China-Vaticano. História que não deve ser esquecida

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18 Setembro 2018

"Além dos impérios da espada, há então o império do espírito. A grande tensão em relação à China começou no século XII ou XIII na Europa com as lendas do fabuloso reino do Preste João. Os Papas enviaram cartas e mensagens aos imperadores da China contra a crescente ameaça muçulmana. De certa forma, o difícil diálogo entre a China e a Santa Sé hoje também é um legado dessa atenção em Roma", escreve Francesco Sisci, sinólogo, autor e especialista em questões sobre a China, professor da Universidade de Renmin, em Beijing, China, em artigo publicado por Settimana News, 17-09-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.

Eis o artigo.

Quando, em 2013, o presidente Xi Jinping lançou o programa One Belt One Road (“Um Cinturão, Uma Rota”, em tradução livre), foi a primeira vez em sua história que a China realmente decidiu dar um passo decisivo em direção do oeste.

É verdade que, durante o período Han, o Império tentou proteger a Ásia Central ao chegar às margens do Mar Cáspio e, por volta de 60 a.C., estabeleceu algum tipo de Protetorado das Regiões Ocidentais, que lidava com a defesa da região e assuntos estrangeiros. Mas, logo depois, eles tiveram que desistir devido à incapacidade de sustentar a logística desta base avançada tão longe do coração do império.

Cerca de sete séculos depois, um império refundado sob a dinastia Tang chegou à mesma região, possivelmente também baseado na origem parcialmente turca dos governantes. Antes disso, como Nicola Di Cosmo escreveu em seu recente livro, [1] “no século VI, as estepes - e não a China - haviam se tornado o mais poderoso motor de mudança. O que era novo na relação entre a China e as estepes era que a política nômade se tornara um elemento decisivo para facilitar a evolução das rotas comerciais e, mais especificamente, nas relações econômicas entre a China e o Ocidente”.

Do outro lado do continente eurasiano, as estepes eram também bizantinas. Como Michael Maas explica, [2] isso aconteceu pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento da tradição romana de lidar com o povo das estepes e a introdução de “uma literatura cristã apocalíptica que dava lugar especial aos nômades em um esquema escatológico”. Todos esses elementos compostos "deram aos nômades eurasianos uma nova postura e importância nos assuntos imperiais".

Contra esse pano de fundo por cerca de um século, aproximadamente de 640 a 750, os Tang eram a potência dominante da bacia do Tarim, arrancando-a dos tibetanos agressivos que desciam de suas montanhas inóspitas e dos governantes turco-mongólicos então vagamente organizados. O empurrão dos árabes para o leste e a batalha de Talas em 751 repeliram os Tang de volta para o leste, para as planícies centrais chinesas, e iniciou-se a longa fase de islamização da região.

Mais uma vez, os Ming e os Manchu tentaram chegar ao oeste, com planos bem menos ambiciosos, estabelecendo-se na moderna Xinjiang. Mas todas essas campanhas e tentativas foram defensivas. Eles não pretendiam controlar essas áreas para ter mais alcance a oeste. Eles tinham como objetivo proteger as ricas planícies agrícolas centrais no leste dos ataques dos povos nômades e seminômades da Ásia Central, privando-os de seu território doméstico.

A Rota da Seda de Xi Jinping é totalmente diferente. Ela quer construir uma sólida rede de negócios e riqueza compartilhada, alcançando as costas ocidentais da Europa e do Mar Mediterrâneo. Nunca a China pensou tão longe. O primeiro lançamento oficial do governo chinês é a Belt and Road Initiative (“Iniciativa do Cinturão e da Rota”, em tradução livre), BRI, que tem um megafundo de 100 bilhões de dólares e à qual dúzias de países se uniram ao longo do caminho.

Iniciativa One Belt One Road (Foto: Settimana News)

Iniciativa One Belt One Road

Esta iniciativa hoje altera ativamente a geografia dos últimos 500 anos, desde 1492, quando Colombo descobriu a América, e talvez até antes, desde que os turcos conquistaram Constantinopla em 1453. Naquele momento, as rotas de contatos internacionais e comércio saltaram a Eurásia e o Mediterrâneo e se desenvolveram através do Atlântico e do Pacífico, para circunavegar o globo estabelecendo muito mais contatos diretos entre a Europa e o Extremo Oriente e contornando o domínio turco da Ásia ocidental. O mundo tornou-se diferente então.

Precisamente porque a presente iniciativa muda 500 anos de história, a China não pode objetivamente ignorar a recente história antiga da Rota da Seda. Na verdade, apenas alguns anos antes do lançamento oficial da Rota da Seda chinesa, os Estados Unidos tinham tentado edificar sua presença na Ásia Central, um eixo fundamental da Rota da Seda.

Após o ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, os EUA ocuparam o Afeganistão pela primeira vez e depois tentaram tomar posse do Iraque. O Afeganistão é identificado como o centro do tabuleiro de xadrez da Eurásia por Brzezinski, [3] e o Iraque é a Mesopotâmia, a terra de passagem entre a Ásia Central e a África. De fato, os Estados Unidos colocaram seus peões no centro e, consciente ou inconscientemente, viram o renascimento do comércio ao longo do continente eurasiano.

O Afeganistão foi o local onde os soviéticos foram derrotados pelos mujahidin, apoiados pelos EUA nos anos 80. O Afeganistão tinha sido, um século antes, o limite da projeção ao norte do Império Britânico, ocupando a Índia. Os britânicos foram detidos pelas tribos locais apoiadas por Moscou.

Antes dessa Rota da Seda, havia a grande rota comercial aberta pela Pax Mongolica dos séculos XIII e XIV, seguindo-se às conquistas de Genghis Khan. Os impérios turco-mongóis que dominaram a Eurásia praticamente até o século XIX eram os herdeiros da Pax Mongolica.

O Império Manchu na China, o Império Mughal na Índia e o próprio Império Otomano na Turquia foram todos impérios multiétnicos que essencialmente entraram em colapso no século XIX (no começo do século na Índia e no final do século na Turquia e a China) sob a pressão das potências ocidentais, que se tornaram ricas e fortes graças aos quatro séculos de acúmulo de poder pelo comércio transoceânico entre as Américas.

Mas até mesmo os impérios turco-mongóis tinham um precedente: a presença milenar dos impérios persas na Ásia Central. A fundação do primeiro Império Persa sob Ciro e depois sob Dario e Xerxes deu um primeiro impulso ao surgimento do poder das cidades gregas. A conquista do Império Persa por Alexandre, o Grande, no século IV a.C., criou uma rede de reinos helenísticos-persas que durou até que a região caísse novamente para os persas sob as dinastias Parta e depois Sassânida.

Estes impérios persas foram o limite a leste e o cinto de segurança durante séculos do Império Romano. A conquista árabe da Pérsia e a seguinte islamização do território gradualmente puseram fim às religiões, como o culto de Zoroastro e Mitra, que durante séculos tiveram uma influência muito maior do que o cristianismo.

No entanto, a influência persa continuou por séculos, mesmo após o fim ou o enfraquecimento do império. Durante a dinastia Yuan na China, o persa foi falado na corte. Os persas influenciaram fortemente o turco otomano e os mughals indianos. De certa forma, a própria Pérsia, que tem uma maioria xiita muçulmana, provavelmente quis enfatizar sua identidade muçulmana como diferente dos árabes, que são predominantemente sunitas.

Além dos impérios da espada, há então o império do espírito. A grande tensão em relação à China começou no século XII ou XIII na Europa com as lendas do fabuloso reino do Preste João. Os Papas enviaram cartas e mensagens aos imperadores da China contra a crescente ameaça muçulmana. De certa forma, o difícil diálogo entre a China e a Santa Sé hoje também é um legado dessa atenção em Roma.

Os criadores da nova Rota da Seda Chinesa não podem esquecer a história recente e antiga das outras Rota da Seda e ter sucesso. Ela deve ser baseada em experiências passadas e não se pode fingir que elas não existiram.

Referências

[1] Nicola Di Cosmo e Michael Maas. Empires e Exchanges in Eurasian Late Antiquity, 2018.

[2] op.cit. ensaio: "How the Steppes Became Byzantine."

[3] Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives, 2016.

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