O Vaticano, Moscou e a China: uma nova hegemonia global religiosa e espiritual

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30 Agosto 2017

"O resultado é substantivamente positivo". É assim que o Cardeal Parolin resumiu os resultados da recente visita feita por ele à Federação Russa. Primeiramente, há a comunidade católica russa para proteger, com 300 paróquias e 270 padres – a maior parte formada por poloneses, lituanos, alemães e ucranianos –, assim como um arcebispo de Moscou, a saber: o italiano Paolo Pezzi, do movimento “Comunhão e Libertação”, especialista em assuntos políticos, culturais e religiosos russos. Pezzi é um prelado brilhante a ser apoiado, tendo um conhecimento profundo dos problemas russos e da teologia ortodoxa.

O comentário é de Giancarlo Elia Valori, economista e empresário italiano com distinções acadêmicas prestigiadas, conferencista sobre relações internacionais e economia nas principais universidades do mundo, entre elas a Universidade de Pequim, a Universidade Hebraica de Jerusalém e a Universidade Yeshiva, de Nova York, em artigo publicado por Modern Diplomacy, 28-08-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Vale a pena lembrar que o Papa Francisco trocou apertos de mãos com o Patriarca Kirill num encontro histórico ocorrido em Havana no ano passado entre os dois mais altos representantes do cisma de 1054, o que foi visto positivamente pelos EUA e apoiado por todo o povo cubano.

Foi um sucesso diplomático do qual o papa irá, em breve, tirar vantagem.

Finalmente, Francisco não mais está interessado no cisma oriental e em sua conotação doutrinal, teológica e estratégica.

O pontífice romano mostra interesse na nova aliança entre a Rússia, a Igreja Católica e, futuramente, a China, para pôr um fim à dependência geopolítica da igreja oriental ao ocidente euro-americano.

Como afirmado explicitamente, o papa não mais quer só ser o porta-voz da civilização ocidental, que hoje está descristianizada.

Como lembrou o próprio Parolin, ele é o primeiro alto representante da Igreja Católica a visitar Moscou depois da Guerra da Crimeia.

Eis um aspecto político e simbólico essencial para marcar a distância entre o Vaticano e o eixo atlântico da Europa ocidental com os EUA.

Com o ministro do Exterior, Lavrov, com quem o cardeal secretário se reuniu em Moscou, alcançou-se rapidamente um claro acordo: as forças russas de proteção de todas as minorias religiosas no Oriente Médio.

E pensar que, nesse caso, os Estados Unidos chegaram até mesmo a culpar a Rússia por “penalizar” os assim-chamados jihadistas moderados que a Otan e os EUA continuam treinando na Síria e em outras partes do mundo.

Dessa forma, o Vaticano vê explicitamente com bons olhos a política externa pró-Assad promovida no Kremlin, juntamente com a comunidade cristã síria – em suas formas variadas – que continua a viver na Síria e no Oriente Médio, protegida pela Rússia e pelos alauítas de Bashar al-Assad, muito mais do que protegida pelo jihad “moderado” que, desde a época de Barack Obama e Hillary Clinton, ainda está no centro das operações americanas na região.

Considerando a condição atual dos católicos na Rússia, houve um atrito previsível entre Lavrov e Parolin.

Além da liberdade prática de professar a fé católica, uma das questões em pauta é a propriedade das igrejas e dos palácios da Igreja Católica russa, prédios confiscados pelo regime soviético e nunca retornados os proprietários legítimos depois da queda da URSS, apesar dos julgamentos favoráveis nos tribunais para a Igreja romana na Rússia.

Os católicos do país são poucos, aproximadamente 800 mil, o que representa 0,5% da população total. No entanto, o alvo estratégico verdadeiro não é o número, mas a qualidade das ações estratégicas conjuntas encabeçadas pelo Vaticano e pela Rússia: o objetivo é exatamente a visita do Papa Francisco ao país.

Seria o selo de uma Igreja Católica que – como na era de João Paulo II – antecipa e supera o fim da Guerra Fria, assim antevendo uma ligação entre o Vaticano e as potências emergentes do Heartland eurasiano, que hoje é a alternativa para uma associação estratégica fraca e perigosa entre o Vaticano e o ateísmo consumista e científico atualmente em vigor no Ocidente euro-americano.

Hoje está claro que o Papa Francisco não gosta deste Ocidente: um universo sem Deus que se dirige para um “cupio dissolvi” rápido, ético e antropológico.

Na verdade, o papa prefere as regiões do mundo em que a Igreja ainda pode atuar como “hospital de campanha” e trabalhar dentro de um universo cultural onde a religião, inclusive a religião não católica, é respeitada.

É melhor um confucionista do que um ateu europeu ingênuo, somente acreditando na ciência (ele/ela não sabe) e na liberdade dos instintos.

Aqui as ideias de Parolin e de Francisco estão em plena sintonia, assim como as ideias de Kirill, que quer menos conexões entre a Igreja Ortodoxa e o Estado russo, bem como um estado espiritual não muito distante do Kremlin, mas autônomo da linha da “politique d’abord” (política, antes de tudo) de Putin.

Um sistema que prevê Kirill como o líder mundial da Igreja Ortodoxa e o Papa Francisco como o líder inevitável do catolicismo, pensado para edificar – também depois do acordo com o governo chinês – uma espécie de nova hegemonia religiosa e espiritual global, fora da sujeição ao ocidentalismo para o Vaticano, e de forma lateral ao interesse estratégico russo para Kirill.

O fator político central deste novo sistema georreligioso é a questão da Ucrânia.

A campanha extraordinária de levantamentos de fundos lançada pelo Papa Francisco para este país, campanha em vigor desde 2014, vem tendo um impacto positivo na Igreja Ortodoxa Russa e em toda a comunidade de fiéis. O sucesso tem sido enorme (coletaram-se 1 milhão e 230 mil euros) e mostrou que o Vaticano – mesmo na dimensão caritativa e universalista que o caracteriza – não pensa do mesmo modo que as potências ocidentais que atualmente trabalham no caso ucraniano.

Enquanto o Ocidente opera nas regiões atingidas pela guerra com um internacionalismo inepto, o Vaticano de Parolin e Francisco ainda se baseia no tradicional e insuperável direito das nações (“ius gentium”) – e em um respeito razoável e jamais sectário pela nacionalidade, etnicidade, pelas fronteiras e pelos Estados legítimos.

O direito do Papa Francisco e do Cardeal Parolin é, antes de tudo, o direito humanitário: acordos entre as partes, sempre que possível; soltura imediata de prisioneiros, tema que por si só pode fazer avançar a situação política; trégua e cessar-fogo são atos que o Vaticano tem posto em prática para resolver a crise da Ucrânia.

E possivelmente também resolver a tensão na Síria, onde, desde 2011, dois milhões de católicos foram reduzidos a 1 milhão apenas.

No Iraque, os cristãos caíram de 300 mil para 200 mil.

Na Síria, uma verdadeira “guerra contra os cristãos” está sendo travada – como afirmou recentemente Jacques Benhan Hindo, arcebispo sírio de Hassakè-Nisibi, arquidiocese em que Raqqa se localiza –, enquanto os curdos das Unidades de Proteção Popular se comportam de forma bastante negativa com as várias igrejas cristãs ainda presentes no país.

Pode-se facilmente antever que estes curdos serão abandonados pelos EUA assim que este país os explodirem por completo.

O Daesh-ISIS conta com o apoio da Turquia e dos EUA, enquanto as comunidades cristãs estiverem protegidas – dentro dos limites de suas áreas e campos de competência – pelos soldados russos e pelas forças de Bashar al-Assad.

Em tal situação, certamente a Igreja do Papa Francisco não pode funcionar plenamente, mas com certeza pode unir as comunidades religiosas e étnicas básicas e fazê-las agir como partidos nas negociações futuras.

Um trabalho que pode mais facilmente acontecer na Ucrânia.

De fato, se a Síria estiver dividida (o que cada vez é mais provável de ocorrer), o eixo xiita entre a área de Bashar al-Assad e o Irã (que esteve na origem da guerra sunita e jihadista contra o regime baathista sírio) estará fortalecido, enquanto a Rússia vai se transformar no ator estratégico verdadeiro na região, com os EUA relegados à fileira das meras contrapartes do Qatar (financiando a Al Nusra) e da Arábia Saudita (financiando o ISIS-Daesh).

Daí que as tradições cristãs estão sendo erradicadas na Síria e no resto do Oriente Médio com vistas a fomentar o choque final entre xiitas e sunitas – um choque que o Vaticano não quer e fará de tudo, com a Rússia e a China, para evitar.

Um choque entre xiitas e sunitas – “uma Terceira Guerra Mundial travada em pedaços” –, em que os líderes ocidentais ficam ao lado dos sunitas, assim preparando os outros anos de sangue e destruição para eles e para o Oriente Médio.

Como já aconteceu com Cuba, no contexto do novo mundo será o Vaticano quem aproximará os EUA e a Rússia no momento certo.

Possivelmente com um novo acordo para o Oriente Médio, como se ouve na Secretaria de Estado do Vaticano.

Este será exatamente o propósito da “geopolítica da misericórdia” do Papa Francisco e do Cardeal Parolin.

Com uma declaração contundente feita em setembro de 2013, Francisco condenou os EUA por quererem derrubar Assad com mísseis, mas existe um outro ponto convergente entre Putin e o papa, a saber, a defesa da família tradicional.

O líder russo condenou repetidas vezes a “deriva niilista” ocidental, bem como a confiança obsessiva e filosoficamente irracional na Razão. Na imprensa, tanto Kirill quanto Putin repetem a velha declaração feita pelo Papa Emérito Bento XVI, segundo a qual “o pior inimigo do Ocidente é o próprio Ocidente”.

Além disso, o cisma poderia ser superado doutrinariamente com um comunicado (o que Kirill já sugeriu) em que se aceita que o papa, o Patriarca de Roma, é o “protos” entre os patriarcas das demais igrejas, com base no documento discutido em 2008 na ilha de Creta relativo à história e à identidade das igrejas antes e depois do Grande Cisma.

Esse é um outro tema que em breve alcançará a sua realização natural na prática diplomática da misericórdia estabelecida pelo Cardeal Parolin e pelo Papa Francisco.

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