que se volte, da Igreja ou do Estado, esse vínculo de subordinação é indiscutível. Quaisquer que sejam as razões dadas para defendê-lo, quaisquer que sejam os efeitos que possa ter ou não a curto, médio e longo prazo, quaisquer que sejam as formas com que aqueles que a ele aderem se justificam, esse ato de fidelidade é objetivo. Mas para quem e para quê afinal, gostemos ou não? Para um sistema de opressão que a imprensa nos diz todos os dias o que é e que o dito patriarcado não só nunca contestou como legitima. Exagerado? É preciso dizer isso aos padres depostos e aos opositores presos simplesmente por terem recusado a mentira. Uma coisa é a instituição eclesial encontrar a corrupção do século, outra é consentir nessa mesma corrupção abençoando-a”.

 

Essa previsão da inevitável falência moral do instituto e da arquidiocese, uma vez que eles amarraram seu destino a Moscou, não veio de nenhuma graça particular. Ela se originou do senso comum que muitas vezes falta aos clérigos e aos teólogos profissionais. O provável acabou sendo certo, e o previsível se manifestou, ainda mais rapidamente do que eu poderia esperar. Não tenho nenhuma satisfação nisso, mas espero de vocês, meus queridos ex-colegas, algum arrependimento. Não em relação a mim. Com relação à verdade que vocês devem aos estudantes e aos estudantes em relação aos quais vocês querem ser os mestres.

 

Seria errado dizer que esse movimento de arrependimento não começou. Pela voz de Jean Renneteau, um clérigo com uma carreira duvidosamente aleatória mas ressoante na ocasião com reminiscências de sua educação republicana e sua longa convivência com Constantinopla, a arquidiocese gradualmente se adaptou à realidade, acumulando declarações onde se impõe a verdade dos fatos. Só o faz de forma muito gradual e, visivelmente, à custa de duros debates internos. Tanto melhor, mas insuficiente. Porque a verdade dos cânones, até hoje, permanece sem solução. Uma prova: a carta ao clero da arquidiocese, datada de 17 de março de 2022, do mesmo Jean, metropolita de Dubna, portanto hierarca do Patriarcado de Moscou, na qual escreve textualmente: “Proponho a cada sacerdote escolher, de acordo com os sentimentos dos paroquianos que conhece e para preservar a paz e a unidade, comemorar ou não o Patriarca Kirill”. A história talvez se lembre de que a rue Daru e a rue Crimée lançaram os últimos fogos de sua criatividade outrora fértil ao inventar a pertença eclesial de tipo variável e ocasional a critérios subjetivos e de acordo com a oportunidade prática.

 

 

Vamos resumir. Na França e na Europa, exceto os irredutíveis, os clérigos e fiéis moscovitas que ainda não deixaram Moscou, demorando a fazê-lo, mas que acabarão se resignando a isso, tendem a reconhecer que a Rússia de Putin atacou a Ucrânia, que a guerra é condenável, que as declarações de Kirill a seu favor sejam inadmissíveis e que, consequentemente... pode ser que omitam a memória daquele que permanece seu primaz no ato eucarístico. O que equivale, e lamento ter de frisá-lo, a pensar que se pode lavar as mãos do sangue das vítimas, limpando-as discretamente na toalha do altar antes de erguer, perante o Povo de Deus, o cálice do único sacrifício oferecido pela “vida da multidão”.

 

Tal posição, que transita entre a insensibilidade inconsciente e a amnésia voluntária, acompanhada ou não de contrição, é propriamente insustentável e não pode ser sustentada por quem quer ser “de verdade” discípulo do Crucificado do Gólgota. Além do mais, disso não podem ser dispensados pelos clérigos e fiéis das outras jurisdições ortodoxas estabelecidas na França.

 

O que fazer? Ao contrário da reputação que alguns desprezadores gostariam de me impingir, nunca fui um “partidário” de Constantinopla, não sendo um adepto dos tribalismos de que gostam esses mesmos divisores, mas sempre me considerei, como todos vocês são minhas irmãs e meus irmãos em Cristo, filho da Mãe Igreja. Na pessoa do Patriarca Bartolomeu e por sua decisão profética de conceder a autocefalia à Ucrânia (por mil razões, incluindo a boa, a economia da salvação), o Trono Ecumênico mostrou mais uma vez que está cumprindo sua diaconia a serviço do Pleroma. E é uma sábia tradição para nós, ortodoxos, recorrer a ele por seus conselhos multisseculares. Principalmente quando você se sente mal. E não sem razão.

Jean-François Colosimo

Na véspera do Domingo de Maria do Egito, a prostituta penitente, Grande Quaresma de 2022.

 

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