Direitos da Natureza é uma proposta jurídica para enfrentar o desmonte ambiental brasileiro. Entrevista especial com Vanessa Hasson de Oliveira

Nascentes, rios, serras e lagoas já são considerados sujeitos de direitos em vários municípios do país. Alteração nas legislações municipais busca resgatar convivência harmoniosa na natureza, diz doutora em Direitos Difusos e Coletivos

Rio Laje, em Bonito, Pernambuco, é o primeiro rio a ter direitos garantidos em lei no Brasil | Foto: Divulgação

Por: Edição: Patricia Fachin | 13 Agosto 2025

Direitos da Natureza é um movimento jurídico global cuja finalidade é “resgatar as relações e inter-relações em harmonia com todos os demais seres da natureza a partir da consideração de que nós também somos natureza”, explica Vanessa Hasson de Oliveira, diretora-geral da Mapas (Métodos de Apoio à Práticas Ambientais e Sociais para o Movimento Direitos da Natureza no Brasil), ONG que promove o reconhecimento dos direitos da natureza. Em resumo, Direitos da Natureza visa, ao reconhecer a natureza como sujeito de direitos, reconstruir a estrutura jurídica com base na coexistência dos seres vivos.

Se, por um lado, a iniciativa ainda é incipiente entre os próprios operadores do Direito, por outro, ela já está sendo implementada em vários lugares do mundo, inclusive no Brasil. Vários municípios brasileiros estão alterando a legislação local e incluindo os direitos da natureza nas suas constituições, tornando rios, nascentes, serras e lagoas sujeitos de direito. “O primeiro deles a adotar os Direitos da Natureza foi Bonito, no interior de Pernambuco. É um município localizado dentro de um remanescente da Mata Atlântica e margeia o agreste pernambucano”, informa Vanessa.

Para a doutora em Direitos Difusos e Coletivos, no contexto nacional, em que a legislação ambiental está sendo desmontada, Direitos da Natureza surge como uma iniciativa propositiva. “Uma das formas de se contrapor a isso é fazer não uma contraposição direta, mas uma proposta propositiva de caminhar ao lado, no sentido de que as organizações sociais estão à frente das lutas no combate ao esvaziamento da nossa legislação protetiva ao meio ambiente, aos direitos dos povos e aos direitos da natureza”, menciona.

A seguir, publicamos os principais pontos da reflexão de Vanessa Hasson de Oliveira expostos na videoconferência “Direitos da Natureza e as cosmovisões indígenas. Novo paradigma ético-jurídico”, transmitido na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos – IHU em junho. O evento integra o ciclo de estudos Direitos da Natureza e a proteção do não humano na crise epocal.

As conferências ministradas no ciclo estão disponíveis aqui.

A próxima videoconferência, intitulada “O pensamento descolonial e o Direito da Natureza como instrumento de proteção dos povos indígenas”, será ministrada pela Profa. Dra. Fernanda Bragato, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O evento será transmitido na página do IHU no dia 26-08-2025, às 10h.

Vanessa Hasson de Oliveira (Foto: Mapas)

Vanessa Hasson de Oliveira é graduada em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas. Tem mestrado em Direito das Relações Econômicas Internacionais, com ênfase em Meio Ambiente, e doutorado em Direitos Difusos e Coletivos, com a tese Dignidade Planetária no Capitalismo Humanista, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Confira a entrevista.

IHU – Qual é a proposta do movimento Direitos da Natureza?

Vanessa Hasson de Oliveira – Direitos da Natureza não visa mais proteger aquilo que está fora, como algo apartado – como são tratadas as questões da preservação e conservação do meio ambiente. Pelo contrário, busca resgatar as relações e inter-relações em harmonia com todos os demais seres da natureza a partir da consideração de que nós também somos natureza. Fomos perdendo o entendimento da convivência harmoniosa com a natureza conforme fomos nos separando dos demais seres da natureza. O resultado está aí. Infelizmente, estamos tendo a oportunidade de acompanhar as mazelas do colapso ambiental e ecológico.

Sabemos que a luta dos povos indígenas pela demarcação dos territórios está calcada nas relações e inter-relações viscerais que eles têm com a mãe terra e com o território. A imagem abaixo registra um momento sagrado no topo da montanha, que é o lugar mais importante para os povos dos andes. A imagem mostra a origem do paradigma ancestral, onde as relações e inter-relações são o centro e o valor central da convivência entre seres humanos e “seres além humanos”. Os povos dos Andes dizem que a cultura deles é baseada na vida, a vida em si mesma, que ensina e pressupõe o equilíbrio das relações e inter-relações. Esse modo de vida é chamado de bem-viver. Traduzindo para as nossas expressões indígenas, a mais próxima seria a do povo Guarani: Teko Porã. O bem-viver é conceituado de formas tão diversas quantas são as comunidades e os territórios onde essas comunidades exercem o fundamento das suas inter-relações.

Povos dos Andes (Foto: Reprodução)

Recentemente, estive com o povo Pankarau às margens do rio São Francisco. É uma comunidade originária que guarda esses modos de vida que tentamos traduzir em direitos da natureza. Eles vivem às margens do rio Opará, que não é qualquer rio, mas um rio extremamente caudaloso, como o rio São Francisco. Por vezes, as comunidades que vivem no entorno não têm água para beber por causa da contaminação ou da falta de acesso físico, como acontece com os Pankarau. São questões que nos obrigam a olhar para os modos de vida desses povos e nos relembram que um dia todos fomos povos originários. Elas nos recordam da nossa condição natural de ser, aquilo que de fato somos: natureza com os demais seres da natureza.

A imagem abaixo mostra uma senhora, que é uma liderança quilombola, às margens do rio São Francisco. Nós estivemos lá, preparando o II Fórum Brasileiro pelos Direitos da Natureza, realizado na Bahia, em Ilhéus. Antes disso, fizemos um pré-fórum com cinco comunidades quilombolas da região. No vaso está escrito: “ninguém vai morrer de sede”.

(Foto: Reprodução)

IHU – Como surgiram os direitos da natureza?

Vanessa Hasson de Oliveira – Apesar de a Constituição Federal do Equador ser muito emblemática, os direitos da natureza foram institucionalizados pela primeira vez, como um reconhecimento em lei, por pequenos municípios dos Estados Unidos em 2006. Esse modelo serviu de inspiração para que trouxéssemos, a partir da doutrina dos direitos da natureza no Brasil, a promulgação desses direitos a partir de leis municipais.

A Constituição Federal do Equador é de 2008. Em 2009, por provocação do embaixador da Bolívia (à época começava a preparar a proposta de lei Madre Terra, aprovada e promulgada em 2010), a Assembleia Geral inaugurou o Dia Internacional da Mãe Terra, que tem uma base totalmente diferenciada e hierarquicamente superior em comparação àquela posta pelo Direito Internacional do Meio Ambiente. Os seres humanos foram reincluídos no desdobramento das considerações a respeito do meio ambiente. Junta com essa data foi inaugurado o programa Harmony with Nature (harmonia com a natureza) e, a partir daí, construiu-se uma série de desdobramentos e atividades que culminaram com o evento anual Dialogues of the General Assembly on Harmony with Nature, começado em 2011.

Em 2016, 127 especialistas integravam o programa da Organização das Nações Unidas (ONU), e a Assembleia Geral pediu que fizéssemos um relatório multidisciplinar para fazer uma abordagem a partir do Earth-centered law (direito centrado na Terra). Especialistas de várias áreas conversaram porque não se tratava de uma abordagem meramente jurídica. Pelo contrário, o direito está tentando fazer uma tradução dessa abordagem, que é holística. Nesse processo, revisitamos a legislação biocêntrica, as ideias da economia ecológica, da educação ecológica, das ciências holísticas.

Nos últimos anos, as atividades do programa foram reduzidas e estamos notando a existência de um movimento dentro da ONU tem travado esse processo. Há três ou quatro anos, a Assembleia Geral da ONU chamou atenção para o fato de que seria necessário construir uma Assembleia da Terra, que não estaria dentro da Assembleia Geral da ONU, mas que pudesse trazer as cosmovisões dos povos originários, os saberes acadêmicos e os saberes ancestrais.

Outra justificativa institucional para os direitos da natureza veio na Rio+20, em 2012. Àquela altura, o sistema da ONU já estava implantado e, no relatório sobre “O futuro que queremos”, os Estados-parte reconheceram que alguns povos têm utilizado a expressão mãe terra para se referir ao planeta (ou casa comum) e falado sobre o reconhecimento dos direitos da natureza. Os Estados-parte vêm lançando um apelo para abordagens holísticas e integradas. A partir desse apelo, a Agenda 20-30, tanto no preâmbulo quanto no tratamento da vida próspera e na declaração das visões, diz, no item 12.8, que a humanidade precisa viver em harmonia com a natureza.

IHU – Como as Assembleias da Terra estão sendo encaminhadas no Brasil?

Vanessa Hasson de Oliveira – Realizamos a primeira Assembleia da Terra no Brasil quando realizamos o II Fórum Brasileiro pelos Direitos da Natureza, lembrando que o primeiro destes fóruns foi realizado em 2018, em São Paulo. Com o próximo fórum se avizinhando, pretendemos realizar a segunda Assembleia da Terra fazendo um alinhamento institucional, porque tudo que é realizado no contexto do programa Harmony with Nature é consolidado como uma resolução da Assembleia Geral.

Com isso o Fórum passa a ter um valor institucional muito grande. Por conta disso, temos tentado alinhar os nossos caminhos, que têm os pés totalmente calcados nas cosmovisões dos povos indígenas e outros povos tradicionais, obedecendo o que a resolução da Assembleia Geral recomenda. Estamos realizando a Assembleia da Terra com vistas à promulgação de uma declaração universal dos direitos da mãe terra. Esse programa congrega várias iniciativas do mundo todo, mas seu fim último é a declaração universal, que será também uma declaração universal dos direitos humanos, já que não somos separados da natureza.

IHU – Em quais princípios os direitos da natureza se fundamentam?

Vanessa Hasson de Oliveira – Os ecossistemas e o sistema da mãe terra como um todo não são estáticos, portanto, os princípios também não. Por vezes, um ganha mais luz do que o outro, mas a harmonia na natureza está ali. Essa interconexão, que é um fato, demonstra que o resgate da integralidade individual de cada um dos seres componentes da natureza contribui muito para o resgate da integralidade do sistema como um todo.

Nós somos decorrentes da interconexão; somos seres interdependentes em relação aos demais seres da natureza, mas também interdependentes entre nós, seres humanos. Que somos seres complementares decorre da interdependência e do fato de estarmos todos integrados e nos inter-relacionando nesse sistema.

Nós nos inspiramos muito na floresta porque a sua dinâmica é muito visível. Nela, podemos visualizar, nas relações que acontecem, todos esses princípios inseridos.

A complementaridade é esse valor, que é um fato. Quando olhamos para cada um dos seres e para os seres humanos, percebemos que os dons são diversos. Cada um tem um dom para trazer dentro da composição de um sistema onde se pretende a criação de vida abundante, que é o que o sistema terra, a mãe terra, nos oferece. A complementaridade é inerente ao sistema. Se olharmos para ela de uma maneira consciente e incluirmos esses valores diversos que se complementam, estaremos alinhados com o sistema orgânico da natureza.

Reciprocidade é outro valor. Não é o toma lá dá cá, mas é uma relação orgânica e natural de um saber intrínseco de que as trocas acontecem o tempo todo e que é preciso que elas aconteçam o tempo todo para que elas não se rompam e o sistema se mantenha em harmonia. Disso decorre o valor da cooperação. Com esse olhar consciente, operamos em cooperação. Podemos de novo nos inspirar na natureza não humana, a floresta, que é a real possibilidade de estarmos alinhados com essa vida, que é uma vida naturalmente abundante na Terra.

A Terra deixa de ser abundante quando intervenções humanas são feitas. Fomos nós quem perdemos a noção de atuação orgânica com os demais seres da natureza. As intervenções humanas têm atuado de forma a romper com a noção de complementaridade e de reciprocidade, ignorando por completo o fato de sermos interdependentes.

Outro valor é o princípio de bioculturalidade, que fala exatamente do fato de o bem-viver ser caracterizado em relação à bioculturalidade que se opera em determinado espaço territorial. Essa também é a justificativa do porquê iniciamos a promoção dos direitos da natureza no Brasil a partir da localidade. O princípio da localidade é muito importante no desenvolvimento dos direitos da natureza. O princípio da comunidade, e aí gosto de invocar a encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, representa uma cidadania ecológica, ou seja, não é uma comunidade apenas de seres humanos.

Por fim, a biologia do amor é um valor trazido a partir dos estudos de Humberto Maturana, biólogo falecido recentemente, aos 99 anos. Ele produziu conceitos que nos levam a entender as inter-relações e as formas como miméticas, ou seja, reproduzidas de forma orgânica por qualquer que seja o espaço, o elemento ou o conjunto de seres da natureza. Ele diz que todos os seres são inclinados ao encontro, ou seja, todos os seres são inclinados à energia de amar, ao amor. Não se trata apenas do amor romântico ou numa consideração piegas, mas o amor do encontro desde as primeiras células. Ou seja, nós somos organicamente voltados a um encontro para a produção de vida e que qualquer coisa diferente disso não estará alinhado com aquilo que somos, natureza.

IHU – Como os direitos da natureza estão sendo operados no Brasil?

Vanessa Hasson de Oliveira – Os direitos da natureza no Brasil começam pelos municípios a partir da Carta da Natureza. Estamos levando a proposta de reconhecimento dos direitos da natureza para diversos municípios. O primeiro deles a adotar os direitos da natureza foi Bonito, no interior de Pernambuco, que à época estava debatendo políticas públicas no sentido de fazer uma migração da economia que vinha se operando na cidade. Bonito é um município localizado dentro de um remanescente da Mata Atlântica e margeia o agreste pernambucano. É um lugar muito especial em termos ecossistêmicos e tem uma profusão de nascentes e de cachoeiras, ou seja, um DNA muito importante para o turismo ecológico. O município trabalhava com a monocultura de mandioca e banana, o que estava ocasionando empobrecimento do solo e relações econômicas menos abundantes. Foi então que, recebendo a proposta de Direitos da Natureza, foi aprovado o plano de agroecologia, fomentando a economia solidária e outras práticas agroecológicas para a nutrição do próprio solo e o fomento de formas de contratações de compra de alimentos.

Em todos os outros municípios, procuramos levar a promulgação de reconhecimento dos direitos da natureza. Falamos em reconhecimento porque a natureza tem direitos e levamos isso para a Constituição Municipal, no sentido de que esses valores possam perpassar por todas as outras normas que tratam de outras economias, da dignidade da pessoa humana e das questões ambientais.

Depois de Bonito/PE, atuamos em Paudalho até o momento em que foi aprovado o direito do primeiro rio no Brasil, o rio Laje Komi-Memen, em Rondônia. Em 2004, a deputada federal Célia Xakriabá (MG) propôs o reconhecimento dos direitos da natureza na Constituição Federal. Na audiência pública promovida para a apresentação do tema, estiveram presentes várias organizações que hoje estão congregadas ao redor da Articulação Nacional dos Direitos da Natureza à Mãe Terra.

(Foto: IPEmapas)

Em Paudalho, uma questão emblemática foi o reconhecimento dos direitos de uma das nascentes do rio Capibaribe. Esse é um rio importante em Pernambuco. Este reconhecimento é muito curioso por diversos aspectos, entre eles, o fato de ser uma fonte de peregrinação, tocando à espiritualidade.

Florianópolis foi o terceiro município e a primeira capital a reconhecer os direitos da natureza em função de um desdobramento a respeito da Lagoa Nova Conceição. Serro, em Minas Gerais, foi a primeira Serra reconhecida com seus próprios direitos no Brasil e é uma das primeiras do mundo a ser reconhecida a partir de um projeto de autoria da vereadora Karine Roza.

IHU – O que o texto da lei costuma determinar em relação aos direitos da natureza de um rio, por exemplo?

Vanessa Hasson de Oliveira – O importante na escrita da lei é ir descolonizando as formas de pensamento que temos por sermos colonizados e, portanto, também colonizadores. A partir do momento em que operamos na linguagem, operamos na transformação do mundo. Em minha tese doutoral, abordo a importância da linguagem na cocriação de outros mundos e outros modos de vida que precisamos resgatar. O texto é feito a várias mãos, alterando a lei orgânica. Um exemplo de texto é o seguinte: “O Município providenciará, com a participação efetiva da população, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais, para assegurar a todos os membros da Natureza, seres humanos ou não, o direito ao meio ambiente ecologicamente saudável e equilibrado, em harmonia com as necessidades sociais e ecológico-econômicas dos seres humanos”.

Destaco a ênfase na preservação e no cuidado para assegurar que todos os membros da natureza – e aí especificamos, didaticamente, seres humanos ou não – tenham direito ao meio ambiente ecologicamente saudável e equilibrado. Outras propostas de lei costumam aprofundar ainda mais essas expressões.

Gosto de propor a inclusão de um parágrafo primeiro dentro das diversas demandas de escrita. Por exemplo: “Para assegurar a efetividade desses direitos, incumbe ao poder público, através de órgãos próprios e do apoio à inciativa popular, proteger o meio ambiente, preservar as Natureza, ordenando as inter-relações entre os seres humanos e os demais seres interdependentes, e resguardar o equilíbrio do sistema ecológico, sem discriminação de indivíduos ou regiões, através de políticas de proteção do meio ambiente, de fortalecimento de economia ecológica, de educação ecológica e de saúde integral, definidas por lei”.

A necessidade orgânica de reconhecer direitos de seres específicos começou a aparecer em todo o mundo e, obviamente, isso começa pelos rios porque são os rios que perpassam o planeta e alimentam todos os seres nessas inter-relações, unindo-se uns aos outros e culminando com a união final no oceano. Os direitos do rio vieram reconhecidos por sentença judicial – essa é uma prática do Equador. A Global Alliance for the Rights of Nature (GARN) tem feito o trabalho de impulsionar os direitos da natureza por força de processos judiciais. O direito do rio Atrato, na Colômbia, foi reconhecido via judicial. O juiz responsável pelo caso, muito apropriadamente argumentando o reconhecimento dos direitos desse rio, disse que a Terra não pertence ao homem. Muito pelo contrário, supõe-se que o homem é quem pertence à Terra, como qualquer outra espécie. Ou seja, nos colocou na horizontalidade de interdependência.

O caso do rio Whanganui, na Nova Zelândia, é emblemático. O povo Maori tem pleiteado seus direitos desde 1840. É uma luta centenária. A comunidade teve uma vitória com o reconhecimento e a demarcação das terras. Também foi reconhecido o direito de que as relações deles com as suas florestas, áreas de pesca e outras propriedades que possuem de forma individual e coletiva, não podem ser perturbadas. Eles conseguiram que o rio Whanganui fosse reconhecido como sujeito de direitos, porque eles consideram que são o próprio rio.

Uma frase central nesse movimento diz exatamente isto: “Nós somos o rio e o rio somos nós”. Nesse reconhecimento de 1999, o governo atesta que a importância da lei é de dimensão física e metafísica na relação espiritual com a comunidade. Esse caso nos inspirou no assessoramento à construção da lei que reconhece os direitos do rio Laje, o primeiro no Brasil a ter direitos reconhecidos. No nosso site está publicada a lista de leis reconhecidas no Brasil.

IHU – Como é feito esse processo nas comunidades?

Vanessa Hasson de Oliveira – O processo de escuta das comunidades, que por sua vez fazem a escuta do ser da natureza ou da natureza como um todo na sua região, é sempre artístico e poético. Visa trazer propostas de outro lugar, isto é, menos de um senso crítico mental, e mais de um sentir, buscando respeito à origem de tudo, que são as cosmovisões originárias. Leonardo Boff chama esse sentir de corazonar.

IHU – Que novos processos de reconhecimento e garantia de direitos da natureza estão em curso no país?

Vanessa Hasson de Oliveira – Na terceira edição do Fórum Brasileiro, a ser realizado em Minas Gerais em abril de 2026, queremos garantir os direitos de dois grandes rios emblemáticos, pelo que sofreram, sofrem e representam em termos de relações com as comunidades do entorno: o rio São Francisco e o rio Opará. A base de cocriação do texto da lei obedece a essas cosmovisões. Uma das bases de cocriação dessa lei foi a publicação do Manifesto dos peixes pela vida, de Iremar Antônio Ferreira, do Movimento pelo Rio Madeira, que escreve a partir da perspectiva dos peixes.

Em São Paulo existe uma proposta para o rio Tietê a partir de uma inspiração da proposta original feita para o rio Laje, que assim diz: “Ficam reconhecidos os direitos intrínsecos do rio Laje, como ente vivo e sujeito de direitos, e de todos os outros corpos d’água e seres vivos que nele existam naturalmente ou com quem ele se inter-relaciona, incluindo os seres humanos, na medida em que estão interconectados como um sistema interconectado, integrado e interdependente”. Nos objetivos específicos, dizemos que o rio também tem direitos a ter inter-relações com os seres humanos e o cultivo do rio também interessa.

Além do rio São Francisco, outro caso emblemático que estamos acompanhando é o do Rio Doce. Nos reunimos com a comunidade quando aconteceu o crime de Mariana e, participando das reuniões, passamos a falar do rio em toda a sua extensão. A comunidade surfista, no Espírito Santo, começou a trabalhar a questão da onda da foz do rio Doce em função de terem sido extremamente impactados pelo crime de Mariana.

A comunidade de surfistas ativou o direito da onda não só porque ela foi completamente contaminada, mas porque a formação da onda foi impactada com a lama tóxica, que é muito pesada. Somente dois anos atrás os surfistas puderam voltar a surfar e, em 2024, a onda teve seus direitos reconhecidos. É a primeira onda do mar a ter seus direitos reconhecidos como sujeito de direitos. Esse caso ganhou repercussão internacional e, junto com ele, a serra e a nascente do rio Doce tiveram seus direitos reconhecidos. Caminhamos para o reconhecimento dos direitos do rio Doce e do rio São Francisco.

IHU – Como levar adiante pautas sobre a natureza quando temos uma representação política esmagadoramente desfavorável?

Vanessa Hasson de Oliveira – A política desfavorável é o que mais nos estimulou porque os direitos da natureza são uma resposta àquilo que se avizinhava em 2017. Em 2015, começamos a fazer trabalhos acadêmicos no âmbito da Rede para o novo constitucionalismo latino-americano e foi nessa época que integramos o programa Harmonia com a Natureza, da ONU.

Em 2017, avizinhava-se esse estado de coisas pelos quais passamos no governo anterior. Uma das formas de se contrapor a isso é fazer não uma contraposição direta, mas uma proposta propositiva de caminhar ao lado, no sentido de que as organizações sociais estão à frente das lutas no combate ao esvaziamento da nossa legislação protetiva ao meio ambiente, aos direitos dos povos e aos direitos da natureza. Decidimos atuar de forma propositiva, com a apresentação em lei dessa proposta, para não perdermos tempo e energia no combate direto e frontal, acreditando que a primeira função da lei é a função social de orientar a sociedade. A perspectiva antropocêntrica que adotamos conversa muito com a legislação e a legislação acaba sendo esse lugar de aprendizado. Acreditamos que a lei opera essa função pedagógica para ampliar as consciências.

IHU – A foz do Rio Amazonas está ameaçada com a exploração de petróleo, em um ecossistema de grande fragilidade. Poderia fazer um exercício de como os direitos da natureza lidariam com o caso?

Vanessa Hasson de Oliveira – Consultemos as comunidades alocadas naquele lugar e encontraremos a resposta do que a foz do Rio Amazonas pensa, do que aquela região pensa, do que suas próprias águas pensam, sentem e têm como verdade. É isso que tem que ser praticado. Com certeza, jamais será a concordância com a exploração, especialmente a exploração que pretende produzir aquilo que já é uma coisa do passado. É inimaginável, para os direitos da natureza, pensar na possibilidade de exploração da margem equatorial. Estaremos com algumas atividades na COP30 para levantar a questão, fazer a escuta e divulgá-la para quem quiser ouvi-la.

IHU – Que esperança temos de preservar e desenvolver a sustentabilidade dos povos originários, visto que os governos não têm boas intenções em manter a cultura e os direitos da terra?

Vanessa Hasson de Oliveira – Precisamos tê-la e precisamos conservá-la. A palestra de Alberto Acosta [disponível abaixo] foi suficiente para me reesperançar. Às vezes, eu, assim como vocês, tenho vontade de desistir porque “cadê a esperança?” E aí vem um abençoado como Alberto Acosta e diz: “Que vamos fazer? Não podemos ser coniventes”. A esperança resiste no fato de que nós não queremos ser coniventes, de modo algum, com ações que são contrapostas à vida. Então, mantemos a esperança.

Uma forma que tive de continuar nesse trabalho foi o fato de ter constatado que aquilo que chamamos de crise ecológica colapsou e estamos numa fase de colapsamento. A partir da minha perspectiva, de que o sistema está o tempo inteiro se formando e se reconformando com perdas que fazem parte do processo de recondução do equilíbrio, nós estamos nesse momento de reconformação. Que tipo de reconformação queremos ver? Queremos fazer parte desse processo de reconformação ou não? Por todos esses motivos, manter a esperança é estar presente nas lutas com o seu melhor dom e continuar caminhando. Cruzar os braços é que não é possível.

IHU – A mudança nos hábitos alimentares, excluindo o consumo de carne pelo menos entre os povos não originários, está incluída nas propostas de respeito a todos os seres da natureza?

Vanessa Hasson de Oliveira – Todo e qualquer direito específico trazido para uma proposta de lei depende da escuta da comunidade que está se inter-relacionando com uma natureza específica, numa região específica. Os direitos da natureza podem ser trazidos para instrumentos de gestão local, por exemplo, de gestão de uma unidade de conservação ou de um documento, como os protocolos de consulta livre, prévia e informada. Dependendo do âmbito, a comunidade vai conversar e fazer uma escuta da natureza. Se decidirem que ninguém quer ver animais mortos, inclusive para fins de consumo humano, esse tema será trazido.

IHU – Como começar a articular e a trazer para os municípios a proteção aos direitos da natureza?

Vanessa Hasson de Oliveira – A minha apresentação toda vem no sentido de estimular e apresentar um pouco do histórico de como isso foi acontecendo, para que cada pessoa possa se apropriar ou se inspirar, a fim de deixar que essa proposta se realize, impulsionando-a a seu próprio modo, de acordo com a bioculturalidade da comunidade onde atua. Minha apresentação se destina fundamentalmente a multiplicar as ações no Brasil. É um sonho poder implementar os direitos da natureza nos mais de 5.500 municípios brasileiros.

Normalmente, esse processo se inaugura de uma pessoa que tem boa vontade, que, por sua vez, conversa numa comunidade que começa a gostar da ideia e organiza uma reunião formal, de preferência convidando um membro do legislativo para representar a coletividade. A partir disso, começam a pensar na cocriação do texto de lei, impulsionando, ao mesmo tempo, ações práticas e políticas públicas que tenham relação com o reconhecimento dos direitos da natureza e que dão eficácia a esses direitos.

Leia mais